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Comentário ao Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 8/2017, de 11 de Outubro de 2017 (Proc. n.º 895/14.0PGLSB.L1 -A.S1; DR, 1.ª Série, n.º 224, de 21 de Novembro): Uniformização de jurisprudência – Declarações para memória futura como prova em processo penal

João Fernandes Moreira, Mestrando em Direito, Advogado Estagiário, Abreu Advogados

I – Do enquadramento
No passado dia 11 de Outubro de 2017, os Juízes Conselheiros do Supremo Tribunal de Justiça foram chamados a pronunciar-se relativamente a uma questão controvertida do Direito Penal da prova. Este chamamento foi um impulso do surgimento de decisões opostas dos Tribunais das Relações de Lisboa e de Guimarães (doravante “TRL” e TRG”).
A questão discutida e analisada assentou, fundamentalmente, em saber se se constitui ou não como obrigatório proceder à leitura em plena audiência de julgamento das «declarações para memória futura» (cfr. artigo 271.º do Código de Processo Penal) que tenham sido produzidas em fase processual anterior, de modo a que os princípios do contraditório, da oralidade e da imediação possam ser respeitados e o tribunal possa formar a sua convicção sem que exista qualquer nulidade em tal acto.
Na presente hipótese concreta, o recorrente foi condenado a uma pena de prisão de 10 anos, resultante do cúmulo jurídico de penas aplicadas pelo cometimento, como autor material, de dois crimes de abuso sexual de crianças p. e p. pelas disposições dos artigos 171.º, n.os 1 e 2, e 177.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal. Neste processo, uma das ofendidas, pela prática do tipo legal de crime mencionado, foi inquirida na fase de inquérito a fim de serem prestadas declarações para memória futura, que, mais tarde, não foram lidas na audiência de julgamento, mas foram utilizadas na formação parcial da convicção judicativa. Desta forma, o arguido recorreu para o TRL com fundamento na existência de uma nulidade insanável do acto processual em causa (audiência de julgamento), pelo facto de não se terem cumprido os princípios do contraditório, da imediação e oralidade (quanto a estes últimos, referindo-se expressamente ao artigo 355.º do CPP), uma vez que não se efectivou a leitura em audiência ou, pelo menos, a transcrição para acta das declarações (para memória futura) prestadas pela ofendida em fase de inquérito.
O TRL, em acórdão datado de 05-04-2016, julgou improcedente esta pretensão dizendo que “as declarações prestadas para memória futura podem ser levadas em linha de conta em julgamento, independentemente da sua leitura, que nenhum efeito prático passaria a ter (…), pelo que não se verifica, no caso, que o Tribunal a quo tenha, de alguma forma, baseado a sua decisão em prova proibida, por violação dos princípios da oralidade ou da imediação consagrados no artigo 355.º do C.P.Penal.”.
Insatisfeito, o arguido recorre mais uma vez para o 3.º grau de jurisdição, agora com fundamento em oposição de acórdãos, chegando-se, assim, ao presente aresto em análise. No recurso intentado, o arguido invoca que sobre a mesma questão o TRG, em acórdão datado de 07-02-2011, proferido no âmbito do Proc. 224/07.0GAPTL.G1, decidiu que, “para serem tomadas em consideração na formação da convicção do tribunal, as declarações para memória futura devem ser obrigatoriamente lidas em audiência de julgamento, sendo irrelevante, para o efeito, que os mandatários declarem prescindir de tal leitura”.

II – Da decisão uniformizada
Perante este manifesto contraste de decisões é possível desde logo adiantar que o Pleno das Secções Criminais do STJ acordou em julgar improcedente a pretensão do arguido, fixando, de ora em diante, como jurisprudência qualificada que “as declarações para memória futura, prestadas nos termos do artigo 271.º do Código do Processo Penal, não têm de ser obrigatoriamente lidas em audiência de julgamento para que possam ser tomadas em conta e constituir prova validamente utilizável para a formação da convicção do tribunal, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 355.º e 356.º, n.º 2, alínea a), do mesmo Código”.
Como afirmou o STJ, “a situação de facto fundamental é em todo semelhante em ambos os acórdãos em confronto: a vítima prestou declarações para memória futura que não foram lidas em julgamento.”. Cumpre saber quais os fundamentos que devem ser utilizados para se alcançar a solução preconizada.
Em primeiro lugar, saliente-se que todo o processo penal português assenta, entre vários princípios, num já fortemente cristalizado princípio do contraditório, previsto no n.os 1 e 5, in fine, do artigo 32.º da Constituição e nos princípios da imediação e da oralidade (cf. artigo 355.º do CPP), os quais são fundamentais para a definição de uma identidade tendencialmente acusatória do nosso modelo processual penal. Foi na relação com esta tríade principiológica que se deu o problema essencial discutido no acórdão em apreço, uma vez que foi do entendimento do arguido que o facto de não se ter realizado uma leitura das declarações da ofendida na audiência de julgamento não só impediu o seu contraditório perante o decisor judicial, como violou, de forma manifesta, o preconizado na norma do artigo 355.º, uma vez que o tribunal não chegou a ter contacto directo e imediato com uma prova essencial à decisão final.

