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Lei n.º 42/2017, de 14 de Junho – Reconhecimento e proteção de estabelecimentos e entidades de interesse histórico e cultural ou social local

Maria Olinda Garcia, Doutora em Direito, Professora da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Membro e Investigadora do Instituto Jurídico da FDUC
Convidada Abreu Advogados


1. A Lei n.42/2017 (entrada em vigor em 24 de junho) estabelece não apenas o regime de reconhecimento e proteção de estabelecimentos e entidades de interesse histórico e cultural ou social local, mas introduz também a terceira alteração à Lei n.6/2006 (que aprovou o novo regime do arrendamento urbano) e a quarta alteração ao DL n.157/2006 (que aprovou o regime das obras em prédios arrendados).
Embora a Lei n.42/2017 não se confine apenas à introdução de normas que, direta ou indiretamente, respeitam ao arrendamento urbano, esta matéria é, porém, aquela que domina os objetivos dessa lei. Efetivamente, para além das alterações introduzidas nos dois diplomas supra referidos, a Lei n.42/2017 contém normas específicas de proteção daqueles estabelecimentos e entidades que constituem desvios a regras gerais do arrendamento (art.7º). Tal proteção pressupõe que o estabelecimento ou a entidade em causa receba a adjetivação de “interesse histórico e cultural ou social local”, a qual depende do preenchimento de determinados requisitos qualificativos (art.4º e 5º), bem como da observância do correspondente procedimento administrativo de reconhecimento (art.6º).

2. Os critérios para o reconhecimento do interesse histórico e cultural ou social local estão previstos nos artigos 4º e 5º. Todavia, tal qualificação não se alcança diretamente por simples interpretação legal; pressupõe um procedimento administrativo e uma decisão de um órgão municipal.
Segundo o art.6º, esse procedimento pode ser iniciado oficiosamente (pela câmara municipal), pelo arrendatário (beneficiário direto daquela qualificação), pela junta de freguesia (onde se localiza o imóvel arrendado) ou por uma associação de defesa do património cultural.
Nos termos do n.4 do art.6º, conjugado com os números 2, 3 e 4 do art.4º, conclui-se que o deferimento do pedido de reconhecimento pressupõe a verificação cumulativa de determinados tipos de fatores, embora a categoria de circunstâncias relevantes comporte alguma variabilidade. Assim, requisito invariável e essencial a qualquer concreta hipótese de reconhecimento é a verificação das circunstâncias previstas na al. a) do n.2 do art.4º, ou seja, a longevidade da atividade a reconhecer, a qual deve ser desenvolvida há pelo menos 25 anos. Para além deste facto, tal atividade deve cumulativamente apresentar caraterísticas previstas em alguma das alíneas b), c) ou d) do n.2 do art.4º. A par da atividade (e a ela intrinsecamente ligados) também o património material e o património imaterial do estabelecimento ou da atividade devem apresentar determinadas caraterísticas reveladoras do seu significado histórico e cultural ou social local. Para este efeito, basta que se preencha uma das alíneas do n.3 e uma das alíneas do n.4 do art. 4º.
Os critérios de qualificação previstos no art.4º podem, porém, ser densificados ou particularizados através de regulamento municipal de reconhecimento, como estabelece o art.5º. Particular dificuldade interpretativa pode ser suscitada pela al. b), a qual permite aos municípios “definir critérios especiais”. Parece-nos que esses critérios especiais não deverão contrariar o recorte normativo resultante do art.4º, sob pena de através de um regulamento municipal se entrar num domínio legislativo que é da competência da Assembleia da República.

3. Ao estabelecimento comercial ou entidade qualificados como de interesse histórico e cultural ou social local passam a ter aplicação as medidas de proteção previstas no art.7º. Assim, para além da proteção resultante do regime do arrendamento urbano (com as alterações à Lei n.6/2006) e do regime das obras em prédios arrendados (com as alterações ao DL n.157/2006), a estes contratos de arrendamento passam a ser aplicáveis normas específicas em matéria de direito de preferência, como previsto nos números 3, 4 e 5 do art.7º.
O n.6 permite a cessão da posição contratual do arrendatário sem dependência do consentimento do senhorio. Todavia, tratando-se de estabelecimento comercial, essa possibilidade já se encontrava prevista no art.1112º do Código Civil.
O n.7 permite que os arrendatários realizem obras de conservação “indispensáveis à conservação e salvaguarda do locado, do estabelecimento ou da entidade” quando o senhorio, depois de interpelado para as realizar, não as inicie em tempo razoável. Dado que o art.1036º do Código Civil já permite a qualquer arrendatário a realização de obras urgentes, o alcance específico do n.7 do art.7º será o de cobrir obras que, sendo indispensáveis, não são, todavia, urgentes.

