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Comentário ao Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo n.º 3/2017, de 29 de Março (Processo n.º 1521/15; Pleno da 2.ª Secção; DR, 1.ª Série, N.º 103, de 29 de Maio de 2017): Uniformização de Jurisprudência – Definição do âmbito de aplicação da isenção de IMT aos actos de venda, permuta ou cessão, em processos de insolvência

Sara Soares, Mestre em Direito, Advogada, Abreu Advogados e Sílvia Bessa Venda, Mestre em Direito, Advogada Estagiária, Abreu Advogados

1. Introdução

O artigo 270.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas1 prevê, no seu n.º 2, que “[e]stão (…) isentos de imposto municipal sobre as transmissões onerosas de imóveis os atos de venda, permuta ou cessão da empresa ou de estabelecimentos desta integrados no âmbito de planos de insolvência, de pagamentos ou de recuperação ou praticados no âmbito da liquidação da massa insolvente”2. Esta disposição gerou dúvidas quanto ao seu âmbito de aplicação, questionando-se se a referida isenção de imposto municipal sobre as transmissões onerosas de imóveis3 se aplica apenas à transmissão da própria empresa insolvente (ou de um seu estabelecimento) ou se, pelo contrário, abrange, igualmente, a transmissão isolada de activos imobiliários dessa empresa, ocorrida no contexto de planos de insolvência, de pagamentos ou de recuperação, ou ainda, de liquidação da massa insolvente, para satisfação dos direitos dos credores. Este diferendo foi, recentemente, objecto de acórdão uniformizador de jurisprudência, proferido pelo Supremo Tribunal Administrativo4 em 29 de Março.

2. Teses controvertidas

2.1. A favor da aplicação exclusiva da isenção à transmissão da empresa
A Autoridade Tributária e Aduaneira5 e, mais recentemente, o Tribunal Arbitral6 entenderam que a isenção sub judice abrange, apenas, a transmissão da empresa insolvente ou do estabelecimento e já não a transmissão isolada de activos imobiliários dos mesmos. Os argumentos empregues foram, essencialmente, os seguintes:

  1. O elemento literal: na redacção anterior da norma, prevista pelo revogado Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência7, era feita referência aos “elementos do activo da empresa” (alínea c) n.º 2 do artigo 121.º), o que deixou de acontecer na a redacção actual do artigo 270.º, n.º 2, do CIRE;

  2. Não pode ser aplicada uma interpretação que não encontre um mínimo de correspondência verbal na lei (artigo 9, n.º 2, do Código Civil8) e as três expressões constantes da norma - “venda, permuta ou cessão” - encontram, todas, complemento directo nas expressões “empresa ou de estabelecimentos desta”;

  3. Presume-se que o legislador soube expressar correctamente a sua vontade, sendo que, se o legislador não distingue, não cabe ao intérprete distinguir (artigo 9.º, n.º 3, do CC);

  4. Elemento sistemático: a expressão referida no ponto 1 supra continua a constar da alínea c) do artigo 269.º do CIRE, o que significa que, se a intenção do legislador fosse incluir a transmissão dos activos da empresa na isenção de IMT, teria mantido aquela expressão, igualmente, no n.º 2 do artigo 270.º do CIRE;

  5. O facto de o preâmbulo do CIRE referir que “[m]antêm-se, no essencial, os regimes existentes no CPEREF quanto à isenção de emolumentos e benefícios fiscais”9 não implica, necessariamente, que se mantenham todos;

  6. A finalidade (ratio legis) de facilitar as transmissões, no âmbito de processos de insolvência, fica satisfeita, ainda que excluídas do âmbito da isenção as transmissões isoladas de bens imóveis, i.e., a venda, permuta ou cessão de imóveis que não abranja a universalidade da empresa ou um seu estabelecimento (actos isolados);

  7. A circunstância de a lei que autorizou o Governo a legislar sobre esta matéria10 referir a expressão mencionada no ponto 1 supra11 não importa a inconstitucionalidade do artigo 270.º, n.º 2, do CIRE, por este ter ficado aquém do “mandato” conferido ao Governo. Acresce que, a versão actual do preceito legal foi confirmada pela Assembleia da República12, na Lei do Orçamento do Estado para 2013, o que sempre afastaria qualquer juízo de inconstitucionalidade.


