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Lei n.º 145/2015, de 9 de Setembro – Aprova o novo Estatuto da Ordem dos Advogados, em conformidade com a Lei n.º 2/2013, de 10 de Janeiro, que estabelece o regime jurídico de criação, organização e funcionamento das associações públicas profissionais

Manuel Sá Martins, Mestre em Direito, Advogados, Abreu Advogados

No passado dia 9 de Outubro de 2015, entrou em vigor a Lei n.º 145/2015, de 9 de Setembro, que aprovou o Estatuto da Ordem dos Advogados, em conformidade com a Lei n.º 2/2013, de 10 de Janeiro, que estabelece o regime jurídico de criação, organização e funcionamento das associações públicas profissionais1, e revogou a Lei n.º 15/2005, de 26 de Janeiro, e o Decreto-Lei n.º 229/2004, de 10 de Dezembro.
Atenta a relevância deste diploma para o enquadramento jurídico da Advocacia, a presente exposição visa assinalar, de forma breve e concisa, as alterações introduzidas pelo novo Estatuto mais significativas.

A. Modelo de Organização Interna

Nos termos do artigo 2.º do novo Estatuto, a Ordem dos Advogados tem âmbito nacional e está internamente estruturada em sete regiões – Lisboa, Porto, Coimbra, Évora, Faro, Açores e Madeira – correspondentes aos extintos distritos judiciais. Consequentemente, os respectivos Conselhos Distritais passaram a designar-se Conselhos Regionais – cfr. artigos 53.º e seguintes do novo Estatuto.
Neste prisma, as mudanças não são materialmente significativas: não obstante a Reforma do Mapa Judiciário, que substituiu as anteriormente existentes 231 comarcas por 23 novas grandes comarcas, o novo Estatuto manteve as 198 delegações concelhias. Para o efeito, no que concerne ao âmbito geográfico das Delegações da Ordem dos Advogados, o diploma substitui a referência a “Comarcas” pela referência a “Municípios” – cfr. artigos 60.º e seguintes.
No que concerne aos órgãos nacionais, destaca-se a criação de um novo Conselho Fiscal, composto por um Presidente, dois Vogais e um Revisor Oficial de Contas, ao qual incumbe o acompanhamento e controlo da gestão financeira da Ordem dos Advogados, bem como a apreciação e fiscalização da actividade da Ordem nos domínios contabilístico, orçamental, financeiro e fiscal – cfr. artigos 9.º, n.º 2, g) e 48.º e seguintes.
Merece ainda referência o reforço dos poderes da Assembleia Geral em diversas matérias, designadamente através da aprovação de regulamentos (artigos 33.º e seguintes do novo Estatuto).

B. Estágio de Advocacia

Com a entrada em vigor do novo Estatuto da Ordem dos Advogados, a duração do estágio de formação foi reduzido de 24 para 18 meses, passando o estagiário da primeira fase de estágio para a segunda sem ter de efectuar qualquer prova de avaliação intercalar, ao contrário do que sucedia ao abrigo do regime pretérito. A redução do tempo de estágio incide apenas na fase complementar – reduzindo em 6 meses a duração desta – visto que o novo Estatuto manteve a duração mínima da primeira fase do estágio em 6 meses – cfr. artigo 195.º.

C. Sociedades de Advogados

O novo Estatuto revoga o anterior regime das sociedades de advogados, que constava do Decreto-Lei n.º 229/2004, de 10 de Dezembro, passando a regular esta matéria, nos seus artigos 213.º a 222.º. Tais preceitos devem ser analisados em conjunto com o disposto na lei-quadro das associações públicas profissionais e na lei-quadro das sociedades de profissionais – cfr. Lei n.º 2/2013, de 10 de Janeiro e Lei n.º 53/2015, de 11 de Junho –, cujo regime é aqui igualmente aplicável, no que não for diversamente estabelecido no Estatuto (lei especial).
A "empresarialização" das sociedades de advogados dá um novo passo, com a aplicação às sociedades de advogados do regime fiscal das sociedades comerciais, em conformidade com o disposto no n.º 15 do artigo 213.º, do novo Estatuto.
A redacção do preceito levanta, contudo, dúvidas quanto à sua compatibilização com o regime previsto no artigo 6.º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas, o qual prevê que o regime da transparência fiscal se aplique às sociedades de profissionais.
Segundo este último artigo:
“1 — É imputada aos sócios, integrando-se, nos termos da legislação que for aplicável, no seu rendimento tributável para efeitos de IRS ou IRC, consoante o caso, a matéria coletável, determinada nos termos deste Código, das sociedades a seguir indicadas, com sede ou direção efetiva em território português, ainda que não tenha havido distribuição de lucros:
a) Sociedades civis não constituídas sob forma comercial;
b) Sociedades de profissionais.”

