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Comentário ao Acórdão n.º 189/2016 do Tribunal Constitucional, de 30 de Março de 2016 (DR, II Série, N.º 85, de 3 de Maio de 2016) – Regime de custas de parte

Tiago Ponces de Carvalho, Advogado, Abreu Advogados

1. O Acórdão do Tribunal Constitucional [TC] n.º 189/2016, de 30 de Março de 2016, veio julgar inconstitucional a norma constante do n.º 2 do artigo 33.º da Portaria n.º 419-A/2009, de 17 de Abril (regula o modo de elaboração, contabilização, liquidação, pagamento, processamento e destino das custas processuais, multas e outras penalidades), na redacção dada pela Portaria n.º 82/2012, de 29 de Março, de acordo com a qual a reclamação da nota justificativa e discriminativa de custas de parte fica dependente do depósito prévio da totalidade do valor da nota.

2. O regime de custas resultante do Decreto-Lei n.º 34/2008, de 26 de Fevereiro (que aprovou o actual Regulamento das Custas Processuais – RCP) conhece já treze versões, resultando as alterações mais recentes da Lei n.º 7-A/2016, de 30 de Março (que aprovou o Orçamento do Estado para 2016), tantas quanto aquelas que incidiram sobre o velho Código das Custas Judiciais, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 224-A/96, de 26 de Novembro, que, em 2008, viria a ser revogado pelo RCP.
Ou seja, foram 36 (trinta e seis) as alterações que, ao longo de 20 (vinte) anos, incidiram sobre o regime de custas judiciais, correspondendo, assim, a quase duas alterações por ano.

3. Feito este primeiro enquadramento e iniciando o comentário ao aresto do TC, estão essencialmente em causa dois diplomas legais incidentes sobre o regime de custas judiciais: a Portaria n.º 419-A/2009, de 17 de Abril, na redacção que lhe foi dada pela Portaria n.º 82/2012, de 29 de Março, que alterou, designadamente e para o que aqui nos ocupa, o artigo 33.º, n.º 2 do primeiro diploma legal referido.
O TC, em Acórdão de 14 de Outubro de 2014, proferido no processo 129/2013, refere: «A Portaria n.º 82/2012, de 29 de março, foi aprovada na sequência das alterações introduzidas pela Lei n.º 7/2012, de 13 de fevereiro, ao Regulamento das Custas Processuais. Tais alterações tiveram na génese uma proposta de lei apresentada pelo Governo à Assembleia da República, devido à necessidade de implementar medidas legislativas adequadas a dar cumprimento a algumas das obrigações assumidas pelo Estado Português no âmbito do Memorando de Entendimento celebrado com o Banco Central Europeu, a Comissão Europeia e o Fundo Monetário Internacional, tendo em vista o Programa de Assistência Económica e Financeira [sublinhado nosso]. Tais obrigações incluíam, como refere o Preâmbulo da Portaria n.º 82/2012, “a imposição de custas e sanções adicionais aos devedores não cooperantes nos processos executivos; a introdução de uma estrutura de custas judiciais extraordinárias para litígios prolongados desencadeados pelas partes litigantes sem justificação manifesta; a padronização das custas judiciais; e a introdução de custas especiais para determinadas categorias de processos e procedimentos com o objetivo de aumentar as receitas [sublinhado nosso] e desincentivar a litigância de má-fé.»
Do exposto, resulta clara a intenção do legislador: o cumprimento das obrigações assumidas com a designada “Troika”, com o objectivo de, designadamente, aumentar receitas.
O artigo 31.º, n.º 1, da supra citada Portaria n.º 419-A/2009, de 17 de Abril, determina: «As partes que tenham direito a custas de parte, após notificadas da totalidade dos montantes pagos a título de taxas de justiça e de encargos, deverão enviar para o tribunal e para a parte vencida a respetiva nota discriminativa e justificativa, nos termos e prazos previstos no artigo 25.º do RCP» [Regulamento das Custas Processuais] [destaque e sublinhado nosso].
O artigo 25.º, do RGP, por seu turno e no que concerne aos ditos termos de envio para o tribunal e para a parte vencida da nota discriminativa e justificativa, é totalmente omisso quanto à necessidade de depósito prévio de qualquer quantia.
O mesmo se refira, aliás, a respeito do estatuído pelo artigo 31.º do RGP, onde o seu número 5 apenas prevê que «não é admitida segunda reclamação dos interessados sem o depósito das custas em dívida» [sublinhado nosso].
Aliás, na primeira versão do RGP, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 34/2008, de 26 de Fevereiro, o artigo 31.º, n.º 3 estatuía o seguinte: «Quando seja apresentada pelo responsável pelo pagamento, a reclamação da conta de custas está sempre sujeita ao depósito imediato de 50 % do seu valor, descontadas as custas de parte».
Ou seja, o depósito imediato como pressuposto de reclamação de custas nunca esteve em causa a propósito das custas de parte, mas apenas no que diz respeito à reclamação da conta de custas (conforme esta compreende um procedimento da secretaria, tal é a epígrafe do artigo 30.º, da Portaria n.º 419-A/2009, de 17 de Abril).
Aliás, só assim se compreende, por um lado, o princípio ínsito na norma acabada de referir de que «as custas de parte não se incluem na conta de custas» (artigo 30.º, n.º 1, da citada Portaria) e, por outro, que uma coisa são os procedimentos da secretaria (cf. o artigo 30.º, da Portaria 419-A/2009, outra são os procedimentos das partes (cf. o artigo 31.º, da referida Portaria). Neste último caso e como antes se aludiu, as partes que tenham direito a custas de parte, após notificadas da totalidade dos montantes pagos a título de taxas de justiça e de encargos, são remetidas, quanto aos termos e prazos concernentes à nota discriminativa e justificativa das custas de parte, para o regime do RCP.
Precisamente, dispõe o artigo 30.º, n.º 2, da Portaria 419-A/2009: «com a notificação da decisão que ponha termo ao processo (…), a secretaria remete às partes, preferencialmente por via eletrónica, uma nota descritiva com os seguintes elementos:
a) Indicação das quantias efectivamente pagas a título de taxa de justiça;
b) Indicação das quantias efectivamente pagas a título de encargos».


