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Comentário ao Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 1/2016, de 12 de Novembro (Processo n.º 769/12.0GAMMV.C1 -A.S1; DR, I Série, N.º 2, de 5 de Janeiro de 2016) – Uniformização de jurisprudência: validade da prova produzida em audiência de julgamento (processo penal)

Carlos Almeida Lemos, Advogado, Abreu Advogados

1. O Acórdão do STJ em comentário destinou-se a pôr fim a uma disputa jurisprudencial e doutrinária que vinha sendo discutida pelos Tribunais e pelos intervenientes processuais, alimentada pela redacção que o art. 328.º, n.º 6, do Código de Processo Penal (CPP) tinha antes de ser alterado pela Lei n.º 27/2015, de 14 de Abril.
Fixou a seguinte jurisprudência:
“O prazo de 30 dias previsto no art 328º, n.º 6 do Código de Processo Penal, na redacção anterior à Lei n.º 27/2015, de 14 de Abril, é inaplicável nas fases processuais em que, após a deliberação do tribunal sobre as questões da culpabilidade e da determinação da sanção, seguida ao encerramento da fase de discussão, seja verificada a necessidade de repetição de prova registada no decurso dessa anterior fase de discussão por haver deficiência no registo efectuado mantendo-se, portanto, a eficácia da prova.”
Tarde o fez, uma vez que o tema nele tratado, e a questão nele resolvida, apenas relevará hoje em processos cuja produção de prova ocorreu em momento anterior à entrada em vigor da Lei n.º 27/2015, tendo em conta que a nova redacção do art. 328.º do CPP veio tornar irrelevante esta, anteriormente, “vexata questio”.

2. Dispunha, à época, o n.º 6 do art. 328.º do CPP que “ o adiamento não pode exceder 30 dias. Se não for possível retomar a audiência neste prazo, perde a eficácia a produção de prova já realizada.”. Se dúvidas não havia de que a produção de prova no decurso da audiência de julgamento teria de ter lugar em sessões contínuas, ou então em sessões de julgamento que não poderiam mediar entre si mais de 30 dias, várias questões se colocavam, relativamente a outras situações menos claras, e não esclarecidas pela letra da lei, como fosse a da validade da prova produzida em audiência, quando, depois de proferida Sentença ou Acórdão decisório, fosse ordenada a repetição da inquirição de uma testemunha, por não se reconhecer o seu teor do registo gravado na sessão de julgamento tida no decurso normal do julgamento. Essa impossibilidade de audição da gravação, ou de correcta percepção do seu conteúdo, verificada depois de exaurido o prazo de 30 dias constante do n.º 6 do art. 328.º, implicaria uma nulidade insanável, da qual resultaria a perda de toda a prova anteriormente produzida, e a consequente repetição de todo o julgamento? Ou antes configuraria uma mera irregularidade, sanável com a repetição apenas daquele depoimento, mantendo-se todos os outros válidos?
Esta foi a questão tratada pelo Acórdão do STJ, tendo o mesmo versado sobre a validade de situações similares que poderiam afectar a validade da prova produzida em Audiência, conjunto de situações que, de seguida, comentaremos.

3. Tratava-se de saber se, na vigência da anterior redacção do n.º 6 do art. 328.º do CPP, a repetição de diligência de prova, realizada depois de terminada a Audiência de Julgamento, e de proferida a decisão, decorrido que estivesse o prazo de 30 dias após a última diligência de produção de prova realizada, tal invalidaria todo o julgamento já realizado, ou se se manteria a validade da prova produzida anteriormente, carecendo-se apenas de realizar a nova diligência, para complementar a produção de prova anteriormente realizada em Julgamento.
A esta questão – e tomando posição –, pugnou o Ministério Público Junto do STJ pela validade da prova produzida em Audiência de Julgamento, se e quando, por necessidade de repetição de inquirição de testemunha, ou declarações de arguido, não registadas, ou incorrectamente registadas, houvesse necessidade de os ouvir novamente. Não seria, assim, de aplicar a estes casos – repetição de depoimentos incorrectamente registados – o que nessa matéria dispunha o n.º 6 do art. 328.º.
