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Lei n.º 15/2017, de 3 de Maio – Proibição da emissão de valores mobiliários ao portador (II)

Paulo de Tarso Domingues, Doutor em Direito, Professor da Faculdade de Direito da Universidade do Porto, Sócio, Abreu Advogados

A 3 de maio do corrente ano de 2017 foi publicado um pacote de diplomas que visa promover a transparência nas relações comerciais e financeiras e combater o branqueamento de capitais.
Aquele pacote legislativo compreende a Lei 14/2017 (relativa à publicação anual do valor total e destino das transferências de fundos para off-shores), a Lei 15/2017 (que estabelece a proibição da emissão de valores mobiliários ao portador) e a Lei 16/2017 (que determina a obrigatoriedade de registo dos beneficiários efetivos dos acionistas dos bancos). É a Lei 15/2017 - e o regime que ela consagra, para o ordenamento jurídico português, de eliminação dos valores mobiliários ao portador - que constitui o objeto desta breve nótula.

A primeira observação que importa fazer é que o diploma legal não proíbe apenas as ações ao portador; proíbe a existência de todo e qualquer valor mobiliário ao portador (cfr. art. 2.º, n.º 1 da Lei 15/2017), sejam ações, obrigações, etc.
Por outro lado, tem-se afirmado, nomeadamente nos media, que esta solução, agora consagrada no direito pátrio, resulta da Diretiva (UE) 2015/849, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de maio de 2015, relativa à prevenção da utilização do sistema financeiro para efeitos de branqueamento de capitais ou de financiamento do terrorismo.
Sucede que o regime português vai muito para além do que determina a Diretiva, uma vez que nela não se impõe a solução drástica - de proibição tout court dos valores mobiliários ao portador - consagrada na Lei 15/2017. Com efeito, o artigo 10.º, n.º 2 deste diploma comunitário estabelece apenas a obrigatoriedade de os Estados-Membros adotarem medidas que visem prevenir “a utilização abusiva de ações ao portador ou warrants sobre ações ao portador” (o negrito é nosso). A Diretiva impõe, no entanto, aos Estados-Membros a obrigação de, relativamente às sociedades “constituídas no seu território”1, obter e conservar informações suficientes e exatas sobre os respetivos “beneficiários efetivos” (cfr. art. 30.º, n.º 1), considerando-se como tal “a pessoa ou pessoas singulares que, em última instância, detêm a propriedade ou o controlo, direto ou indireto, de uma percentagem suficiente (sic) de ações ou dos direitos de voto ou de participação no capital de uma pessoa coletiva, incluindo através da detenção de ações ao portador2, ou que exercem controlo por outros meios sobre essa pessoa coletiva” (cfr. art. 3.º, n.º 6, al. a), item i), da Diretiva). No item ii) desta mesma norma, estabelecem-se depois “indícios” da existência desse controlo direto e indireto: haverá um indício do controlo direto de uma sociedade sempre que uma pessoa singular tenha mais de 25% das ações ou do capital social da mesma; haverá um indício de controlo indireto sempre que 25% ou mais das ações ou do capital de uma sociedade seja detida por outra sociedade (controlada por “uma ou várias pessoas singulares”) ou por várias outras sociedades (controladas pela “mesma pessoa ou pessoas singulares”).

Com a eliminação dos valores ao portador, visa-se manifestamente alcançar uma maior transparência, nomedamente e no que respeita às sociedades, quanto aos titulares/sócios das sociedades anónimas3 (o regime do novo diploma não se destina às sociedades por quotas uma vez que nestas, ao contrário das sociedades anónimas, as participações sociais não podem ser representadas por títulos/valores mobiliários - cfr. art. 219.º, n.º 7 CSC). De facto, sendo agora apenas admitidas ações nominativas (cfr. art. 299.º CSC, na nova redação dada pela Lei 15/2017), será, em princípio, possível saber, a todo o tempo, quem são os respetivos titulares.

