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Comentário ao Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 8/2016, de 23 de Fevereiro (DR, 1.ª Série, n.º 74, de 15 de Abril de 2016): Uniformização de jurisprudência - Imóveis e garantia dos trabalhadores ["Os imóveis construídos por empresa de construção civil, destinados a comercialização, estão excluídos da garantia do privilégio imobiliário especial a favor dos trabalhadores, previsto no artigo 377.º, 1, b), do Código do Trabalho de 2003."]

Manuel Sá Martins, Mestre em Direito e Gestão, Advogado, Abreu Advogados

No passado dia 15 de Abril de 2016, foi publicado, em Diário da República, o acórdão n.º 8/2016, do Supremo Tribunal de Justiça, que uniformiza a jurisprudência relativamente ao âmbito objectivo do privilégio imobiliário especial, estabelecido em benefício dos trabalhadores, sobre os bens imóveis do empregador nos quais aqueles prestem a sua actividade.
O recurso extraordinário para uniformização de jurisprudência vem regulado no artigo 688.º do Código Processo Civil (o qual corresponde ao anterior artigo 763.º do Código Processo Civil vigente até à entrada em vigor da Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho), sendo norteado pelos seguintes pressupostos:

  1. O Supremo Tribunal de Justiça profira acórdão que esteja em contradição com outro anteriormente proferido pelo mesmo Tribunal;

  2. Os acórdãos proferidos tenham sido proferidos no domínio da mesma legislação; e

  3. A questão de direito que haja sido versada nos dois acórdãos seja a mesma.


Os acórdãos uniformizadores, embora não gozem de força vinculativa geral, mas apenas no âmbito do processo em que são proferidos, têm contudo uma importância extraprocessual relevante, na medida em que os demais órgãos jurisdicionais tendem, na prática, a seguir a orientação jurisprudencial uniformizada.
Acresce que, o Acórdão em referência, apesar de recair sobre o 377.º, n.º 1, al. b), constante do Código de Trabalho de 2003 (aprovado pela Lei n.º 99/2003 de 27 de Agosto, doravante, “CT 2003") mantém actualidade e interesse na medida da correspondência, embora com ligeiras alterações, da norma em causa com o actual artigo 333.º do Código de Trabalho de 2009 (aprovado pela Lei n.º 7/2009, de 12 de Fevereiro, doravante, “CT 2009"),

1. O privilégio creditório imobiliário especial dos trabalhadores

Na noção legal, o privilégio creditório é a faculdade que a lei, em atenção à causa do crédito, concede a certos credores, independentemente do registo, de serem pagos com preferência a outros – artigo 733.º do Código Civil.

Segundo preceituava o artigo 377.º, n.º 1, al. b), do CT 2003, "os créditos do trabalhador emergentes de contrato de trabalho, ou da sua violação ou cessação gozam dos seguintes privilégios creditórios: (…) b) Privilégio imobiliário especial sobre os bens imóveis do empregador nos quais o trabalhador preste a sua actividade".
Tal significa que os créditos laborais (emergentes da execução do contrato de trabalho ou da sua cessação e bem assim da sua eventual violação) prevalecem ou têm prioridade de graduação sobre outros créditos, mesmo que garantidos por hipoteca voluntária anteriormente constituída sobre o(s) imóvel/imóveis relativamente ao(s) qual/quais os trabalhadores beneficiam do referido privilégio creditório.
Como se sublinha no Acórdão em apreço, esta protecção conferida aos créditos dos trabalhadores concretiza um princípio constitucional previsto no artigo 59.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa, segundo o qual os salários gozam de garantia especial, – traduzindo uma "discriminação positiva dos créditos salariais em relação aos demais créditos sobre os empregadores".