4. Alterações à Lei n.6/2006
A Lei n.42/2017 vem alterar o art.51º (cuja redação tinha sido dada pela Lei n.31/2012), acrescentando a al. d) ao seu n.4. Deste modo, o arrendatário passa a poder invocar, para efeitos da tutela prevista no art.54º, “que existe no local um estabelecimento ou uma entidade de interesse histórico e cultural ou social local”. O alcance desta norma só se compreende em articulação com o artigo 54º, o qual, por sua vez, foi alterado pela Lei n.43/2017. Assim, na hipótese de um locador ainda não ter iniciado o processo de transição de um contrato de arrendamento anterior ao DL 257/1995 para o novo regime, o arrendatário pode agora invocar a circunstância prevista nesta alínea (caso o estabelecimento ou a entidade arrendatária tenham obtido aquela qualificação) e beneficiar da proteção conferida pelo art.54º.
Por outro lado, devem ser tidas em conta as disposições transitórias previstas nos n.2 e 3 do art.13º da Lei n.42/2017, as quais suscitam algumas dúvidas interpretativas. O n.2, ao dizer que os contratos que se encontrem nas circunstâncias previstas no art.51º, n.4, al. d) “não podem ser submetidos ao NRAU pelo prazo de cinco anos a contar da entrada em vigor da presente lei” parece estar em contradição como art.54º, n.1 (com a redação dada pela Lei n.43/2017) o qual diz que estes contratos só ficam submetidos ao NRAU no prazo de 10 anos a contar da receção pelo senhorio da resposta do arrendatário. A nosso ver, deve prevalecer a tutela conferida por esta última norma, entendendo que aquilo que o n.2 do art.13º quis garantir foi uma proteção mínima e não uma discriminação daqueles contratos, a qual seria teleologicamente injustificável.
O n.3 do art.13º prevê a hipótese de o contrato já ter transitado para o NRAU, tendo, na falta de acordo das partes, passado a contrato a prazo por cinco anos. Por exemplo, se a transição ocorreu em 2013, o contrato deveria terminar, por oposição à renovação enviada pelo senhorio, em 2018. Assim, o senhorio deixa de ter este direito extintivo, pelo que o contrato se renova por mais cinco anos, desde que nele funcione estabelecimento ou entidade com a classificação de interesse histórico e cultural ou social local.

5. Alterações ao DL n.157/2006
A Lei n.42/2017 alterou o art.6º, n.7 e n.8 e o art.7º, n.4 do DL n.157/2006 (regime das obras em prédios arrendados) e aditou-lhe o art.7º-A1. O propósito destas alterações foi o de tornar mais difícil a denúncia do contrato, tanto para obras de remodelação ou restauro profundos como de demolição do imóvel, quando nele se encontre instalado um estabelecimento ou entidade de interesse histórico e cultural ou social local. Como resulta do art.7º-A, passam a estar taxativamente definidas as hipóteses nas quais o órgão municipal competente pode autorizar a demolição do imóvel onde se encontre instalado um daqueles estabelecimentos ou entidades. Por outro lado, quando a ruina do imóvel é imputável, em maior ou menor grau, ao locador, o valor da indemnização a pagar o arrendatário é significativamente aumentado, como estabelecem os n. 3 e 4 do art.7º-A.

6. Conclusão
A Lei n.42/2017 não se esgota na sua função de introduzir alterações a outros diplomas. Esta lei criou um estatuto específico de proteção de estabelecimentos comerciais e entidades de interesse histórico e cultural ou social local, o qual releva, essencialmente, quando tais estabelecimentos ou entidades funcionem em local arrendado. Embora esta qualificação se projete, sobretudo, num domínio de relações contratuais privadas (a relação de arrendamento), ela resulta de uma decisão administrativa (de um órgão municipal), baseada em critérios definidos através de conceitos indeterminados, respeitantes à atividade e ao património material e imaterial do estabelecimento ou entidade a qualificar.
O estabelecimento ou entidade que receba aquela qualificação, dado que funcionará necessariamente há mais de 25 anos, terá tutela específica do regime transitório do arredamento, prevista a Lei n.6/2006, bem como tutela particular em matéria de denúncia do contrato para realização de obras ou demolição do imóvel, como previsto no DL n.157/2006, beneficiado ainda de proteção especial em matéria de direito de preferência, cessão da posição contratual e obras de conservação.

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1 O DL n.157/2006 foi também alterado pela Lei n.43/2017, que o republicou.