Fórum Jurídico

Texto PequenoTexto NormalTexto Grande

 

Decreto Regulamentar n.º 6/2017, de 31 de Julho – Regulamentação da Lei n.º 25/2016, de 22 de Agosto (acesso à gestação de substituição)

João Fernandes Moreira, Mestrando em Direito, Advogado Estagiário, Abreu Advogados

I. Os antecedentes legislativos

No passado dia 31 de Julho foi publicado o Decreto Regulamentar n.º 6/2017, cujo objecto consiste na regulamentação da Lei n.º 25/2016, de 22 de Agosto, que, por sua vez, regula o acesso à gestação de substituição e que procedeu à alteração da Lei n.º 32/2006, de 26 de Julho, a qual estatui sobre a utilização de técnicas de procriação medicamente assistida (doravante “Lei da PMA”).
A importância deste diploma governamental decorre do facto de dele depender a execução de todo o regime jurídico referente ao acesso dos cidadãos portugueses à gestação de substituição e que consta, actualmente, da Lei da PMA, com destaque para os artigos 8.º, 14.º, 15.º e 39.º. A verdade é que o próprio artigo 3.º da Lei n.º 25/2016 vinculava o Governo a elaborar e garantir a aprovação desta regulamentação no prazo de 120 dias após a publicação do diploma. Contudo, o Decreto Regulamentar surge com um atraso de nove meses relativamente à exigência do legislador parlamentar (sugestivo, aliás, em matéria de gestação…). Sem prejuízo, importa analisar os aspectos essenciais do mesmo, em consonância com as normas da Lei da PMA que ele executa.
Cumpre, em primeiro lugar, relembrar o conteúdo das normas que, em 2016, foram introduzidas na Lei da PMA.
O artigo 8.º, cuja epígrafe é “gestação de substituição”, começa logo por apresentar uma definição desta técnica de procriação, explicando que se trata de uma qualquer situação em que a mulher se disponha a suportar uma gravidez por conta de outrem e a entregar a criança após o parto, renunciando aos poderes e deveres próprios da maternidade. Em seguida, estabelece que os negócios jurídicos que apresentem este objecto só serão possíveis a título excepcional e com natureza gratuita, nos casos de ausência de útero, de lesão ou de doença deste concreto órgão que provoque a impossibilidade absoluta de uma mulher engravidar ou em outras situações clínicas que o justifiquem, sendo ainda necessária uma autorização do Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida (em diante, “CNPMA”), entidade que é responsável pela devida supervisão, depois de escutados os responsáveis da Ordem dos Médicos.
Já o artigo 39.º, com a mesma epígrafe da norma atrás analisada, prevê que, no caso de haver a celebração de um contrato oneroso destinado a constituir um vínculo de gestação de substituição, o beneficiário será punido com pena de prisão até 2 anos ou multa até 240 dias e o gestante beneficiário será punido somente com sanção pecuniária até 240 dias. Ainda prevê que se o beneficiário celebrar contratos de gestação de substituição, a título gratuito, com fundamento diferente daqueles que a lei taxativamente prevê, poderá ser punido com pena privativa de liberdade até um ano, sendo o gestante de substituição que com ele contratar punido com pena de multa até 120 dias. Uma diferenciação injustificada no tratamento oferecido em termos sancionatórios às duas partes de um mesmo contrato, mas sobre a qual apenas pretendemos deixar esta nótula.
Em suma, a Lei da PMA estabelece as condições (materiais) em que é possível recorrer à gestação de substituição, apenas concebida para situações absolutamente excepcionais e com requisitos de admissibilidade bastante estritos.
Já o Decreto Regulamentar n.º 6/2017 vem ao encontro da definição do procedimento relativo à celebração destes negócios gratuitos, disciplinando em termos práticos quer a concessão da autorização prévia, quer o modo de celebração do próprio contrato de gestação de substituição.

II. Do pedido de autorização prévia

A Lei da PMA estabelece que a validade do contrato de gestação de substituição carece de autorização pelo CNPMA, depois de ouvidos os representantes da Ordem dos Médicos. Assim, o pedido de autorização prévia, essencial para a celebração do contrato de gestação de substituição, deverá ser apresentado junto do CNPMA com uma subscrição mútua entre o casal beneficiário e a gestante de substituição, bem como ser integrado por todos os elementos indentificadores e declarações negociais expressas das partes envolvidas.
Uma vez apresentado o pedido junto do CNPMA, este órgão colegial de supervisão dispõe de um prazo de 60 dias para deliberar se admite ou rejeita o pedido apresentado. Se existir uma deliberação favorável ao interesse do casal peticionante, o Conselho deverá enviar imediatamente o pedido apresentado, bem como os diversos documentos que o acompanham, para a Ordem dos Médicos, que disporá de um mesmo prazo de 60 dias para emitir um parecer sobre a concreta petição. De forma a evitar querelas doutrinárias ou jurisprudenciais, como ocorre em diversos outros diplomas do nosso ordenamento jurídico, o legislador determinou, de forma expressa, que este parecer, apesar de ser obrigatório quanto à sua emissão, deverá ser de natureza meramente consultiva, não estando o CNPMA vinculado ao respectivo sentido e alcance (como, de resto, é a regra do Código do Procedimento Administrativo). O legislador admite, inclusivamente, que, havendo um silêncio da ordem profissional em questão no prazo legal conferido, o procedimento seguirá os demais trâmites.
Por fim, refira-se a importância que o legislador atribuiu ao diálogo entre o casal beneficiário, a gestante de substituição e os responsáveis do CNPMA, de modo a que os “porquês” negociais sejam devidamente conhecidos e justificados pelas partes junto do órgão de supervisão.