2. A questão controvertida no caso em apreço

O thema decidendum do Acórdão era saber se, em face daquela disposição legal, o legislador apenas teve em vista abranger pelo privilégio os imóveis construídos por empresa de construção civil e destinados a venda..
A este propósito, o Supremo Tribunal de Justiça, no âmbito do processo n.º 1444/08.5TBAMT-A.P1.S1, decidiu anteriormente que os créditos laborais não beneficiam do privilégio imobiliário especial previsto na al. b) do n.º 1 do artigo 377.º do CT 2003, sobre as fracções de edifícios construídos por uma empresa insolvente.
Conforme resulta da fundamentação do referido Acórdão, o Supremo Tribunal de Justiça entendeu então que o privilégio imobiliário estabelecido a favor dos trabalhadores abrange os bens imóveis que integram de uma forma estável o complexo organizacional do empregador e que estão afectos à actividade prosseguida pela empresa.
Diversamente, entendeu o Supremo Tribunal de Justiça que os bens imóveis construídos pela empresa insolvente, destinados a comercialização, integram o património da empresa, mas não a respectiva organização empresarial, com vista ao exercício daquela actividade. Por conseguinte, julgou-se aí que os créditos laborais dos trabalhadores de uma empresa de construção civil não gozam do privilégio conferido pela alínea b) do n.º 1 do artigo 377.° do CT 2003 sobre os imóveis erigidos para comercialização.
Interpretação divergente tivera o Supremo Tribunal de Justiça no seu acórdão de 13-09-2011, proferido na Revista n.º 504/08.7TBAMR-D.G1.S1, no qual foi reconhecido aos trabalhadores o invocado privilégio especial sobre os imóveis destinados à construção ou construídos para revenda pela empresa insolvente. Aí se entendeu que “não tem sentido procurar a preclusão de garantias reais, como os privilégios imobiliários especiais, em função do destino que aparentemente tenham os imóveis dentro da universalidade empresarial". Pode ler-se neste Acórdão:“se o legislador tivesse querido restringir a atribuição do referido privilégio imobiliário aos imóveis onde o empregador tivesse a sua sede ou estabelecimento e excluir do seu âmbito os imóveis advenientes para a empresa do exercício da sua actividade, certamente teria dado outra redacção a esse artigo referindo claramente essa exclusão e que esse privilégio recairia somente sobre os imóveis onde se encontrassem instalados os serviços da empresa, o que não aconteceu".
Em face desta contradição entre Acórdãos quanto à mesma questão fundamental de Direito, veio o Supremo Tribunal de Justiça uniformizar jurisprudência sobre a extensão objectiva do privilégio imobiliário especial reconhecido aos créditos dos trabalhadores, mais concretamente, se o privilégio abrange os imóveis construídos pela empresa insolvente.

3. A jurisprudência uniformizada

Neste contexto, em resumo, entendeu o Supremo Tribunal de Justiça uniformizar a jurisprudência no seguinte sentido:

