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Lei n.º 54/2017, de 14 de Julho – Novo regime jurídico do contrato de trabalho do praticante desportivo, do contrato de formação desportiva e do contrato de representação ou intermediação

João Fernandes Moreira, Mestrando em Direito, Advogado Estagiário, Abreu Advogados

A diversidade normativa que constituiu uma das características basilares do ordenamento jurídico-laboral faz emergir figuras contratuais que se traduzem em verdadeiros contratos de trabalho com «regime especial», sujeitos a diplomas ou regimes jurídicos próprios, distintos do regime geral do Código do Trabalho.
Entre as diversas figuras existentes, destacamos o contrato de trabalho do praticante desportivo, do contrato de formação desportiva e do contrato de representação ou intermediação, que foram objecto de uma recente actualização quanto ao seu regime legal através da entrada em vigor da Lei n.º 54/2017, de 14 de Julho, que revogou totalmente o anterior regime da já conhecida Lei n.º 28/98, de 26 de Junho.
A nossa análise implicará uma apresentação das diversas mudanças conforme os capítulos que constituem a sistematização da lei sob análise.

I. Das disposições gerais
Relativamente às disposições gerais destaca-se a inclusão expressa do conceito de empresários desportivos no objecto do regime legal aplicável, apesar de já no anterior diploma (revogado) os empresários desportivos já serem titulares de um regime próprio e positivado na lei, estando implicitamente integrados no objecto da Lei n.º 28/98.
O legislador também inovou ao passar a prever a possibilidade de as normas do diploma legal poderem ser objecto de desenvolvimento e adaptação por convenção colectiva de trabalho, desde que tal instrumento disponha de um sentido mais favorável aos praticantes desportivos e uma vez respeitando as especificidades da modalidade desportiva onde se integra (n.º 2 do artigo 3.º da Lei n.º 54/2017).
Por fim, e em paralelo com o anterior artigo 30.º da Lei n.º 28/98, o legislador transportou para as disposições gerais a possibilidade de recurso à via arbitral (sempre voluntária), enquanto meio alternativo de resolução de litígios entre as partes do contrato, sendo sempre necessário haver uma convenção colectiva anterior e com a necessidade da competência ser entregue ao Tribunal Arbitral do Desporto.

II. Do contrato de trabalho desportivo
Relativamente à formação do contrato de trabalho desportivo propriamente dito, o legislador preconizou um conjunto de mudanças quer em matéria de forma e conteúdo, quer em relação à duração dos contratos celebrados.

  1. A primeira mudança decorre da actual necessidade de o contrato desportivo ser lavrado em triplicado, passando o terceiro exemplar a destinar-se ao registo.

  2. Quanto ao conteúdo destes contratos passa a ser imperativa a inclusão, no clausulado contratual, da identificação do empresário desportivo que tenha intervenção na celebração do contrato ou uma menção expressa que o contrato foi celebrado sem intervenção de um empresário, bem como a menção obrigatória e clara da existência de um período experimental quanto for estipulado pelas partes contratuais.

  3. Quando as partes não mencionem no contrato a data em que este se inicia, há agora uma nova presunção, relativa e sempre passível de ilisão, que determina que o contrato se tem por iniciado na data da sua celebração ou no momento das assinaturas das partes.

  4. Em matéria de registo do contrato, o legislador trouxe uma solução similar até à agora existente, ao prever que deverá existir recusa sobre o registo do contrato desportivo celebrado sempre que a entidade empregadora não consiga provar da aptidão médico-desportiva do atleta, bem nas situações em que não consiga demonstrar que providenciou pela criação de um seguro de acidentes destinado a este último.

  5. Quanto à duração do contrato, enquanto a lei anterior previa um limite máximo de oito épocas para a vigência do contrato celebrado, a Lei n.º 54/2017 trouxe uma nova limitação ao determinar que um contrato de trabalho desportivo não pode ter uma duração superior a cinco épocas desportivas.

  6. Quanto ao período experimental, o legislador positivou a regra, já anteriormente implícita na Lei n.º 28/98, de uma necessária estipulação contratual expressa das partes no n.º 1 do artigo 10.º, modificando os prazos de duração deste mecanismos de experimentação laboral - enquanto no anterior regime a duração máxima era de 30 dias, sem distinção da duração contratualizada, o actual regime da Lei n.º 54/2017 prevê que a duração máxima do período experimental variará entre 15 ou 30 dias, consoante o contrato tenha duração até duas épocas ou superior a duas épocas desportivas.


III. Dos direitos, deveres e garantias das partes
O capítulo relativo aos direitos, deveres e garantias das partes do contrato celebrado foi o mais alterado com a nova Lei n.º 54/2017, com diversas modificações relevantes, a saber:

  1. A consagração de três novos deveres especiais ligados à entidade empregadora desportiva, designadamente o dever de proceder ao registo do contrato de trabalho desportivo, bem como das modificações contratuais posteriormente acordadas; garantir aos praticantes desportivos menores as condições necessárias à conclusão da escolaridade obrigatória; promover o respeito pelas regras de ética desportiva no desempenho da sua actividade.

