Fórum Jurídico

Texto PequenoTexto NormalTexto Grande

 

Decreto-Lei n.º 79/2017, de 30 de Junho – Altera o Código das Sociedades Comerciais e o Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas

Alexandre de Soveral Martins, Doutor em Direito, Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Membro e Investigador do Instituto Jurídico da FDUC
Convidado Abreu Advogados


Com a publicação do DL 79/2017 foram introduzidas significativas alterações ao CIRE. Destacamos as que dizem respeito ao PER e o novo regime do PEPAP, temas a que dedicaremos este breve estudo. Foi igualmente inserida no CSC pelo mesmo diploma a possibilidade de, em certos casos, aumentar o capital social por comunicação, mas dessa novidade não vamos aqui falar.

1. O PER (Processo Especial de Revitalização) para as empresas, o PEPAP (Processo Especial para Acordo de Pagamentos) para os devedores que não sejam «empresas»
Da leitura do DL 79/2017 ressalta, em primeiro lugar, que o PER passou a ser apenas aplicável a «empresas». Os arts. 1.º, e 17.º-A a I foram, por isso, alterados de forma a que se tornasse claro isso mesmo. Por sua vez, o PEPAP será aplicável ao devedor que não seja empresa. Pretendeu-se, assim, superar as divergências doutrinais e jurisprudenciais que se faziam sentir acerca do âmbito de aplicação do PER1.
Parece, desde logo, discutível que no caso das pessoas singulares se deva estabelecer a distinção entre devedor «empresa» e devedor «não empresa», confundindo sujeito e objeto. A noção de empresa fixada no art. 5.º do CIRE não parece ser a de um sujeito: é uma organização de capital e de trabalho destinada ao exercício de qualquer atividade económica2. Veja-se que a própria organização surge mencionada como tendo sido destinada para o exercício de atividade económica: o destino é fixado de fora da própria organização, dando assim a entender que a empresa não é sujeito.
Só que o termo «empresa» usado no âmbito do novo regime do PER parece significar «sujeito»: o sujeito devedor que manifesta vontade, que apresenta o requerimento, etc. O mesmo se diga quanto ao PEPAP. E isto não deixará de dar lugar a dúvidas e dificuldades.
Mas, acima de tudo, não se vê bem qual a vantagem em criar um novo regime que é praticamente decalcado do que encontramos para o PER. Não teria sido melhor manter o PER e fazer-lhe as necessárias adaptações quanto aos devedores pessoas singulares que não sejam empresários?

2. No PER, a exigência aumenta
As alterações propostas visam, claramente, introduzir mais exigência no regime do PER. Com efeito, lê-se no Preâmbulo do DL 79/2017 que se pretende apostar na sua credibilização e no reforço da transparência.
Aquela maior exigência resulta, desde logo, da necessidade da apresentação da declaração subscrita por contabilista certificado ou ROC, consoante os casos, de que a «empresa» não se encontra em situação de insolvência atual (art. 17.º-A, 2, do CIRE). Devemos saudar esta alteração.
É igualmente digna de uma nota positiva a introdução da necessidade de que os credores que manifestam vontade de encetar negociações sejam titulares de créditos não subordinados de certa importância (cfr. o art. 17.º-C, 1 e 6).