Como principal argumento para defesa desta posição, o Ministério Público sustentou que não se trataria da prestação de um novo depoimento, antes da repetição de algo que já tinha sido prestado, e apenas não teria sido devidamente registado, pelo que não cuidaríamos de ter os cuidados decorrentes da aplicação do princípio da imediação e da oralidade, tão caros à produção de prova no Direito Processual Português. O tribunal já teria escutado esses argumentos, no decurso do depoimento prestado originariamente na Audiência de Julgamento, pelo que o cumprimento dos princípios da imediação e da oralidade estariam defendidos, tratando-se esta necessidade de repetição do depoimento, como mera necessidade de garantia da apreciação desse depoimento testemunhal ou de declarações do arguido, analisável num eventual recurso sobre a matéria de facto, e nada mais.
Esta posição veio a informar a decisão final do Acórdão de Fixação de Jurisprudência em comentário, que apenas veio a circunscrever mais a solução, ao considerar que o n.º 6 do art. 328.º, na versão anterior à redacção resultante da Lei n.º 27/2015, não seria aplicável, caso o Tribunal já tivesse procedido à deliberação sobre as questões da culpabilidade e da determinação da sanção, após o encerramento da fase da discussão, resultando essa necessidade do facto de não ter sido registada convenientemente, no meio de suporte legalmente previsto, a prova então produzida, por algum vício na gravação e registo dessa prova.
Isto significaria que, decorridos que estivessem mais de 30 dias sobre a data de encerramento da discussão, e terminado o Julgamento, poderiam ser ordenadas, nomeadamente pelo Tribunal Superior, a repetição de diligências de produção de prova testemunhal ou por declarações, sem que tivesse de ser invalidada toda a restante prova então produzida, por então já ter decorrido o prazo constante do n.º 6 do art. 328.º.

4. Não concordamos com esta conclusão, mesmo que o Acórdão do STJ tenha restringido a posição que tinha sido tomada pelo Ministério Público na pronúncia que fez sobre os argumentos expendidos pelo recorrente.
Na verdade, e face à posição tomada pelo Ministério Público, o STJ considerou algumas situações em que a validade da prova anteriormente produzida sucumbiria às novas necessidades probatórias, identificando três tipos de situações.
Uma primeira em que, encerrada a discussão, se pretenderia lançar mão de produção de prova suplementar, nos termos previstos no art. 371.º do CPP. Nesta situação, o Acórdão em comentário qualificou essa produção de prova como sendo “nova prova”, e já não repetição de meio de prova já produzido, sujeitando esta “nova prova” à obrigação de que a mesma fosse produzida dentro dos limites que então o n.º 6 do art. 328.º do CPP exigia, ou seja, não distando entre a última produção de prova e a produção dessa “nova prova” mais de 30 dias.
Outra excepção que o STJ acolheu seria a necessidade de produção de “nova prova” para clarificação da apreciação do juízo de culpabilidade do comportamento do arguido. Entendeu-se, também aqui, que, por se tratar de facto – acto para produção de prova – cujo conhecimento se tornaria imprescindível para a formação da convicção do julgador sobre o juízo de culpa, deveria essa produção de prova não ultrapassar, face ao momento de produção de prova imediatamente anterior, o prazo de 30 dias.
Numa terceira situação, finalmente, o Acórdão excepcionou o caso em que, durante a fase de deliberação, o julgador entenda poder estar em presença de uma eventual alteração não substancial dos factos da acusação ou da pronúncia, ou de uma alteração da qualificação jurídica. Neste caso, considerou-se que a reabertura da Audiência de Julgamento para cumprimento das formalidades decorrentes do que nessa matéria dispõe o art. 358.º do CPP, depois da qual se retomariam as deliberações atinentes à prolação da decisão, deveria manter os cuidados que informaram a criação da limitação do prazo de 30 dias, que igualmente aí não deveria ser ultrapassado, sob pena de perda de validade da prova até aí produzida.