Dispõe, por sua vez, o n.º 4 do mesmo preceito que se considera sociedade de profissionais, nomeadamente, “A sociedade constituída para o exercício de uma atividade profissional especificamente prevista na lista de atividades a que se refere o artigo 151.º do Código do IRS, na qual todos os sócios pessoas singulares sejam profissionais dessa actividade”.
Ora, uma vez que, nos termos dos n.os 2 e 7 do artigo 213.º do novo Estatuto, os sócios das sociedades de advogados apenas poderão ser advogados ou outras sociedades de advogados e não é permitido às sociedades de advogados exercer directa ou indirectamente a sua actividade em qualquer tipo de associação ou integração com outras profissões, actividades e entidades cujo objecto social não seja o exercício exclusivo da advocacia – isto é, continua a não ser permitida a constituição de sociedades multidisciplinares –, então poderá entender-se que as sociedades de advogados, enquanto sociedades de profissionais, continuam sujeitas à transparência fiscal obrigatória.
A não abertura às sociedades de advogados da possibilidade de os sócios serem não advogados constitui derrogação do estabelecido na lei-quadro das associações públicas profissionais e na lei-quadro das sociedades de profissionais – cfr. Lei n.º 2/2013, de 10 de Janeiro e Lei n.º 53/2015, de 11 de Junho; uma derrogação, apesar de tudo, admitida nos termos no n.º 4 do artigo 27.º da Lei n.º 2/2013.
Em todo o caso, quanto aos membros da administração da sociedade de advogados, o Estatuto admite que possam não ser advogados – cfr. n.º 6 do artigo 213.º. Pelo menos um deles, no entanto – de acordo com o regime previsto no n.º 3 do artigo 9.º da Lei n.º 53/2015, de 11 de Junho – deverá ser advogado.2


D. Acção Disciplinar

O procedimento disciplinar contra Advogado é uma das matérias mais modificadas pelo novo Estatuto.
Em especial, o diploma introduz no n.º 3 do artigo 122.º a regra da extinção / caducidade do direito de queixa, uma vez transcorridos 6 meses sobre o conhecimento dos factos, à semelhança do que ocorre com o direito de queixa no quadro do procedimento criminal, previsto no n.º 1 do artigo 115.º do Código Penal.

Apesar desta aproximação à lei jusprocessualista penal, a verdade é que o Estatuto, por outra via, se afasta genericamente do respectivo regime, na medida em que ao exercício do poder disciplinar da Ordem dos Advogados passaram a ser subsidiariamente aplicáveis as normas procedimentais previstas na Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas, aprovada pela Lei n.º 35/2014, de 20 de Junho – cfr. artigo 126.º do novo Estatuto –, quando no anterior Estatuto se remetia para a aplicação subsidiária do Código de Processo Penal e do Código Penal – cfr. artigo 121.º do anterior Estatuto.
Por outro lado, nos termos do n.º 2 do artigo 118.º do novo Estatuto, a suspensão do prazo de prescrição do procedimento disciplinar não pode ultrapassar o prazo máximo de 18 meses – previamente este prazo era de 2 anos, nos termos do artigo 113.º do anterior Estatuto.
Por sua vez, dispõe o artigo 173.º do novo Estatuto que a produção de efeitos das sanções disciplinares passa a iniciar-se apenas decorrido o prazo para a respectiva impugnação contenciosa.
A reincidência é igualmente objecto de uma alteração significativa, pois, enquanto o regime pretérito previa que se considerava reincidente “o advogado que cometa uma infracção disciplinar que deva ser punida com pena igual ou superior à de multa, antes de decorrido o prazo de três anos sobre o termo do cumprimento de pena efectiva de igual ou superior gravidade que lhe tenha sido definitivamente aplicada pela prática de infracção anterior” (artigo 129.º do antigo Estatuto), o regime actualmente vigente determina o seguinte: “Considera-se reincidente o advogado que cometa uma infração disciplinar antes de decorrido o prazo de cinco anos após o dia em que tiver findado o cometimento de infração anterior” – cfr. artigo 134.º do novo Estatuto.
Finalmente, dispõe o artigo 175.º do novo Estatuto que são canceladas automaticamente e de forma irrevogável, no respectivo registo, as decisões que tenham aplicado sanções disciplinares, decorridos 10 anos sobre a sua extinção, com excepção das decisões que apliquem a sanção de expulsão. Termina, por esta via, o averbamento perpétuo das penas disciplinares.