3. A oportunidade de corrigir alguns lapsos
O DL 79/2017 foi aproveitado para corrigir vários aspetos que tínhamos já criticado3. Destacamos, em primeiro lugar, a atenuação do caráter confuso que tinha o art. 17.º-C.
Com efeito, na redação anterior do art. 17.º-C, n.º 3, surgia a expressão «munido da declaração […] o devedor deve, de imediato, adotar os seguintes procedimentos». A «comunicação» não se confundia com a «declaração». Mas sempre defendemos que mais valia ver escrito na lei que a «empresa» (o devedor empresário) tem que apresentar requerimento acompanhado, entre outras coisas, daquela declaração. E foi precisamente isso que ficou a constar agora da nova redação do art. 17.º-C, 3 (cfr., para o PEPAP, o art. 222.º-C, 3).
Mais grave, porém, era o facto de o despacho a nomear o administrador judicial provisório surgir perdido no meio da al. a) do n.º 3. Trata-se de um despacho importantíssimo e que terá relevantes efeitos, que merecia por isso outro destaque. Tanto mais que o art. 17.º-C tinha (e tem) a epígrafe «Requerimento e formalidades». Esse aspeto também foi corrigido e vemos agora surgir um n.º 4 no art. 17.º-C que autonomiza o tratamento dado ao despacho a nomear o referido administrador (cfr., para o PEPAP, o art. 222.º-C, 4).
No entanto, há um aspeto que merece ser destacado e que não foi objeto de atenção do legislador. É que no n.º 1 do art. 17.º-C começa-se por dizer que o PER se inicia por meio de uma manifestação de vontade de encetar negociações. Mas, na verdade, não basta que essa manifestação de vontade tenha lugar para que o PER se inicie (cfr., para o PEPAP, o art. 222.º-C, 1).
A oportunidade poderia ter sido aproveitada, também, para melhorar a redação do art. 17.º-G. Há ainda algum espaço para continuar a discutir, perante os n.ºs 3, 4 e 7 e existindo situação de insolvência da «empresa», se deve iniciar-se um processo de insolvência que não se confunde com o PER ou se é o PER que, efetivamente, se converte em processo de insolvência (para o PEPAP, v. o art. 222.º-G, 3, 4 e 8). O novo art. 17.º-J (bem como, para o PEPAP, o art. 222.º-J) limitará, é certo, o relevo da questão.

4. O art. 17.º-F, 3, e o prazo para alegar quanto ao plano depositado
O regime de aprovação do plano de recuperação conducente à revitalização do devedor foi consideravelmente alterado. Agora, o art. 17.º-F começa por estabelecer que o plano (a versão final) deverá ser depositado no tribunal (acompanhado de todos os elementos previstos no art. 195.º) e publicada no CITIUS a indicação do depósito (quanto ao PEPAP, o art. 222.º-F, 1, tem diferente redação).
Após essa publicação, qualquer credor tem a possibilidade de alegar o que tiver por conveniente acerca do plano. Nomeadamente, quanto a circunstâncias suscetívels de levar à não homologação do mesmo. A empresa pode então alterar o plano e depositar nova versão no prazo de cinco dias. Se o fizer, é feita nova publicação no CITIUS «advertindo da junção ou não junção de nova versão».
Por sua vez, o art. 17.º-F, 3, estabelece um prazo de 10 dias que servirá para que, durante o mesmo, tenha lugar a votação do plano e para que «qualquer interessado» possa solicitar a não homologação do plano (para o PEPAP, v. o art. 222.º-F, 2). Isto pode obrigar a que seja solicitada a não homologação num momento em que ainda não se sabe se o plano vai ou não ser aprovado. Se o prazo para requerer a não homologação só começasse a correr depois de se conhecer o sentido da votação, dispensava-se o requerimento de não homologação de planos não aprovados…

5. Outras novidades importantes contidas no art. 17.º-F
O art. 17.º-F contém várias outras novidades que merecem destaque:

  1. É clarificada a situação dos créditos que tenham sido impugnados (n.º 5; para o PEPAP, v. o art. 222.º-F, 3);

  2. Torna-se evidente a possibilidade de aplicação de várias normas constantes do regime do plano de insolvência (n.º 7);

  3. Manda-se aplicar o regime dos n.ºs 2 a 4, 6 e 7 do art. 17.º-G, no caso de o juiz não homologar o acordo (n.º 8; para o PEPAP, v. o art. 222.º-F, 6);

  4. Clarifica-se o âmbito dos créditos abrangidos pela decisão judicial quanto ao acordo (n.º 10; para o PEPAP, v. o art. 222.º-F, 8);

