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Comentário ao Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 14/2016, de 5 de Julho (Processo n.º 752-f/1992.e1-A.s1-A; DR, 1.ª Série, n.º 208, de 28 de Outubro de 2016): Uniformização de jurisprudência – “Massa falida” e poderes de representação

Eduardo Peixoto Gomes, Mestre em Direito (LL.M. em Direito Bancário e Regulação Financeira), Advogado, Abreu Advogados

I. O presente aresto unificador do STJ visou uniformizar os contornos do instituto do abuso de direito, na modalidade de “venire contra factum proprium”, no âmbito da actuação do (actualmente denominado) administrador da insolvência.
São ainda afloradas no aresto duas questões que não nos ocuparão nesta sede: a primeira trata da própria admissibilidade do recurso relacionada com a (in)existência de conflito jurisprudencial pertinente para efeitos de uniformização – requisito essencial para se achar justificada a sua própria existência; a segunda, salientada num dos votos de vencido, é a alegada verificação de impedimento do conhecimento do mérito por parte do Conselheiro Relator, uma vez que este relatou o aresto recorrido, atento o estatuído na alínea e) do n.º 1 do artigo 115.º do Código de Processo Civil (CPC).
Será pertinente precisar que quer o acórdão-fundamento, quer o acórdão recorrido, foram proferidos no domínio da versão anterior à revisão de 1995 do CPC, tendo os invocados arts. 1211º, n.º 2, e 1248.º do CPC sido revogados com a entrada em vigor do Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência (CPEREF, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 132 /93, de 23 de Abril), este último também já revogado pelo Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18 de Março).

II. O contexto factual que deu azo ao Acórdão de Uniformização de Jurisprudência em comentário é narrável nos seguintes termos.
Um administrador de massa falida propôs uma acção de condenação contra quatro réus: uma agência de leilões, dois (cônjuges) adquirentes de um prédio rústico e um notário, tendo como pretensão obter a “declaração de ineficácia, em relação a si, da venda pretensamente titulada pela dita escritura pública de compra e venda, em que a 1.ª Ré outorgou invocando a qualidade que não tinha de encarregada da venda, devendo, em consequência, os 2.os RR. serem condenados a restituir o prédio em causa à A. livre e desocupado de pessoas e bens”.
Na contestação, os adquirentes defenderam-se afirmando que o administrador da massa falida tinha conhecimento de que a agência de leilões vinha realizando escrituras de venda dos imóveis apreendidos para a massa falida, pelo que a acção constituiria um reprovável “venire contra factum proprium”, envolvendo manifesto abuso de direito, nos termos do artigo 334.º do Código Civil.
O Tribunal de primeira instância julgou improcedente a acção, considerando que se verificava abuso de direito. Pelo contrário, o Tribunal da Relação julgou procedente o recurso interposto pelo administrador da massa falida, fundamentando a sua decisão na não verificação da cláusula de abuso de direito.
Interposto recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça pelos Réus adquirentes, foi a referida excepção de abuso de direito considerada procedente e, consequentemente, concedido provimento ao recurso apresentado.
Insatisfeita com a decisão — tanto mais que noutro apenso da mesma falência, e perante um “quadro factual perfeitamente idêntico”, se considerou improcedente a referida excepção de abuso de direito —, veio a massa falida interpor recurso extraordinário de uniformização de jurisprudência.

Ultrapassada a questão da (in)existência de diferendo jurisprudencial e da consequente necessidade/admissibilidade de recurso extraordinário de uniformização de jurisprudência, a questão fundamental que o Acórdão Uniformizador debate, como supra antecipado, é a verificação (ou não) de abuso de direito na modalidade de “venire contra factum proprium”, mais precisamente “se a alegabilidade ou invocabilidade pela própria massa falida, representada pelo seu administrador, do vício de ineficácia do negócio, com base na falta de poderes representativos do mero auxiliar daquele administrador, é ainda compatível com a tutela da confiança dos terceiros adquirentes de boa fé, num caso em que é manifestamente imputável ao representante legal e institucional daquele património autónomo a criação de uma aparência inteiramente fundada de poderes representativos na pessoa do seu auxiliar, traduzida na criação, por facto imputável ao dito administrador, de uma situação de representação simultaneamente tolerada e aparente da massa falida pelo auxiliar do administrador.”

O STJ optou pelo entendimento adoptado no Acórdão recorrido, segundo o qual “[a]ge com abuso de direito, na vertente da tutela da confiança, a massa falida, representada pelo respectivo administrador, que invoca contra terceiro – adquirente de boa fé de bem imóvel nela compreendido – a ineficácia da venda por negociação particular, por nela ter outorgado auxiliar daquele administrador, desprovido de poderes de representação num caso em que é imputável ao administrador a criação de uma situação de representação tolerada e aparente por aquele auxiliar, consentindo que vários negócios de venda fossem por aquela entidade realizados e permitindo que entrasse em circulação no comércio jurídico certidão, extraída dos autos de falência, em que o citado auxiliar era qualificado como encarregado de venda”.

III. Ainda que concordemos com o mérito da decisão em abstracto do Acórdão recorrido, designadamente com a protecção da confiança de terceiros adquirentes, não podemos deixar de acompanhar alguns dos votos de vencido e sublinhar que a argumentação jurídica despendida no aresto em análise não atingiu o grau mínimo de abstracção e subjectividade, elemento essencial dos acórdãos de uniformização de jurisprudência – que deverão ter um carácter tipicamente normativo.
A decisão comentada não parece fazer jus ao carácter uniformizador e plural desta categoria de arestos, impedindo a sua aplicação generalizada, ou, permitindo-o, sê-lo-á, considerando a sua particularidade, a um ínfimo número de situações.