Determina o n.º 1 do artigo 355.º do CPP que “não valem em julgamento, nomeadamente para o efeito de formação da convicção do tribunal, quaisquer provas que não tiverem sido produzidas ou examinadas em audiência”. Isto é, com base no princípio da imediação e da oralidade, é regra que a decisão final do julgador tenha de se basear em tudo o que ouviu e/ou observou durante a audiência de julgamento.
Mas, como toda a regra tem as suas excepções, prevê o n.º 2 do mesmo artigo que “ressalvam-se do disposto no número anterior as provas contidas em actos processuais cuja leitura, visualização ou audição em audiência sejam permitidas, nos termos dos artigos seguintes” - entre os quais destacamos, para este caso, o artigo 356.º, mais concretamente a alínea a), do n.º 2, que remete, expressis verbis, para o artigo 271.º do CPP.
Que conclusões o STJ retirou da hermenêutica triangular dos artigos 271.º, 355.º e 356.º, n.º 2, alínea a)?
Primeiro, seguiu na rota da doutrina de Maia Costa, que explica que, actualmente, “o âmbito de recolha das declarações para memória futura (…)” não serve apenas “para prevenir o perigo de perda da prova, mas para protecção das vítimas, especialmente das menores”1, salientando ainda o Autor que “a recolha de declarações para memória futura constitui uma excepção ao princípio da imediação, pois as provas recolhidas sob a égide do juiz de instrução podem ser tomadas em conta no julgamento. E daí o carácter contraditório que é conferido à diligência, em que é obrigatória a presença do MP e do defensor”2.
Secondo, destacou um acervo de outros autores que demonstra, de forma clara, que a doutrina mais relevante patrocina um idêntico entendimento.
Em terceiro lugar, o STJ navegou na sua jurisprudência maioritária (bem como na jurisprudência dos Tribunais da Relação), da qual se convoca e destaca o Acórdão de 09-05-2007 (Processo n.º 247/2007). Este decidiu que, relativamente ao meio de prova obtido com declarações para memória futura, “as garantias de defesa do arguido e o princípio estruturante do processo penal do contraditório são plenamente alcançadas com a circunstância de esta prova antecipada ser produzida perante um juiz, que dirige essa produção, com a faculdade de o arguido ser assistido por defensor e com o facto de a prova poder ser aproveitada, examinada e impugnada por quaisquer provas e, consequentemente, descredibilizada, em audiência de julgamento. Por tal razão, nem necessário se torna que o defensor do arguido compareça, sendo facultativo tal ato processual. E apesar de tal prova ser produzida, ou poder ser, à margem da presença do arguido e seu defensor, ela pode ser valorada em julgamento, dadas as especiais cautelas de que a lei faz rodear a sua produção, constando de auto, presidida por um juiz, podendo os interessados intervir na diligência.”.
Compreendeu o STJ que, havendo um conjunto de regras específicas que tratam e disciplinam de forma rigorosa o resultado probatório decorrente das declarações para memória futura, os objectivos de protecção dos princípios fundamentais do contraditório, da imediação e da oralidade encontram-se salvaguardados, uma vez que este meio típico de prova respeita, na íntegra, os limites impostos pelo nosso Estado de Direito. Em síntese, não se retira do sistema processual penal português qualquer sentido de obrigatoriedade quanto à leitura de declarações para memória futura na audiência de julgamento para que estas possam influenciar, de forma directa, a convicção final do tribunal quanto à decisão a ser tomada no caso concreto.