  5. Determina-se que se aplique ao plano de recuperação o art. 218.º, 1 (n.º 12; para o PEPAP, v. o art. 222.º-F, 10);

  6. Limita-se o recurso a PERs sucessivos (n.º 13; para o PEPAP, v. o art. 222.º-F, 11).

6. Efeitos do despacho que nomeia o AJP
6.1. Suspensão de prazos de prescrição e de caducidade
O art. 17.º-E, 7, prevê agora que o despacho que nomeia o AJP tenha também como efeito a «suspensão de todos os prazos de prescrição e de caducidade oponíveis pela empresa, durante todo o tempo em que perdurarem as negociações e até à prolação dos despachos de homologação, de não homologação, caso não seja aprovado plano de recuperação até ao apuramento do resultado da votação ou até ao encerramento das negociações nos termos previstos nos nºs 1 e 5 do artigo 17.º-G» (para o PEPAP, v. o art. 222.º-E, 7). Trata-se, evidentemente, de uma solução que visa evitar que a empresa se sirva do PER apenas para ganhar tempo e assim procurar fazer com que o decurso do tempo conduza à prescrição ou caducidade.

6.2. Os serviços públicos essenciais
O despacho de nomeação do AJP impedirá que seja suspensa a prestação dos serviços públicos essenciais previstos no art. 17.º-E, 8, e durante o tempo ali mencionado (para o PEPAP, v. o art. 222.º-E, 8). Mas devemos perguntar se a «empresa» que já não consegue pagar os custos com esses serviços ainda é «suscetível de recuperação» (art. 17.º-A, 1). De qualquer modo, o preço não pago dos serviços públicos essenciais que sejam prestados durante o período em causa será considerado dívida da massa («sem prejuízo do disposto no artigo 10.º da Lei n.º 23/96»: n.º 9; para o PEPAP, v. o art. 222.º-E, 9).

7. As sociedades em relação de domínio ou de grupo
É sabido que o tratamento isolado da situação de uma sociedade que esteja em relação de domínio ou de grupo com outras que também tenham de recorrer a um PER pode conduzir a perdas significativas de valor. O DL 79/2017 contém várias soluções que procuram fazer diminuir esse risco.
O art. 17.º-C, 7, estabelece agora que o juiz, oficiosamente ou a requerimento do AJP ou de «todas» as empresas em relação de domínio ou de grupo (de acordo com o disposto no CSC) que tenham intentado um PER, apensa aos autos os processos especiais de revitalização intentados por sociedades comerciais com que a empresa esteja numa daquelas relações. No entanto, essa apensação só pode ser requerida até ao início do prazo de negociações previsto no art. 17.º-D, 5, «no processo ao qual os demais devam ser apensados, aplicando-se, com as necessárias adaptações o disposto no n.º 4 do artigo 86.º».
Por outro lado, como a nomeação do AJP se rege pelo disposto nos arts. 32.º a 34.º «com as devidas adaptações» (art. 17.º-C, 4), também há que ter em conta que está agora prevista a possibilidade de o juiz ter em conta proposta feita na petição inicial «quando o devedor seja uma sociedade comercial em relação de domínio ou de grupo com outras sociedades cuja insolvência haja sido requerida […]» (art. 32.º, 1; claro que a última parte reproduzida carece das «devidas adaptações»…).
As sociedades em relação de domínio ou de grupo são ainda objeto da atenção do novo n.º 7 do art 17.º-I. Como é sabido, o PER pode iniciar-se através de apresentação de acordo extrajudicial de recuperação (art. 17.º-I, 1, que remete agora para a maioria de votos prevista no art. 17.º-F, 5, e não para o art. 212.º, 1). Aquele novo n.º 7 permite igualmente que a empresa que apresenta o acordo requeira a apensação de outro PER que se tenha iniciado ao abrigo do art. 17.º-I e nos termos do art. 17.º-C, 7: ou seja, que tenha sido intentado por sociedade comercial com que a empresa se encontre em relação de domínio ou de grupo. Embora o art. 17.º-I, 7, utilize o singular («processo especial de revitalização»), não parece afastada a possibilidade de ser requerida a apensação de dois ou mais PER.