“Basicamente, a empresa constitui uma organização estável de meios com vista à prossecução de uma actividade económica. (…) Existe, pois, um conjunto de bens que se encontra afecto ao exercício da actividade empresarial. Ora, no caso da empresa que se dedica à construção civil, os imóveis por esta edificados para comercialização, enquanto não forem vendidos, integram o seu património, mas não essa organização estável de meios com vista ao exercício daquela actividade; representam antes o produto ou resultado desta. Não é nesses edifícios que o trabalhador presta a sua actividade de forma estável e permanente.
(…) Será, pois, àquela situação comum, de os imóveis integrarem o activo corpóreo fixo da empresa, que a norma legal em questão se dirige; não à situação particular dos imóveis construídos para venda, que representam apenas um activo temporário (circulante) da empresa, destinado a uma próxima conversão em disponibilidades. Justifica-se assim que, no caso da empresa de construção civil, como nas empresas de qualquer outro sector, o privilégio se estenda aos imóveis que integram a organização empresarial estável a que os trabalhadores pertencem; não aos demais imóveis, que são produto da actividade da empresa.
(…) Por outro lado, deve ter-se em consideração a especial situação dos imóveis (construídos para venda) que seriam abrangidos pelo privilégio e as garantias e direitos de terceiros implicados, em especial a hipoteca, o direito de retenção e os direitos dos adquirentes.
O privilégio imobiliário especial, como se referiu, é um verdadeiro direito real de garantia; constitui-se no momento da formação do crédito, sendo oponível a terceiro que adquira o prédio (ou um direito real sobre ele), à hipoteca e ao direito de retenção, mesmo que estas garantias sejam anteriores (art. 751º do Código Civil).
Estes terceiros, que constituíram essas garantias ou adquiriram o prédio, vêm assim a ser surpreendidos por uma garantia inteiramente oculta, por não constar do registo, que, por isso, não conheciam, nem podiam conhecer. Impressiona que possam ver o seu direito preterido em favor de uma garantia que não conheciam, apesar da diligência que possam ter posto na consulta prévia do registo.
Importa ainda notar que, como tem sido reconhecido, com a prevalência do privilégio, a hipoteca é praticamente neutralizada. No caso dos imóveis edificados para venda por empresa de construção civil, será de realçar que o crédito que a hipoteca garante serviu de financiamento à própria construção do imóvel que é objecto dessa garantia; assim, a estender-se o privilégio àqueles imóveis, a protecção do salário seria feita, nesta medida, no fundo, à custa do credor hipotecário, em vez de o ser através do património do empregador. É certo, também, que o esvaziamento do crédito hipotecário vai torná-lo mais oneroso (pelo aumento do risco) e pode ter consequências nefastas na viabilização financeira da empresa.
Merece atenção, igualmente, a situação do promitente-comprador que beneficia do direito de retenção: este garante créditos que funcionam, muitas das vezes, na prática, como co-financiamento da construção dos imóveis que constituem objecto mediato dos respectivos contratos, pelo que custeariam também (como no caso anterior), nesta medida, a aludida protecção.
Porém, mais importante aqui é a necessidade de tutela do direito do consumidor, do seu interesse e expectativa na consolidação do negócio, que está frequentemente associado à aquisição de habitação própria, podendo, pois, estar em causa o próprio direito à habitação (art. 65º da CRP).
(…) Por outro lado, na situação em apreço – de empresas de construção civil – os trabalhadores continuam a beneficiar de garantia sobre os imóveis que, de forma estável, servem de suporte físico à actividade da empresa, à semelhança do que ocorre com a generalidade das empresas de outros sectores da actividade económica. Gozam, portanto, de garantias idênticas às dos trabalhadores dessas empresas, mesmo que não abranjam os aludidos imóveis construídos para venda.
Acresce que a protecção do direito à retribuição não se confina ao referido privilégio imobiliário, sendo de considerar ainda o privilégio mobiliário geral, previsto no art. 377º, nº 1, al. a). Para além disso, e como se sublinhou, o legislador tem adoptado outros mecanismos de tutela que, em cumulação com esse regime, cumprem a imposição fixada no art. 59º, nº 3, da Constituição.
Cumpre salientar a este respeito
- O princípio da irredutibilidade salarial, consagrado no art. 122º, nº 1, al. d) do CT 2003 (art. 129º, nº 1, al. d) do CT 2009), no sentido de que o empregador não pode diminuir a retribuição, salvo nas raras excepções previstas na lei;
- A impenhorabilidade de dois terços do salário do trabalhador executado (art. 824º do CPC, mantida no actual art. 738º);
- A limitação à cessão do crédito salarial (art. 271º do CT 2003 e actual 280º);
- O regime da prescrição dos créditos laborais (art. 381º do CT 2003 e actual art. 337º), que beneficia os trabalhadores face ao regime geral da prescrição dos créditos;
- A responsabilidade solidária das sociedades coligadas com o empregador por créditos emergentes do contrato de trabalho e da sua violação ou cessação (art. 378º do CT 2003 e actual art. 334º);
- A responsabilidade solidária dos sócios, gerentes e administradores pelo mesmo incumprimento, desde que a causa deste lhes seja imputável (art. 379º do CT 2003 e actual art. 335º);
- O recurso do trabalhador ao Fundo de Garantia Salarial (arts. 316º a 326º da Lei nº 35/2004, de 29/6 e actualmente pelo DL nº 59/2015, de 21/4 – cfr. art. 380º do CT 2003 e actual art. 336º).
Sopesando tudo o que fica dito, pode afirmar-se que a protecção que é devida aos créditos salariais não impõe que, na situação em apreço, o privilégio especial incida também sobre os imóveis construídos para venda".


Atenta a sobredita fundamentação - melhor desenvolvida no Acórdão para o qual se remete -,o Supremo Tribunal de Justiça concluiu, assim (ainda que com nove votos de Conselheiros vencidos), que a protecção dos créditos salariais não exige que o privilégio se estenda aos imóveis construídos para venda, não justificando, neste caso, o sacrifício dos referidos direitos dos terceiros, designadamente, credores hipotecários e consumidores, e a quebra das suas expectativas assentes no registo.