  2. O surgimento de um novo mecanismo de protecção dos direitos de personalidade do praticante desportivo, bem como a positivação de uma regra que proíbe actos que se traduzam em mobbing ou assédio laboral, remetendo para o conceito positivado no artigo 29.º do Código do Trabalho, o que demonstra a desnecessidade deste novo artigo 12.º da Lei n.º 54/2017, quando o regime geral do Código do Trabalho já previa um regime de proibição do assédio ao trabalhador.

  3. Quanto à contrapartida pelo trabalhado prestado pelo desportista o legislador consagrou novas regras de determinação do momento do vencimento salarial no n.º 3 do artigo 15.º da nova lei.

  4. Quanto ao exercício do poder disciplinar, o legislador extinguiu a repreensão (simples e não registada) do elenco de sanções taxativamente aplicáveis e determinou que a suspensão do trabalho com perda de retribuição passa a estar limitada a (apenas) 10 dias por infracção (reduzindo do anterior valor de 24 dias) e, em cada época, o total máximo de 30 dias (quando o anterior regime previa 60 dias). Refira-se, também, que o procedimento disciplinar passa a prescrever “decorridos 180 dias contados da data em que é instaurado quando, nesse prazo, o praticante desportivo não seja notificado da decisão final” por parte da sua entidade empregadora.

  5. Na ocorrência de uma cedência temporária de um atleta a uma entidade desportiva que não a sua empregadora original, as mudanças implicaram, por um lado, a consagração da regra da responsabilidade solidária do cedente e cessionário relativamente ao pagamento das retribuições do praticante desportivo vencidas após preconizada a cedência e, por outro lado, uma obrigação de comunicação do incumprimento por parte do atleta à parte não faltosa pelo pagamento da retribuição.


IV. Da cessação do contrato de trabalho desportivo
Em matéria de cessação ou fim da relação jurídica contratual desportiva as mudanças visaram sobretudo a melhoria da conceitualização utilizada pelo legislador e a criação de regras quanto à denúncia e quanto à responsabilidade contratual.

  1. Primeiramente, o legislador consagrou uma redacção mais correta, do ponto de vista terminológico, ao alterar a denominação de certas modalidades de cessação do contrato de trabalho desportivo nos termos do artigo 23.º da Lei n.º 54/2017, passando a utilizar conceitos juridicamente mais harmonizados com o actual Código do Trabalho.

  2. Em seguida, extinguiu a figura do “abandono do trabalho”, previsto na alínea g) do n.º 1 do artigo 26.º da Lei n.º 28/98, para consagrar o novo instituto da “denúncia por iniciativa do praticante desportivo”. Esta nova forma de cessação do contrato clarifica a maneira como o atleta poderá colocar fim ao contrato, à luz da sua liberdade contratual. Contudo, a lei exige que tal possibilidade apenas poderá ser concedida ao praticante desportivo se ambas as partes do contrato estipularem no clausulado que o desportista tem essa faculdade unilateral e ad nutum (imotivada), podendo igualmente estipular-se qual o valor indemnizatório que o praticante pagará ao empregador como compensação pelo fim da relação desportiva que os unia. Destaque, também, para o facto de, por razões de proporcionalidade, equidade e justiça social, o legislador ter optado pela possibilidade de haver intervenções das autoridades judiciais, maxime dos tribunais, para em juízo reduzirem oficiosamente ou a pedido o valor indemnizatório acordado em caso de denúncia do trabalhador imotivada.

  3. O n.º 2 do artigo 23.º esclarece que, em caso de caducidade do contrato por verificação do termo (certo ou incerto) aposto pelas partes, a cessação opera automaticamente e sem que nunca possa ser exigida qualquer compensação por nenhum dos contraentes envolvidos.

  4. Em relação à responsabilidade das partes pela cessação do contrato, a mudança mais revolucionária trazida com o novo regime da Lei n.º 54/2017 decorre do facto de se alterar o anterior regime legal que previa que, quando houvesse uma extinção da relação jurídica promovida pela entidade empregadora, o atleta mantinha um direito a ser reintegrado no clube se se provasse um despedimento ilícito (v. n.º 2 do artigo 27.º da Lei n.º 28/98). A partir de agora, consagra-se um dever de indemnização calculado com base no valor das retribuições que ao praticante seriam devidas se o contrato de trabalho tivesse cessado no seu termo, mas não se concede qualquer direito de reintegração a esse mesmo atleta. O n.º 2 do art. 24.º estabelece, ademais, que “pode ser fixada uma indemnização de valor superior (…) sempre que a parte lesada comprove que sofreu danos de montante mais elevado”.