4. A este respeito, o TC debruçou-se sobre a questão de o montante das custas de parte poder ascender a níveis excessivos pela ausência, designadamente, de qualquer controlo jurisdicional. O que nos remete a concluir que dificilmente se poderá exigir que, para reclamar da nota que discrimina e justifica tais custas, se deposite previamente qualquer montante por ela fixado, designadamente e como antes se aludiu, nos casos em que a secretaria judicial não proceda nos termos do disposto no artigo 30.º, n.º 2, da Portaria 419-A/2009 (sendo nosso entendimento que este procedimento constituirá o sobredito controlo jurisdicional, mínimo).
Mas prossegue o TC no aresto a que vimos fazendo referência: «é igualmente aplicável esta doutrina sobre os limites do equilíbrio interno do regime de custas. Com efeito, na linha da jurisprudência contida no Acórdão n.º 347/2009, importa garantir que a solução legal quanto à elaboração da nota discriminativa e justificativa das custas de parte, prosseguindo um fim legítimo, permite à instância judicial controlar minimamente o equilíbrio entre o montante peticionado a título de custas de parte e as circunstâncias concretas, relativas à lide e à complexidade da respetiva tramitação, e à própria parte, prevenindo hipóteses de, por lapsos inadvertidos mas grosseiros ou manipulações malévolas, impor custos indevidos e imprevisíveis à parte vencida» [sublinhado nosso].
E continua o aresto: «No tocante às garantias do aludido equilíbrio interno, verifica-se que as mesmas, na solução em análise, até são reforçadas. Em primeiro lugar, cumpre ter presente que das três rubricas que devem constar da nota discriminativa e justificativa das custas de parte segundo o artigo 25.º, n.º 2, do RCP — taxa de justiça, encargos e honorários e despesas de mandatário ou agente de execução —, o valor de duas delas é, desde logo, indicado pela secretaria do tribunal [referindo-se a taxas de justiça e encargos] e o valor da terceira encontra -se perfeitamente balizado. Assim, nos termos do artigo 30.º, n.º 2, da Portaria 419 -A/2009, de 17 de abril, com a notificação da decisão que ponha termo ao processo, deve a secretaria remeter às partes uma nota descritiva com os seguintes elementos: a) Indicação das quantias efetivamente pagas a título de taxa de justiça; b) Indicação das quantias efetivamente pagas a título de encargos.» [sublinhado nosso]
Quanto à outra parcela integrante da nota discriminativa e justificativa das custas de parte, entende o TC que, a par das demais parcelas – que têm um mínimo controlo judicial propiciado pela intervenção da secretaria –, aquela respeitante aos honorários e despesas de mandatário ou agente de execução dispõe de um balizamento legal («por outro lado, no que se refere aos honorários e despesas de mandatário ou agente de execução, rege, por remissão contida no artigo 32.º, n.º 1, da mesma Portaria, o limite fixado no artigo 26.º, n.º 3, alínea c), do RCP: «50 % do somatório das taxas de justiça pagas pela parte vencida e pela parte vencedora».
Remata, finalmente, o aresto do TC: «resulta da aplicação subsidiária à reclamação da nota justificativa das disposições relativas à reclamação da conta constantes do artigo 31.º do RCP — isto de acordo com a previsão do artigo 33.º, n.º 4, da Portaria 419 -A/2009 — que «oficiosamente, a requerimento do Ministério Público ou dos interessados, o juiz mandará reformar a conta [ou a nota justificativa] se esta não estiver de harmonia com as disposições legais». Saliente -se que esta possibilidade de reforma oficiosa se encontra prevista como uma consequência da sujeição da conta ao princípio da legalidade — princípio o que também vale para a elaboração da nota discriminativa e justificativa das custas de parte. Aliás, de outro modo, nem se compreenderia a exigência legal de envio de tal nota também ao tribunal.» [sublinhados nossos]
Só assim, conclui o TC, «os dois aspectos considerados — a predeterminação normativa do valor máximo admissível das custas de parte num dado processo e a necessidade de dar conhecimento simultâneo ao tribunal e à parte vencida da nota discriminativa e justificativa das custas de parte, abrindo a possibilidade de uma reforma oficiosa da nota apresentada — constituem um controlo mínimo suficiente para assegurar que a sujeição da reclamação daquela nota ao depósito prévio do respetivo valor não rompe o equilíbrio interno do regime de custas, neste domínio específico das custas de parte.» [sublinhado nossos]