2.2. A favor da abrangência da transmissão de bens imóveis isolados da empresa na isenção de IMT

Os tribunais judiciais13 e arbitrais14 entendem (com excepção da decisão arbitral supra referida) que as transmissões isoladas de bens imóveis da empresa insolvente ou do estabelecimento devem ser incluídas na isenção de IMT. Neste sentido, basearam as respectivas decisões, essencialmente, nos seguintes fundamentos:


  1. Elemento histórico: em conformidade com o ponto 49 do preâmbulo do CIRE, referido no ponto 5 supra, “manter o benefício em questão” significa isentar de IMT a transmissão de elementos do activo da empresa;

  2. Entendimento diverso consubstanciaria um desrespeito da lei habilitante, igualmente já mencionada. Se o Governo tivesse ficado aquém da autorização concedida pela AR, estaria, necessariamente, a violar a alínea i) do n.º 1 do artigo 165.º da Constituição da República Portuguesa15;

  3. Não se concebe a existência de bens, que integrem a massa insolvente, mas não disponham de qualquer relação com a respectiva empresa ou estabelecimento, razão pela qual não faz sentido distinguir entre actos isolados e os que abranjam a universalidade da empresa ou estabelecimento, para efeitos da isenção de IMT;

  4. Tratando-se de uma venda praticada no âmbito da liquidação da massa insolvente e tendo o legislador pretendido incentivar a venda rápida de bens integrantes da referida massa, tal intenção é satisfeita, quer se trate da transmissão da própria empresa insolvente (ou de um seu estabelecimento), quer se trate da transmissão isolada de activos imobiliários dessa empresa (ratio legis).

Através da Circular n.º 4/2017, de 10.02.201716, a AT reviu o seu entendimento, tendo em conta a supra mencionada jurisprudência do STA, bem como, o disposto no n.º 4, do artigo 68.º-A, da Lei Geral Tributária17, nos seguintes termos: “[a] aplicação dos benefícios fiscais previstos no n.º 2 do artigo 270.º do CIRE não depende da coisa vendida, permutada ou cedida abranger a universalidade da empresa insolvente ou um seu estabelecimento. Assim, os atos de venda, permuta ou cessão, de forma isolada, de imóveis da empresa ou de estabelecimentos desta estão isentos de IMT, desde que integrados no âmbito de planos de insolvência, de pagamentos ou de recuperação ou praticados no âmbito da liquidação da massa insolvente”.

3. Entendimento sufragado pelo acórdão uniformizador de jurisprudência do STA n.º 3/2017

O STA foi chamado a decidir, com caracter uniformizador, esta questão, no âmbito do processo n.º 1521/15, com fundamento na oposição entre o acórdão do STA proferido no processo n.º 0949/11 e a decisão arbitral proferida no processo n.º 200/2015-T, ambos acima mais bem identificados. Baseando-se na jurisprudência maioritária existente (concretamente, no argumento relacionado com o fim que o legislador pretendeu atingir com a norma legal) e em face da alteração do entendimento da própria AT, o STA concluiu não existir qualquer razão que imponha uma interpretação restritiva do artigo 270.º, n.º 2, do CIRE, resolvendo o conflito nos seguintes termos: “a isenção de IMT prevista pelo n.º 2 do artigo 270.º do CIRE aplica-se, não apenas às vendas ou permutas de empresas ou estabelecimentos enquanto universalidade de bens, mas também às vendas e permutas de imóveis, enquanto elementos do seu ativo, desde que enquadradas no âmbito de um plano de insolvência ou de pagamento, ou praticados no âmbito da liquidação da massa insolvente”.