III – Dos votos de vencido
Contudo, a decisão no Pleno das Secções Criminais do STJ não foi unânime, uma vez que se registaram votos de vencido relativamente a esta decisão uniformizadora.
Das suas declarações resulta que não pode ser de todo possível afirmar, de forma clara e manifesta, que a leitura das declarações para memória futura não seja obrigatória, uma vez que o STJ se limitou a invocar o artigo 356.º, n.º 2, alínea a), sem se preocupar em mencionar o n.º 9 do artigo, que reza que “a permissão de uma leitura, visualização ou audição e a sua justificação legal ficam a constar da acta, sob pena de nulidade”. Com base neste último número do artigo 356.º do CPP, os Conselheiros autores das declarações de voto entendem que se a lei determina uma consignação em acta da permissão de uma leitura, visualização ou audição das declarações para memória futura, tem de se entender que tal reforça uma certa obrigatoriedade da sua leitura na audiência em que tais declarações não foram produzidas, até mesmo porque o legislador mantém, através desse n.º 9, um desejo em garantir que todos os sujeitos processuais tenham um conhecimento pleno e completo dessas mesmas declarações.

IV – Conclusão
O Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 8/2017, de 11 de Outubro procurou analisar a (não) obrigatoriedade da leitura na audiência de julgamento das declarações para memória futura produzidas em fase anterior.
Procurando efectuar uma interpretação cuidada das normas relevantes para o enquadramento da questão sub judice, o STJ concluiu que, do modo como o legislador ordinário configurou a redacção dos artigos 355.º e 356.º do CPP, não é do interesse do próprio andamento do iter penal que as declarações para memória futura recolhidas em fase anterior sejam lidas na audiência de julgamento. Considerando em particular a letra do n.º 2 do artigo 355.º do CPP, emerge a excepção consagrada pela jurisprudência uniformizada de que “as declarações para memória futura, prestadas nos termos do artigo 271.º do Código do Processo Penal, não têm de ser obrigatoriamente lidas em audiência de julgamento para que possam ser tomadas em conta e constituir prova validamente utilizável para a formação da convicção do tribunal”.
Antes de mais, na medida em que se trata de um meio probatório típico, ou seja, já normativamente disciplinado, conduzindo a que o seu resultado seja um expoente respeitador dos diversos princípios em que assenta o processo penal português.
De seguida, visto que o resultado é sempre passível de ser impugnado e afastado por outros meios de prova legalmente admissíveis, entender-se-á que o arguido mantém sempre a possibilidade de defesa, podendo levar a juízo outros meios de prova que influenciem em sentido contrário a decisão do julgador, pelo que se não alcança como possam estar em perigo as garantias de defesa que encontram genérico acolhimento constitucional no art. 32.º da CRP.
Last but not the least, teremos que destacar o argumento sobre a necessidade de protecção das vítimas de crimes particularmente graves como são exemplo os delitos contra a autodeterminação sexual. A importância de garantir que as vítimas deste género de crimes não sejam colocadas em situações emocionalmente desgastantes, obrigando-as a um reviver mental da conduta lesiva do arguido sobre os bens jurídicos pessoais lesados, obriga a um cuidado mais especial do tratamento destas modalidades de prova, o qual é já adequadamente garantido – também do prisma da defesa do arguido – pela produção da prova em causa perante um juiz de instrução, com representação de defensor e com admissibilidade de perguntas à autoridade judiciária que preside à diligência. Nos crimes dessa natureza, a protecção da vítima e das suas emoções tornam-se objectivos prementes para todos os sujeitos e intervenientes processuais. O legislador compreendeu que, uma vez organizando-se um procedimento de recolha de declarações do ofendido em que este já conta tudo o que se passou ao momento da prática do ilícito e em que o MP e o defensor do arguido já estavam presentes, será um ónus demasiado desequilibrado para esse declarante ser obrigatória a leitura dessas declarações em julgamento, com eventual necessidade de ser de novo ouvido, se mais não for, ao abrigo do princípio da investigação judicial do art. 340.º do CPP.


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1 MAIA COSTA, Eduardo, et alii, Código de Processo Penal Comentado, 2016, 2.ª Edição Revista, Almedina, Coimbra, p. 917-918.
2 MAIA COSTA, Eduardo, et alii, ob. cit., p. 917.