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Lei n.º 55/2017, de 17 de Julho – Alarga o âmbito da acção especial de reconhecimento da existência de contrato de trabalho e os mecanismos processuais de combate à ocultação de relações de trabalho subordinado; segunda alteração à Lei n.º 107/2009, de 14 de Setembro, e quinta alteração ao Código de Processo do Trabalho

Gonçalo Delicado, Mestrando em Direito, Pós-Graduado em Direito do Trabalho pela Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa e em Direito do Trabalho e da Segurança Social pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Advogado, Abreu Advogados
Marta Carvalho Esteves, Advogada Estagiária, Abreu Advogados (2015-2017)


1. A Lei n.º 55/2017, de 17 de Julho1, aprofunda o regime jurídico da acção de reconhecimento da existência de contrato de trabalho2 e alarga os mecanismos processuais de combate aos falsos recibos verdes e a todas as formas de trabalho não declarado, incluindo falsos estágios e falso voluntariado, conforme determina o seu artigo 1.º. Com a entrada em vigor da Lei n.º 55/2017, procede-se à alteração da Lei n.º 107/2009, de 14 de Setembro3, ampliando o âmbito das competências da Autoridade para as Condições do Trabalho4 para o procedimento contra-ordenacional inicial, prevendo-se agora que a ACT tem competência para a instauração do procedimento previsto para o combate aos falsos recibos verdes e a todas as formas de trabalho não declarado, incluindo falsos estágios e falso voluntariado “sempre que verifique, na relação entre a pessoa que presta uma actividade e outra ou outras que dela beneficiam, a existência de características de contrato de trabalho, nos termos previstos no n.º 1 do artigo 12.º do Código do Trabalho”5.

2. Quanto ao procedimento a adoptar pela ACT, refira-se, em primeiro lugar, que a epígrafe do artigo 15.º-A da Lei n.º 107/2009 foi alterada, passando a ter o seguinte conteúdo: “Procedimento a adoptar em caso de inadequação do vínculo que titula a prestação de uma actividade em condições correspondentes às do contrato de trabalho”. Foi também alterado o n.º 1 do mesmo preceito: o procedimento a adoptar pela ACT inicia-se quando o inspector do trabalho verifique, na relação entre a pessoa que presta uma actividade e outra ou outras que dela beneficiam, a existência de características de contrato de trabalho, nos termos previstos no n.º 1 do artigo 12.º do Código do Trabalho. Ainda no âmbito do referido artigo, procedeu-se a uma alteração quanto à competência territorial dos serviços do Ministério Público. Anteriormente, quando a situação do trabalhador não era regularizada dentro do prazo fixado pela lei, a ACT remetia a participação dos factos para os serviços do Ministério Público do tribunal da área de residência do trabalhador. Actualmente, com as presentes alterações, atribui-se competência territorial aos serviços do Ministério Público do tribunal do lugar da prestação da actividade.

3. No Código do Processo do Trabalho6 são alterados os artigos 5.º-A e 186.º-O e é, ainda, aditado o artigo 186.º-S com a epígrafe “Procedimento cautelar de suspensão de despedimento subsequente a auto de inspecção previsto no artigo 15.º-A da Lei n.º 107/2009, de 14 de Setembro”. Estas alterações ao CPT constituem as alterações mais significativas a este regime.

4. A alteração processual ao nível do CPT abrange o suprimento da audiência de partes que precedia imediatamente o julgamento, nos termos do artigo 186.º-O, n.º 1, do CPT, na qual intervinham o prestador e o beneficiário da actividade. Na audiência de partes, o juiz procurava conciliá-las, logrando obter um acordo7, tal não sucedendo agora com as alterações introduzidas pela presente lei, já que terminada a fase dos articulados, é de imediato marcada a data para o julgamento. Isto significa que, de ora em diante, o julgamento inicia-se sem uma prévia tentativa de conciliação entre o prestador e beneficiário da actividade.

5. Ainda no âmbito das alterações ao CPT, o artigo 186.º-O estabelece agora que, uma vez proferida a sentença que reconheça a existência de um contrato de trabalho, na mesma é fixada a data de início da relação laboral, isto é, a data de início do contrato de trabalho, sendo a mesma comunicada à ACT e à Segurança Social. Prevê-se expressamente que tal comunicação tem como objectivo a regularização das contribuições desde a data em que se iniciou a relação laboral.