III. Do contrato de gestação de substituição

A prática da gestação de substituição depende da celebração de um contrato entre o casal beneficiário e a gestante de substituição.
Como forma de garantir um maior controlo do conteúdo dos negócios celebrados e facilitar a supervisão cuja competência foi entregue ao CNPMA, o legislador decidiu utilizar a figura do contrato-tipo, enquanto mecanismo de uniformização de regimes adoptados. O contrato-tipo surge como um instrumento de contratualização normativa, do qual constarão todas as cláusulas essenciais antecipadamente previstas pelo legislador, as quais são irrevogáveis por vontade das partes, as quais somente poderão aditar cláusulas em conformidade com o regime vigente.
Por fim, refira-se que o legislador tomou o cuidado de enumerar um conjunto de matérias que necessariamente deverão ser objecto de disciplina no modelo de contrato-tipo que a CNPMA tem a responsabilidade de elaborar e disponibilizar no respectivo sítio da internet, destacando-se as matérias relativas aos direitos, obrigações das partes envolvidas no negócio, os termos de revogação do consentimento do contrato e as suas consequências, bem como a expressa consagração da gratuitidade do negócio jurídico e a ausência de qualquer tipo de imposição, pagamento ou doação por parte do casal beneficiário a favor da gestante de substituição, para além da expressa definição de quem assegura as despesas contraídas durante a dita gestação.

IV. Da declaração negocial

O legislador prevê que as declarações negociais que as partes emitem e que integram o núcleo do contrato são livremente revogáveis até que se iniciem os procedimentos médicos relativos a esta modalidade de procriação medicamente assistida. Interessante uma vez que o legislador, apesar de conceder às partes um direito de arrependimento quanto à celebração deste tipo contratual, vem, igualmente, esclarecer que a existência desta faculdade não preclude a possibilidade que a gestante de substituição realizar uma interrupção voluntária da gravidez nas primeiras 10 semanas, nunca podendo ser punida criminalmente por esse acto (alínea e), n.º 1, do art. 142.º do Código Penal).
Contudo, parece, ainda assim, que o legislador não pretendeu afastar uma possível responsabilidade civil obrigacional da gestante de substituição que, com recurso a métodos de interrupção voluntária da gravidez, venha a frustrar as legítimas expectativas do casal beneficiário de terem uma criança enquanto resultado da gravidez contratualizada e já consumada.

V. Do regime de protecção da parentalidade

O legislador pretendeu, por uma questão de respeito ao princípio da igualdade material, determinar que, no momento do parto da gestante de substituição, deverá o casal beneficiário ter direito à licença parental, no âmbito do regime de protecção de parentalidade, tal como é conferido aos casais que não recorrem a este método alternativo de procriação.
No espaço laboral, quer a gestante de substituição, quer o casal de beneficiários enquanto futuros progenitores da criança, deverão ser titulares do direito ao mesmo regime de férias previsto na Lei.

VI. Conclusões

A nova regulação do acesso à gestação de substituição consagrada no mais recente Decreto Regulamentar n.º 6/2017 preconizou a já há muito aguardada disciplina de um sector bastante sensível da nossa legislação civil.
O legislador adoptou uma posição bastante segura quanto ao modo como regulamentou o acesso a esta modalidade de procriação medicamente assistida, uma vez que estabeleceu um regime bastante detalhado e completo quanto à necessidade de autorização das autoridades públicas competentes para o controlo ou supervisão dos pedidos efectuados, bem como uma cuidada regulamentação em torno do contrato-tipo de gestação de substituição, enquanto figura basilar de toda a negociação feita entre os beneficiários e o gestante de substituição, esclarecendo a manifesta proibição de onerosidade quanto à celebração deste género de contratos.
Destaque também para a opção do legislador em ter expressamente consagrado uma equiparação dos beneficiários da gestação ao modelo de paternidade e maternidade biológica no que se refere, nomeadamente, ao benefício de licença parental, bem como aos demais direitos e benefícios legais previstos no âmbito do regime de protecção de parentalidade, evitando, assim, possíveis querelas doutrinárias ou jurisprudenciais.
Antecipamos que a regulamentação apresentada pelo Governo seguirá um caminho duradouro e com reduzida possibilidade de qualquer modificação de conteúdo no futuro próximo: trata-se de um diploma bastante completo e com um regime adequado.