A verdade, contudo, é que o resultado pretendido pode não ser plenamente alcançado com a simples consagração, no ordenamento jurídico português4, da proibição das ações ao portador. Tal desiderato apenas será alcançável quando em todos os ordenamentos jurídicos - ou, pelo menos, naqueles com os quais temos mais proximidade - solução idêntica for igualmente sancionada. Com efeito, se o sócio de uma sociedade anónima portuguesa for uma sociedade de um país onde sejam admitidas as ações ao portador (como continua a suceder, v.g., aqui na nossa vizinha Espanha), a opacidade da estrutura societária - que se pretende combater - poderá afinal, no fim do dia, vir a ser conseguida. Parece-nos, por isso, que o regime português é excessivo e não logrará alcançar inteiramente o fim pretendido.

O regime que resulta da Lei 15/2017 determina que, a partir da entrada em vigor da lei (dia 4 de maio, o dia seguinte ao da sua publicação: vide art. 7.º), deixa de ser possível emitir valores mobiliários (e, portanto, também ações) ao portador (cfr. art. 2.º, n.º 1). Donde, a partir daquela data, nenhuma sociedade anónima portuguesa pode emitir ações ao portador, sendo nula qualquer emissão deste tipo de títulos, assim como nulos serão os repetivos títulos (uma vez que tal consubstanciará a violação de uma norma legal imperativa - cfr. art. 294.º CC).

Relativamente às ações ao portador existentes, as respetivas sociedades devem proceder à sua conversão em ações nominativas no prazo de seis meses, ou seja, até 4 de novembro de 2017 (cfr. art. 2.º, n.º 2), sendo que o diploma que regulamenta tal conversão deverá ser publicado no prazo de 120 dias (cfr. art. 3.º). Não deixa de ser curioso que o legislador se dê a si mais tempo (4 meses) do que às sociedades emitentes (que poderão ter apenas dois meses) para preparar a realização desta operação!
De todo o modo, porque o prazo de que as as sociedades anónimas vão dispor para proceder à conversão dos títulos será relativamente curto, será prudente (até para evitar eventuais ações de responsabilidade) que comecem desde já a providenciar e a preparar aquela operação, até pelas consequências gravosas que resultam da não realização da mesma no prazo legalmente estipulado.
Com efeito, se a conversão das ações não tiver ocorrido até 4 de novembro de 2017, os titulares das ações ao portador, de acordo com o estatuído nas duas alíneas do art. 2.º, n.º 2, deixarão (mais uma vez sob pena de nulidade, porque está em causa a violação de uma norma legal imperativa) de poder:
a) transmitir as suas ações; e
b) receber os respetivos dividendos.

Não se deixe de dizer, a terminar, que se percebe também mal que as sanções para a não conversão das ações incidam sobre os sócios e não sobre a sociedade que é, afinal, quem pode e tem a obrigação de proceder à substituição das ações!

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1 Esta obrigação que recai sobre o Estado onde foi incorporada a sociedade deixará, contudo, de cobrar sentido se a sociedade mudar a sua sede para o estrangeiro.
2 Donde resulta expressamente, portanto, que o regime comunitário admite a existência de ações ao portador. Uma sociedade com ações ao portador é, contudo, considerado um dos fatores de risco mais elevado na análise que deve ser feita sobre atividades de branqueamento de capitais e de financiamento do terrorismo (cfr. art. 18.º, n.º 3 e alínea d) do n.º 1 do Anexo III da Diretiva).
3 Note-se que, para as sociedades anónimas cotadas em Bolsa (chamemos-lhes assim por facilidade de exposição), às quais é igualmente aplicável o regime deste diploma, desde há bastante tempo que se consagra regras de transparência. Vide, p. ex., os artigos 16.º e 20. º CVM e a Diretiva dos direitos dos acionistas (Diretiva 2007/36/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de julho de 2007, com a redação que lhe foi dada pela Diretiva (UE) 2017/828 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 17 de maio de 2017).
4 Sendo certo, por outro lado, que o regime consagrado nesta Lei 15/2017, por si só, não assegura o resultado que o artigo 30.º da Diretiva prescreve, relativamente ao conhecimento dos beneficiários efetivos das sociedades portuguesas.