6. Com esta lei, clarifica-se ainda que o Ministério Público tem efectivamente legitimidade activa na ARECT, bem como nos procedimentos cautelares de suspensão de despedimento, em concreto, quando o despedimento ocorre entre a data de notificação do empregador do auto de inspecção da ACT e o trânsito em julgado da ARECT8.

7. Com referência ao procedimento cautelar de suspensão de despedimento, existe, ainda, uma alteração de singular importância, com o aditamento do artigo 186.º-S ao CPT. Assim, o Ministério Público passa a ter legitimidade para desencadear este procedimento cautelar, nas seguintes situações:

  1. Quando o trabalhador seja despedido entre a data de notificação do empregador do auto de inspecção, que presume a existência de contrato de trabalho, e o trânsito em julgado da decisão judicial da ARECT;

  2. Oficiosamente, quando tenha conhecimento, por qualquer meio, da existência do despedimento nos termos referidos no ponto anterior;

  3. Oficiosamente, quando a pessoa a quem é prestada a actividade alegue que o contrato de prestação de serviços cessou, a qualquer título, no período desde a data de notificação do empregador do auto de inspecção, que presume a existência de contrato de trabalho, e o trânsito em julgado da decisão judicial da ARECT;

  4. Quando o despedimento ocorra antes da recepção da participação dos factos aos serviços do Ministério Público, este, até dois dias após o conhecimento do despedimento, requer à ACT para, no prazo de cinco dias, remeter a referida participação, acompanhada de todos os elementos de prova recolhidos.


8. Com estas novidades no CPT, concluímos pelo seguinte:

  1. A lei continua erradamente, salvo melhor opinião, a designar o prestador da actividade e o beneficiário da actividade, como trabalhador e empregador, respectivamente. Nesta acção especial, o objectivo do Ministério Público é o reconhecimento da existência de um contrato de trabalho entre o prestador da actividade e o beneficiário da mesma, sendo que tal reconhecimento apenas ocorrerá com o trânsito em julgado da sentença que julgue procedente a pretensão do Ministério Público. Assim, até esse momento, as partes deveriam ser designadas como prestador da actividade e o beneficiário da actividade, já que ainda não existe qualquer reconhecimento da existência de contrato de trabalho até à sentença que decrete a existência de uma relação laboral entre o prestador e o beneficiário da actividade;

  2. Com o suprimento da audiência de partes e a clarificação de que o Ministério Público tem efectivamente legitimidade activa na ARECT, sendo o verdadeiro autor desta acção, põe-se termo à controvérsia que originou a maioria dos recursos interpostos nas instâncias superiores pelo Ministério Público, referente à validade da transacção celebrada entre o prestador da actividade e o beneficiário da mesma, em sede de audiência de partes;

  3. Por último, a lei continua a ser omissa quanto à notificação da sentença que reconhece a existência de um contrato de trabalho ao prestador da actividade, que neste momento já assume a posição de trabalhador, sendo, nestes termos, uns dos principais interessados e afectados com a referida decisão.


______________________

1 Doravante “Lei n.º 55/2017”.
2 Doravante “ARECT”.
3 Doravante “Lei n.º 107/2009”.
4 Doravante “ACT”.
5 Conforme o disposto no artigo 2.º, n.º 3, da Lei n.º 107/2009.
6 Doravante “CPT”.
7 De notar que uma grande parte da jurisprudência dos tribunais superiores tinha como objecto apreciar a validade da transacção celebrada entre o prestador da actividade e o beneficiário da mesma, em sede de audiência de partes, quando estes reconheciam que o contrato que os unia era um verdadeiro contrato de prestação de serviços e não um contrato de trabalho ou sobre a possibilidade e a validade da desistência do pedido pelo prestador da actividade. A jurisprudência maioritária entendia que a única possibilidade de transacção das partes neste tipo de acção era o reconhecimento da existência de um contrato de trabalho, não sendo válida a desistência do pedido pelo prestador da actividade. Uma parte minoritária da jurisprudência, considerava que em primeiro lugar se encontrava o direito do prestador da actividade em ver reconhecida a existência de um contrato de trabalho e estávamos perante direitos disponíveis devendo, nestes casos, prevalecer a autonomia privada e a liberdade contratual das partes. Assim, considerava válida a desistência do pedido pelo prestador da actividade, bem como a transacção das partes sobre o reconhecimento da existência de um contrato de prestação de serviços. Tendo sido suprida a audiência de partes, esta querela jurisprudencial passa apenas a ter um interesse histórico na análise desta acção.
8 Com o aditamento do artigo 186.º-S ao CPT.