E. Referendo

O novo Estatuto da Ordem dos Advogados cria a figura do referendo – nos termos do artigo 26.º deste diploma, os advogados podem ser chamados a pronunciar-se, a nível nacional e a título vinculativo ou consultivo, sobre assuntos da competência da assembleia geral, do bastonário ou do conselho geral, que devam ser aprovados por regulamento ou decididos por ato concreto, excluídas as questões de natureza disciplinar ou afim e de natureza financeira.
Nos termos do Estatuto, o referendo é convocado pelo bastonário, após autorização da assembleia geral, sob iniciativa do próprio bastonário, por deliberação da assembleia geral ou a pedido de um décimo dos advogados inscritos na Ordem dos Advogados. O regime do referendo é aprovado por regulamento da assembleia geral.

F. Provedor dos Clientes

O artigo 65.º do novo Estatuto veio instituir a figura do Provedor dos Clientes, que pode ser designado pelo Conselho Geral, sob proposta do Bastonário, com a incumbência de analisar as queixas apresentadas pelos destinatários dos serviços prestados pelos advogados e fazer recomendações, tanto para a resolução dessas queixas, como em geral para o aperfeiçoamento da Ordem dos Advogados. O cargo de Provedor dos Clientes pode ser remunerado, nos termos do respectivo regimento.
O exercício do cargo de Provedor dos Clientes pode ser realizado por profissional que não seja advogado, colocando-se todavia questões relacionadas com a sujeição aos deveres deontológicos dos advogados, designadamente, ao dever de sigilo profissional.

G. Tutela

Seguramente uma das inovações legislativas mais polémicas no quadro da regulação da profissão é a sujeição da Ordem dos Advogados à tutela do membro do Governo responsável pela área da justiça, consagrada no artigo 277.º do novo Estatuto, em conformidade com o artigo 45.º da Lei n.º 2/2013, de 10 de Janeiro.
Ora, a sujeição da Ordem dos Advogados à tutela governativa é uma medida legislativa de discutível conformidade constitucional. Na verdade, a independência da Ordem face aos Órgãos do Estado tem a cobertura da Lei Fundamental, designadamente nos artigos 20.º e 267.º da Constituição da República Portuguesa, pelo que a Ordem deve, em princípio, ser totalmente livre e autónoma nas suas regras e na prossecução dos seus fins estatutários.
Pode mesmo afirmar-se que a independência da Ordem dos Advogados, enquanto sustentáculo da independência dos Advogados no exercício do patrocínio forense, é comparável à própria independência dos Tribunais.
Nestes termos, pode questionar-se a (in)compatibilidade da tutela prevista no artigo 277.º do novo Estatuto com o exercício de uma advocacia verdadeiramente livre e independente face a qualquer autoridade, própria de um Estado de Direito, e essencial à exigência constitucional de “acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva” consagrada no artigo 20.º da Lei Fundamental.

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1 Sobre este regime, v. a anotação neste Fórum Jurídico de MAFALDA TEIXEIRA DE ABREU: http://www.abreuadvogados.com/oqf_inst_conhecimento_legislacao_jurisprudencia.php?offset=56.
2 Para mais desenvolvimentos sobre o regime particular das sociedades de advogados, v. a anotação neste Fórum Jurídico de PAULO DE TARSO DOMINGUES (pontos 21. a 31.):
http://bdjur.almedina.net/fartigo.php?id=53