8. O novo art. 17.º-J
O DL 79/2017 acrescentou um novo art. 17.º-J ao CIRE que trata do encerramento do PER e da cessação de funções do AJP, permitindo encarar com mais segurança vários problemas que foram surgindo ao intérprete (para o PEPAP, v. o art. 222.º-J).
Desde logo, porque se torna mais fácil distinguir o processo negocial, de um lado, e o PER, do outro.
Além disso, torna-se mais claro até que momento o AJP se mantém em funções no PER. E, dessa forma, também se facilita a interpretação do art. 52.º, 1, parte final, pois aí se mantém a «preferência, na primeira designação, ao administrador judicial provisório em exercício de funções à data da declaração de insolvência». Ao contrário do que sucedia até aqui, esta preferência vale agora também para os casos em que o PER dá lugar a um processo de insolvência (cfr. o art. 17.º-G, 3, 4 e 7). É que o PER só se considera encerrado após «o cumprimento do disposto nos nºs 1 a 5 do artigo 17.º-G nos casos em que não tena sido aprovado ou homologado plano de recuperação». E o art. 17.º-G, 3, faz precisamente referência à declaração de insolvência pelo juiz.

9. O art. 222.º-G, 5
Quanto ao regime do PEPAP, há ainda um preceito que merece uma referência final: trata-se do n.º 5 do art. 222.º-G. O seu relevo prático é grande. Convém começar por lembrar que estamos agora a falar de um processo especial que diz respeito a devedores que não são empresas. Abrange, por isso, as pessoas singulares que não exerçam atividade empresarial. Essas pessoas singulares podem apresentar plano de pagamentos ou requerer a exoneração do passivo restante.
Porém, perante o anterior regime do PER (art. 17.º-G), qualquer dessas possibilidades parecia não encontrar acolhimento na letra da lei se o devedor ou a maioria de credores prevista no art. 17.º-D, 3, então em vigor concluía antecipadamente que o acordo não era alcançável ou se era ultrapassado o prazo para as negociações e o AJP entendia que o devedor estava em situação de insolvência. Nesses casos, o AJP devia requerer a insolvência do devedor e o juiz declarava essa insolvência no prazo de três dias úteis.
Sucede, porém, que o plano de pagamentos deve ser apresentado pelo devedor com a sua petição inicial do processo de insolvência (art. 251.º) ou, tendo a declaração de insolvência sido pedida por terceiro, deve constar do ato de citação do devedor pessoa singular a indicação da possibilidade de apresentação daquele plano em alternativa à contestação (art. 253.º). Mas o art. 17.º-G, 3, 4 e 7 não reservavam um momento para a apresentação do plano de pagamentos.
Por sua vez, o art. 236.º, 1, dispõe, entre outras coisas, que o pedido de exoneração do passivo restante é feito pelo devedor no requerimento de apresentação à insolvência ou no prazo de 10 dias posteriores à citação4. Mais uma vez, o regime parecia dificilmente conciliável com o disposto no art. 17.º-G.
O que vemos agora surgir escrito no art. 222.º-G, 5, é que, sendo feita a comunicação com o parecer do AJP «no sentido da insolvência do devedor», o tribunal notifica o devedor «para, querendo e caso se mostrem preenchidos os respetivos pressupostos, em cinco dias, apresentar plano de pagamentos nos termos do disposto nos artigo[s] 249.º e seguintes ou requerer a exoneração do passivo restante nos termos do disposto nos artigos 235.º e seguintes». É uma solução que não pode deixar de ser aplaudida.


____________________
1 Sobre as mesmas, v. o nosso Um curso de direito da insolvência, 2.ª ed., Almedina, Coimbra, 2016, p. 511, em nota, e Catarina Serra, O Processo Especial de Revitalização na jurisprudência, 2.ª ed., Almedina, Coimbra, 2017, p. 35 e ss..
2 Sobre a noção, Coutinho de Abreu, Curso de direito comercial, I, 10.ª ed., Almedina, Coimbra, 2016, p. 339 e s..
3 Para uma perspetiva crítica, v. o nosso Um curso de direito da insolvência, cit., p. 509 e ss..
4 O art. 236.º, 1, foi também alterado pelo DL 79/2017 para passar a ser tidos em conta os casos em que foi dispensada a realização de assembleia de apreciação do relatório.