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Comentário ao Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 12/2015, de 2 de Julho de 2015 (Processo n.º 899/10.2TVLSB.L2.S1; DR, I Série, N.º 200, de 13 de Outubro de 2015) – Uniformização de jurisprudência: Qualificação como bem próprio de bem adquirido na constância do matrimónio no regime da comunhão de adquiridos

Elsa Sá Carneiro, Advogada, Abreu Advogados

1. No regime de bens supletivo do casamento, nem todos os bens adquiridos na constância do matrimónio são bens comuns. Neste âmbito, o Supremo Tribunal de Justiça (STJ) veio pronunciar-se, para uniformização de jurisprudência, sobre a oposição de acórdãos acerca da mesma questão de direito: a de saber se nesse regime matrimonial da comunhão de adquiridos, tendo um bem sido comprado na constância do matrimónio, sem que no documento de aquisição, ou documento equivalente, não tivessem intervindo ambos os cônjuges e sem que daqueles documentos não se fizesse a menção acerca da proveniência do dinheiro, se maioritariamente ou exclusivamente do cônjuge que não subscrevesse o documento de aquisição, pode este fazer prova de que o bem adquirido é seu bem próprio, não integrando por isso o património comum do casal.

2. No caso, um casal adquiriu, na pendência do casamento, um imóvel que veio a tornar-se a casa de morada de família até à sua separação, cujo preço foi pago com dinheiro proveniente de poupanças da mulher, ainda em solteira, ou com a venda de bens que lhe advieram por sucessão de seus pais. Após a separação dos cônjuges, a mulher interpôs uma ação judicial pedindo para que o imóvel fosse reconhecido como seu bem próprio, ficando excluído do acervo de bens comuns do casal.
O marido contestou, impugnando a proveniência do dinheiro empregue no pagamento do sinal, preço e empréstimo, defendendo que fora apenas ele quem interviera na escritura de compra e que nesta não constava nenhuma referência ao facto de o imóvel ter sido adquirido apenas com dinheiro da mulher.
A ação foi julgada procedente em primeira instância e depois revogada pelo Tribunal da Relação de Lisboa. Por fim, veio o STJ confirmar a decisão de primeira instância.

3. Inconformado com o acórdão do STJ, e por entender que este estava em contradição com outro proferido sobre a mesma questão, o marido interpôs recurso para uniformização de jurisprudência no sentido de que o bem em causa não podia ser considerado bem próprio de um dos cônjuges, dada a falta de intervenção de ambos na escritura de aquisição e da declaração de que o mesmo era adquirido exclusivamente com bens de um deles, tudo conforme vem disposto na alínea c) do artigo 1723.º do Código Civil.
De acordo com o mencionado preceito, quando vigora entre os cônjuges o regime da comunhão de adquiridos, conserva a qualidade de bens próprios os que tenham sido adquiridos com dinheiro ou valores próprios de um dos cônjuges, desde que a proveniência do dinheiro ou valores seja devidamente mencionada no documento de aquisição, ou em documento equivalente, com intervenção de ambos os cônjuges. Sobre esta questão de direito, a jurisprudência maioritária do STJ vinha acolhendo o entendimento de que o artigo 1723º, c) do Código Civil, ao determinar que, no regime de comunhão de adquiridos, os bens adquiridos com dinheiro ou valores próprios de um dos cônjuges só conservam a qualidade de bens próprios desde que a proveniência do dinheiro ou dos meios seja devidamente mencionada no documento da aquisição, ou em documento equivalente com intervenção de ambos os cônjuges, só teria aplicação quando estivessem em causa interesses de terceiros. Pelo que, neste sentido, o STJ negou provimento ao recurso interposto pelo marido , proferindo acórdão uniformizador de jurisprudência no qual afirmou que: “Estando em causa apenas os interesses dos cônjuges, que não os de terceiros, a omissão no título aquisitivo das menções constantes do art. 1723.º, c) do Código Civil, não impede que o cônjuge, dono exclusivo dos meios utilizados na aquisição de outros bens na constância do casamento no regime supletivo da comunhão de adquiridos, e ainda que não tenha intervindo no documento aquisitivo, prove por qualquer meio, que o bem adquirido o foi apenas com dinheiro ou seus bens próprios; feita essa prova, o bem adquirido é próprio, não integrando a comunhão conjugal» (sublinhado nosso).
De acordo com o STJ, a lei consagra uma presunção absoluta (iuris et de iure), ou seja, que não admite prova em contrário, quando estejam em causa as relações dos cônjuges com terceiros, e uma mera presunção relativa (iuris tantum), que pode ser afastada mediante prova em contrário, quando estejam em causa apenas os interesses dos cônjuges. Na verdade, sendo a referida disposição legal uma norma imperativa, e apesar de o seu conteúdo ser claro, não poderá deixar de ser interpretada à luz dos interesses que levaram à sua previsão, qual sejam, o de proteger os interesses de terceiros, mas também, o de assegurar a autonomia dos patrimónios próprios e comuns do casal. evitando o injustificado enriquecimento de um património à custa de outro
Entendeu assim o STJ (ainda que com vários Votos de Vencido) que a teleologia da citada norma “tem sido o suporte essencial da jurisprudência maioritária deste Supremo Tribunal de Justiça que enfatiza a autonomia patrimonial dos cônjuges no regime da comunhão de adquiridos; a necessidade de salvaguardar a possibilidade de injusto locupletamento de um dos cônjuges por mera operância de uma omissão formal (…)”. Assim sendo, a exigência legal prevista na alínea c) do artigo 1723.º do Código Civil – a de que a proveniência do dinheiro ou dos meios seja devidamente mencionada no documento da aquisição, ou em documento equivalente com intervenção de ambos os cônjuges – só tem aplicação quando estiverem em jogo interesses de terceiros. Estando apenas em causa os interesses dos cônjuges, a falta dessa declaração pode ser substituída por qualquer meio de prova que demonstre que o pagamento foi feito apenas com dinheiro ou valores próprios de um deles – o que é de sufragar.