Todas estas cautelas decorrem, como afirma o Acórdão, da necessidade de se preservar o cumprimento dos princípios da imediação e da oralidade, e da sua imprescindibilidade para que o julgador pudesse ter em mente a globalidade da prova produzida, sobretudo aquela que resultaria da inquirição das testemunhas e das declarações dos arguidos e assistentes, alegando ser esse o tempo razoável para que a informação retirada dos depoimentos não se perdesse. Ora, não podíamos estar mais em desacordo com esta posição, e com a argumentação que a sustenta, como demonstraremos em seguida!
Na verdade, o n.º 6 do art. 328.º do CPP foi ali colocado pelo legislador para impedir que entre os momentos de produção de prova em processo penal mediassem mais que 30 dias, precisamente – como refere o Acórdão em comentário – por ser esse o período razoável dentro do qual a prova produzida em audiência permaneceria na retina e na memória do julgador. Para além desse período não seria expectável que o julgador guardasse na sua memória todos os contornos relevantes da produção da prova testemunhal, ou por declarações, que perante si tinha sido feita em Audiência. Não obstante tenha sido criada em momento no qual já se recorria à chamada documentação de prova em registo áudio, entendeu o legislador que a possibilidade de o julgador, com recurso a esse registo, se recordar da prova produzida não seria suficiente para reter toda a informação e plasticidade que a prova produzida em julgamento trazia sobre a matéria decisória.
Na verdade, concordamos que a impressão que nos dará a mera audição de uma gravação áudio não retrata tudo aquilo que se passou na Audiência de Julgamento, apenas recordando o teor das palavras, mas deixa de fora todo um conjunto de impressões que o depoimento na presença da testemunha deixa naqueles que tem de apreciar o seu conteúdo, interpretando-se a expressão “conteúdo” na sua dimensão mais lata possível. Da gravação áudio ficam de fora as expressões faciais, ou gestuais do depoente, a sua postura na cadeira ao longo do depoimento, se olha directamente para quem lhe fez a pergunta, se olha para outro interveniente processual, etc., etc. … Deixar passar mais de 30 dias sobre a percepção que esta realidade deixa no julgador vai certamente limitar a força probatória do depoimento, e com isso influenciar a decisão que aquele vai acabar por tomar.
Diversa da análise de um documento, um depoimento deixa marcas próprias, que apenas poderão ser vivenciadas e mantidas se o julgador se mantiver com os detalhes do depoimento presentes, seja ao longo do julgamento, seja na fase em que terá de efectuar a ponderação sobre a decisão a tomar. A gravação áudio, com o passar do tempo, vai deixando escapar detalhes que seriam importantes, e muitas vezes decisivos para a boa decisão da causa, exactamente como acontece com o papel térmico, que com o passar do tempo vai perdendo a definição do texto que nele foi impresso, deixando de desempenhar o seu papel. Com o passar do tempo, perde-se a imediação e a oralidade, e com isso a possibilidade de obter uma decisão Justa, como bem vêm observando os Tribunais Superiores, quando são chamados a decidir uma qualquer solicitação com vista à alteração da decisão sobre a matéria de facto.
Deste modo, o Acórdão em comentário, ao considerar admissível que, terminando a audiência de julgamento, proferida decisão final (Sentença ou Acórdão), em sede de recurso, verificado que seja um qualquer vício na gravação da prova produzida perante o juiz em audiência, que por exemplo a tornará imperceptível, seja admissível voltar a ouvir essa testemunha, permanecendo válida toda a prova testemunhal ou por depoimento produzida em audiência, muitas das vezes muitíssimo tempo depois da produção da restante prova, e muitas das vezes depois de conhecida a decisão final do processo, não está a contribuir para uma decisão Justa. De facto, a reinquirição de uma testemunha, ou a repetição de um depoimento, colhidos depois de conhecida toda a prova produzida, e muitas vezes depois de proferida a decisão pelo Juiz, não garante, de forma alguma, que o depoimento prestado uma segunda vez seja o mesmo que foi prestado anteriormente.