  5. Por fim, o legislador criou um novo regime de responsabilidade sob forma solidária que abrange as situações em que o atleta faz cessar o contrato de trabalho desportivo sem que haja causa que justifique a sua resolução. Através deste novo regime de responsabilidade, perante uma situação destas presume-se que a nova entidade empregadora também participou ou influenciou, directa ou indirectamente, na resolução ilícita do trabalhador, passando a responder solidariamente com este último perante o lesado pela resolução. Sendo uma presunção relativa, é ilidível perante a prova em juízo, sendo que, no caso de a nova entidade empregadora, por não ilisão da presunção, responder solidariamente pela totalidade da indemnização, tem um direito de regresso contra o praticante na parte correspondente ao valor total das retribuições devidas ao trabalhador até termo do contrato. Uma regra de solidariedade obrigacional inovadora e, sem dúvida, essencial para suprir uma situação lacunosa até agora existente.


V. Do contrato de formação desportiva
Relativamente aos contratos de formação desportiva, o legislador adoptou um outro conjunto de mudanças nos artigos 28.º e segs..

  1. Quanto ao requisito da capacidade de exercício do menor para celebrar este tipo de contratos, o legislador optou por eliminar o requisito “do cumprimento da escolaridade obrigatória”, mantendo somente o requisito etário. Se é certo que hoje a escolaridade obrigatória em Portugal corresponde ao 12.º ano de escolaridade e não mais ao 9.º, como era a realidade ao tempo da entrada em vigor da Lei n.º 28/98, deveria, ainda assim, o legislador ter optado por definir um requisito cumulativo à idade que se relacionasse directamente com o cumprimento de objectivos escolares, para que o menor tivesse capacidade para a outorga destes contratos, como seria exemplo o requisito que exige que o menor tivesse, pelo menos, o 9.º ano de escolaridade concluído.

  2. Destaca-se, igualmente, o facto de numa situação de incumprimento dos requisitos legais de capacidade a consequência jurídica deixar de ser a mera anulabilidade do contrato de formação desportiva para passar a ser a nulidade do mesmo.

  3. Quanto às regras sobre a duração deste tipo contratual, o legislador optou por diminuir de quatro para três épocas desportivas a duração máxima destes contratos de formação, sendo que em caso do formando completar 18 anos de idade, o contrato caducará, podendo, excepcionalmente, ser prorrogado por mais uma época, através de um acordo mútuo das partes. Uma solução que permite libertar o jovem atleta que ao atingir a maioridade poderá desejar cessar a sua actividade desportiva e se dedicar em exclusivo a outras actividades, v.g., académicas, podendo a manutenção do contrato constituir-se como prejudicial a essa intenção.

  4. Por fim, em matéria de contratos de formação desportiva, o legislador optou por extinguir a figura da “promessa de contrato de trabalho desportivo”, sendo que nada na nova lei impede que a entidade formadora e o formando celebrem um contrato de promessa de contrato de trabalho desportivo com base nos artigos 8.º da Lei n.º 54/2017 e 103.º do Código do Trabalho.


VI. Dos empresários desportivos
Enquanto a Lei n.º 28/98 qualificava como contrato de mandato o negócio pelo qual um empresário poderia representar um desportista na celebração de contratos desportivos com uma dada entidade empregadora, a Lei n.º 54/2017 adoptou uma nova qualificação. Eliminando o artigo relativo somente à retribuição do empresário desportivo (v. art.º 24.º da Lei n.º 28/98), o legislador criou uma nova norma com epígrafe “contrato de representação ou intermediação”. Este novo artigo 38.º prevê que:

  1. O contrato de representação ou intermediação é um contrato de prestação de serviço celebrado entre um empresário desportivo e um praticante desportivo ou uma entidade empregadora desportiva,

  2. estando sujeito a forma escrita, dotado de um clausulado detalhado quanto às prestações devidas pelo empresário à contraparte negocial e,

  3. especificando a remuneração que as partes acordaram que deveria ser paga à empresário como contrapartida da sua actividade de representação.

Este contrato tem, imperativamente, uma duração determinada, limitada a dois anos de duração máxima, sem possibilidade de aposição de cláusulas de renovação automática, vigorando nestes contratos a regra da renovação dependente da vontade das partes.
Sublinhe-se igualmente a nova redação do art. 37.º, sucessor do anterior art. 23º, relativo ao “registo dos empresários desportivos”. Em especial, o n. º 3: “São nulos os contratos de representação ou intermediação celebrados com empresários desportivos que não se encontrem inscritos no registo referido no presente artigo [n.º 1: “(…) os empresários desportivos que pretendam exercer a respetiva atividade devem registar -se como tal junto da federação desportiva, que, para este efeito, deve dispor de um registo organizado e atualizado.”].

VII. Do novo regime sancionatório e da regra da nulidade
Uma das novidades decorrentes da Lei n.º 54/2017 decorre da criação de um novo regime sancionatório, com a positivação de contra-ordenacões nas modalidades de muito graves, graves e leves, consoante a norma legal que o infractor esteja a violar com base na sua conduta.
Por fim, no artigo 42.º, o legislador aditou uma norma que estabelece que serão tidas como nulas todas as cláusulas contratuais que violem o disposto da Lei n.º 54/2017 ou procurem alcançar um efeito prático idêntico ao que a lei quis proibir. Perante o silêncio do legislador, a melhor solução será de aplicar, igualmente, o instituto da redução contratual nos termos consagradas na lei laboral.