4. Conclusões

Parece-nos ser de aplaudir o entendimento vertido neste acórdão uniformizador do STA, o qual veio confirmar o que aquele Tribunal já vinha defendendo. Com efeito, não poderia aceitar-se que, vingando a interpretação restritiva do artigo 270.º, n.º 2, do CIRE e, por conseguinte, havendo um desrespeito pela autorização legislativa concedida ao Governo, daí não se extraíssem as necessárias consequências quanto à validade daquela norma. Estando o Governo, nos termos do n.º 2, do artigo 112.º, da CRP, vinculado ao conteúdo da lei habilitante, esta tem de ser respeitada no seu sentido e alcance, não podendo o Governo ficar aquém nem além da mesma. Aceitar o sentido da decisão arbitral contestada implicaria aceitar que o Governo tinha tomado uma opção de sujeitar a IMT operações até ali isentas desse imposto, legislando em matéria da competência exclusiva da AR, nos termos da alínea i) do artigo 165.º da CRP e ferindo o n.º 2 do artigo 270.º do CIRE de inconstitucionalidade18.
O entendimento do STA parece, de facto, concretizar uma interpretação conforme à letra e ao espírito da norma em causa. Relembre-se que, nos termos dos n.os 1 e 2 do artigo 9.º do CC19, a interpretação deve atender a elementos lógicos - (1) teleológico (ratio legis), (2) sistemático (unidade do sistema jurídico) e (3) histórico (circunstâncias em que a lei foi elaborada e condições específicas do tempo em que é aplicada) -, sendo que o resultado de uma interpretação deve ter um mínimo de correspondência na letra da lei (“ainda que imperfeitamente expresso”). Ora, desde logo quanto a este último ponto, acompanhamos David Sequeira Dinis e Luís Bértolo Rosa20, no sentido de que, se o legislador pretendesse relacionar as expressões “venda”, “permuta” e “cessão” com a empresa ou o estabelecimento, o primeiro e último conceitos sempre materializariam uma redundância. Acresce que, o CIRE prevê outras isenções fiscais aplicáveis às transmissões onerosas de imóveis no quadro de processos de insolvência (vejam-se as isenções de IMT previstas no n.º 1 do artigo 270.º, ou mesmo as relativas a Imposto do Selo, dispostas nas alíneas d) e e) do artigo 269.º, ambos do CIRE), pelo que se impõe uma interpretação coerente do sistema jurídico. Importa, ainda, não esquecer que o precedente normativo do artigo 270.º, n.º 2, do CIRE, constante do revogado CPEREF, incluía, expressamente, referência aos elementos do activo, conforme acima referido. Em face destes argumentos e, tendo em conta a finalidade do processo de insolvência - a “satisfação, pela forma mais eficiente possível, dos direitos dos credores”21 - e, ainda, por conseguinte, a razão de ser da norma em apreço, acompanhamos a posição mais ampla e ora uniformizada, que inclui no âmbito de aplicação da isenção de IMT prevista no artigo 270.º, n.º 2, do CIRE, para além da transmissão da própria empresa insolvente ou de um seu estabelecimento, a transmissão isolada de activos imobiliários da empresa, ocorrida no contexto de planos de insolvência.