Afirmar o contrário assenta numa falácia: o de que o depoimento de uma testemunha, ou a declaração de um outro interveniente processual, perante um juiz é sempre o mesmo, independentemente da altura em que esse depoimento é prestado.
Não é!
E não será, não por qualquer acto eivado de má fé do depoente, mas apenas e só porque a natureza humana o potencia.
Validar prova, produzida nestas condições, desvirtuará completamente a materialidade dos princípios da imediação e da oralidade, ainda para mais quando essa nova produção de prova for feita em momento ulterior à deliberação do tribunal sobre as questões de culpabilidade e de determinação da sanção.
Significa esta possibilidade que este novo depoimento, alegadamente repetido, mas produzido efectivamente “ex novo”, não poderá influenciar (e na prática alterar) a ponderação da decisão tomada pelo julgador relativamente à deliberação sobre a culpabilidade e de determinação da sanção!
Mas, então, e se alterar?
Se a sua justa ponderação obrigar a uma alteração da deliberação sobre a culpabilidade ou da determinação da sanção aplicável? O que fazer? Ignoramos?
Por outro lado, como poderemos afirmar, como o faz o Acórdão em comentário, que a reinquirição só é válida se já estiver decidida, seja a questão da culpabilidade, seja a da determinação da sanção, reduzindo, assim, o campo de aplicação da jurisprudência agora fixada, a situações em que a prova a “re-produzir” (produzir novamente) seria inócua para a decisão. Ora, se é inócua, para quê repeti-la? Qual o seu efeito prático?
No nosso modesto entendimento, nenhum, pelo que continuamos a pugnar que, nos casos enquadráveis na jurisprudência agora fixada, deveríamos manter como consequência da ininteligibilidade da gravação que suportava a prova produzida a nulidade de toda a prova, e com isso, a necessidade de repetir todo o julgamento! Repetido todo o julgamento não se correrá esse risco.

5. Diremos, a terminar, como aliás o refere o Acórdão do STJ, que a questão agora glosada neste aresto, é de pouca utilidade prática, atentas as alterações a que foi submetido o art. 328.º do CPP, que mais não fez nesta sua nova redacção que validar toda a prova gravada, independentemente do momento da sua produção, deixando de ser exigível que a prova testemunhal, ou por depoimento em Audiência de Julgamento, seja produzida em sessões que não distem mais de 30 dias entre si.
Continua a haver uma referência ao distanciamento entre sessões de julgamento em não mais de 30 dias, mas apenas por razões de agenda, e não como condição objectiva de validação da prova produzida em julgamento – vd. nova redacção do n.º 6 do art. 328.º do CPP.
A Lei deixou, assim, caminho livre para que a Audiência de Julgamento em Processo Penal possa realizar-se com os intervalos que as agendas dos seus intervenientes permitam, o que potencia espaçamentos diversos, ao sabor das conveniências dos seus intervenientes.
Esta solução, alicerçada e suportada na hoje obrigatória gravação áudio de toda a Audiência de Julgamento, incluindo as próprias alegações orais, não cuida de solucionar todas as fraquezas que apontamos ao registo meramente áudio de uma audiência, com o que de limitado tem para uma completa e verdadeira apreciação da prova, deixando a memória do julgador a saltar por entre outros muitos processos que terá que julgar, sem que tenha a força do fio condutor de uma audiência que, por ocorrer, no limite, a cada 30 dias, tinha uma maior possibilidade de ficar retida no espírito daquele que tinha de apreciar os factos que lhe eram trazidos, para sobre eles decidir, e com isso fazer Justiça.
Estes passos dados, nos quais se enquadra a novel redacção do n.º 6 do art. 328.º do CPP tendo por apoio a muleta da tecnologia, tendem a afastar cada vez mais o julgador do julgamento, o que enfraquecerá o sentido de Justiça que o sistema deveria, no limite, proteger.