5. Tudo visto, agora com o enfoque no Acórdão do TC n.º 189/2016, de 30 de Março de 2016, que nos propusemos comentar, não podemos deixar de alertar para a seguinte situação: como bem refere este aresto, trata-se da primeira vez em que o TC se pronuncia, exclusivamente, sob a inconstitucionalidade orgânica e formal da norma constante do n.º 2 do artigo 33.º, da Portaria n.º 419-A/2009. Antes, o TC sempre se pronunciou no sentido da não inconstitucionalidade material da referida norma legal.
Isto serve-nos para deixar claro que a inconstitucionalidade agora declarada – formal e orgânica – incide sobre uma matéria, como expressamente refere o TC, «unicamente regulada por portaria», não impedindo (simplesmente) o legislador de emendar a mão, reservando, desde logo, a matéria à competência exclusiva da Assembleia da República, decorrente da alínea b) do n.º 1, do artigo 165.º, da Constituição, em conjugação com o respectivo artigo 20.º, n.º 1.
Poderemos, assim, simplesmente conceber um hiato temporal em que, por força da decisão do TC, a reclamação da nota justificativa e discriminativa das custas de parte apenas estivesse dependente do depósito de metade do valor que estivesse em questão (tal é o regime constante da Portaria n.º 419-A/2009, de 17 de Abril). Mas entendemos que não. Há que ir mais longe na clarificação de um regime que se tornou denso (e quase ininteligível) pelas inúmeras intervenções a que foi sujeito.
Em primeiro lugar e desde logo, porque resulta da aplicação subsidiária à reclamação da nota justificativa a sujeição às disposições relativas à reclamação da conta constantes do artigo 31.º, do RCP (cf. artigo 33.º, n.º 4, da Portaria 419 -A/2009). Ora, o artigo 25.º, do RGP, por seu turno e no que concerne aos termos de envio para o tribunal e para a parte vencida da nota discriminativa e justificativa, é totalmente omisso quanto à necessidade de depósito prévio de qualquer quantia.
O mesmo se refira, aliás, a respeito do estatuído pelo artigo 31.º, do RGP, cujo número 5 apenas prevê que «não é admitida segunda reclamação dos interessados sem o depósito das custas em dívida» [sublinhado nosso]. Ou seja, facilmente se conclui que somente perante uma segunda reclamação da conta se proceda a depósito de custas.
Em segundo lugar, porque com a notificação da decisão que ponha termo ao processo, a secretaria deve remeter às partes uma nota descritiva de onde conste a indicação das quantias efectivamente pagas a título de taxa de justiça e a indicação das quantias efectivamente pagas a título de encargos. Só assim se consegue um controlo mínimo suficiente para assegurar que a sujeição da reclamação daquela nota a um qualquer depósito prévio não rompe o equilíbrio interno do regime de custas neste domínio específico das custas de parte.
Finalmente, em terceiro lugar a matéria em questão continua a ser regulada por portaria, no dizer do TC. Concretamente, a Portaria n.º 419-A/2009. Ora, cabendo a matéria em discussão na esfera de competência exclusiva da Assembleia da República, decorrente, como antes se referiu, da alínea b) do n.º 1, do artigo 165.º, da Constituição, em conjugação com o respectivo artigo 20.º, n.º 1, dificilmente se entende que a matéria das custas de parte continue a ser regulada pela sobredita portaria.
Mais: do RGP – para cuja aplicação remete o artigo 31.º, n.º 1, da Portaria n.º 419-A/2009 – não consta qualquer obrigatoriedade de depósito do montante reclamado a título de custas de parte como pressuposto de apreciação de qualquer reclamação à respectiva nota discriminativa.