__________________________
1 Doravante, “CIRE”, aprovado pela Lei n.º 39/2003, de 22 de Agosto.
2 Com efeito, em circunstâncias normais, aqueles actos estariam sujeitos a tributação, nos termos do artigo 2.º, n.º 1, do Código do IMT, aprovado pela Lei n.º 26/2003, de 30 de Julho.
3 Adiante, “IMT”.
4 Doravante, “STA”.
5 Doravante, “AT”; cfr. parecer e informação da Direcção de Serviços Jurídicos e de Contencioso, de 16.07.2008; ficha doutrinária proferida no processo n.º 20090001914-IVE n.º 431, com despacho favorável da Subdirectora-Geral dos Impostos da Área do Património, de 24.03.2009; instrução IMT 1/2014 da Direcção de Serviços do IMT; e circular n.º 10/2015, de 09.09.2015, da Directora-Geral da AT, disponíveis em www.portaldasfinancas.gov.pt.
6 No âmbito da decisão arbitral proferida no processo n.º 200/2015-T, de 21.10.2015, disponível em www.caad.org.pt, do qual foi interposto recurso com base em oposição, quanto à mesma questão fundamental de direito, com o acórdão proferido, pelo STA, no processo n.º 0949/11, em 30.05.2012.
7 Adiante, “CPEREF”, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 132/93, de 23 de Abril e revogado pelo Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18 de Março.
8 Adiante “CC”, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 47344/66, de 25 de Novembro.
9 Cfr. ponto 49 do preâmbulo do CIRE.
10 Cfr. Lei n.º 39/2003, de 22 de Agosto. Para além dos documentos elencados na nota de rodapé 5 supra, vejam-se, quanto à posição da AT, os acórdãos do STA n.º 0968/13, de 11.11.2015, e n.º 01350/15, de 20.01.2016, disponíveis em www.dgsi.pt, bem como, as decisões arbitrais n.º 95/2015-T, de 09.06.2015, e n.º 99/2015-T, de 27.10.2015, disponíveis em www.caad.org.pt.
11 Artigo 9.º, n.º 3, alínea c), da Lei n.º 39/2003, de 22 de Agosto.
12 Adiante, “AR”.
13 Para além do acórdão fundamento n.º 0949/11, acima mais bem identificado, vejam-se, nomeadamente, os seguintes acórdãos, igualmente proferidos pelo STA: n.º 01508/12, de 05.11.2014; n.º 01085/13, de 17.12.2014; n.º 0575/15, de 18.11.2015; n.º 01350/15, de 20.01.2016 (novamente); e n.º 0788/14, de 16.03.2016, disponíveis em www.dgsi.pt.
14 Cfr., por exemplo, as seguintes decisões arbitrais: n.º 95/2015-T, de 09.06.2015 (novamente); n.º 123/2015-T, de 01.09.2015; n.º 446/2015-T, de 28.02.2016; e 664/2015-T, de 14.07.2016, disponíveis em www.caad.org.pt.
15 Adiante, “CRP”.
16 Emitida na sequência do despacho do Senhor Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais n.º 14/2017 – XXI, de 26.01.2017 e substituindo os dois primeiros parágrafos do ponto III do Guia para o Cumprimento das Obrigações fiscais de Pessoas Colectivas em Situação de Insolvência, anexo à circular n.º 10/2015, de 9 de Setembro, disponível em www.portaldasfinancas.gov.pt.
17 Doravante “LGT”, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 398/98, de 17 de Dezembro. Nos termos desta disposição, incumbe à AT a revisão das suas orientações genéricas, “atendendo, nomeadamente, à jurisprudência dos tribunais superiores”. Esta foi a primeira vez que a AT aplicou o referido preceito legal, introduzido pela Lei n.º 83-C/2013, de 31 de Dezembro.
18 Veja-se MIRANDA, Jorge e MEDEIROS, Rui de, Constituição da República Portuguesa Anotada, Tomo II, Coimbra Editora, 4.ª Ed. Revista, 2010, ps. 538.º e ss.
19 Aplicável de acordo com o n.º 1 do artigo 11.º da LGT.
20 In A Isenção de Imposto Municipal sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis nas Vendas e Permutas em Processo de Insolvência, Revista da Ordem dos Advogados, Ano 75, Vols. I/II, Janeiro/Junho de 2015, ps. 465 e 466.
21 Veja-se o ponto 3 do preâmbulo e o n.º 1 do artigo 1.º do CIRE.