Fórum Jurídico

Texto PequenoTexto NormalTexto Grande

 

Comentário ao Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 848/2017, de 13 de Dezembro de 2017 (Proc. n.º 281/17; DR, 1.ª Série, n.º 15, de 22 de Janeiro de 2018) – A inconstitucionalidade da Taxa Municipal de Proteção Civil de Lisboa

Sara Soares, Mestre em Direito, Advogada, Abreu Advogados
Sílvia Bessa Venda, Mestre e Doutoranda em Direito, Advogada, Abreu Advogados


1. Enquadramento

1.1. O Tribunal Constitucional1 foi chamado, pelo Provedor de Justiça, a apreciar se os n.os 1 e 2 do artigo 59.º, os n.osos 1 e 2 do artigo 63.º e o n.º 1 do artigo 64.º, todos do Regulamento Geral de Taxas, Preços e outras Receitas do Município de Lisboa2 violam a reserva de lei de criação de impostos e a reserva relativa da competência legislativa da Assembleia da República, em matéria de “[c]riação de impostos e sistema fiscal e regime geral das taxas e demais contribuições financeiras a favor das entidades públicas” - cfr. n.º 2 do artigo 103.º e a alínea i) do n.º 1 do artigo 165.º da Constituição da República Portuguesa3, respetivamente.

1.2. As normas em questão respeitam à Taxa Municipal de Proteção Civil de Lisboa4, que incide, nos termos daquelas disposições legais, sobre o valor patrimonial tributário dos prédios urbanos ou frações situados no concelho de Lisboa, (i) tal como determinado para efeitos do Imposto Municipal sobre Imóveis56 ou (ii) “com risco acrescido por relação com a condição de degradado, devoluto ou em estado de ruína”7. Os sujeitos passivos destes dois tributos (que o RGTPRML qualifica como taxas municipais) são os mesmos considerados para efeitos de IMI. O facto gerador do tributo reside, assim, na titularidade dos prédios, sendo a liquidação efetuada por relação com o cadastro do valor patrimonial daqueles prédios, em 31 de dezembro do ano anterior àquele a que respeita a liquidação. Relativamente aos prédios referidos no n.º 1 do artigo 59.º do RGTPRML, o valor anual da taxa é de 0,0375 % do valor patrimonial tributário, enquanto, no que concerne aos prédios mencionados no n.º 2 do artigo 59.º do RGTPRML, este valor é “de 0,3 % no tocante aos prédios degradados e de 0,6 % no caso dos prédios devolutos ou em ruína, como tal considerados para efeitos do Imposto Municipal sobre Imóveis”. As regras ora enunciadas fazem com que o tributo aqui em causa, no entendimento do Provedor de Justiça, plasmado neste Acórdão, configure “um verdadeiro imposto”. Já o Município de Lisboa defende que o mesmo deve ser qualificado como uma taxa ou, no limite, como uma contribuição financeira.

2. O Entendimento do Tribunal Constitucional

2.1. O TC não faz diferenciação entre as duas alegadas taxas, na medida em que considera que ambas não se identificam com a “estrutura bilateral da taxa”. À semelhança do seu entendimento recente relativo a um tributo análogo criado pelo Município de Vila Nova de Gaia8, também aqui considera o TC que não se verifica um nexo de causalidade (efetivo ou presumido) entre as prestações, sendo a relação entre estas “vaga e indireta”.

2.2. O Município de Lisboa, por seu turno, invoca a alínea f) do n.º 1 do artigo 6.º do Regime Geral das Taxas das Autarquias Locais9, o qual prevê que “[a]s taxas municipais incidem sobre utilidades prestadas aos particulares ou geradas pela atividade dos municípios, designadamente (...) f) [p]ela prestação de serviços no domínio da prevenção de riscos e da proteção civil”. Mais refere, designadamente, que “a atividade da proteção civil do Município de Lisboa está em larga medida ligada ao património edificado, traduza-se ela em operações de socorro a incêndios, em intervenções por ocasião de inundações, em ações de proteção ditadas pelo estado degradado ou em ruína de imóveis”, constituindo os proprietários dos prédios os principais beneficiários.

2.3. Para o TC, contudo, a norma genérica referida no ponto anterior não dispensa a análise das características do tributo concreto e, in casu, entende que não se verifica uma “relação de troca”. Se, por um lado, temos a globalidade da atividade municipal de proteção civil e os respetivos custos, por outro, sucede a sua distribuição arbitrária a um conjunto de destinatários não individualizados. O TC entende, assim, que o tributo sub judice não é determinado por um juízo de proporcionalidade entre as prestações, mas antes pela “capacidade contributiva dos sujeitos passivos, revelada pela titularidade do direito sobre os prédios”. Não se vislumbra fundamentação que justifique uma relação entre o valor suportado pelo Município de Lisboa com a realização do serviço de proteção civil que desempenha e o valor suportado pelos proprietários dos prédios. A base do tributo é, inclusive, contraditória, na medida em que se presume que os prédios de maior valor sejam mais recentes e, portanto, reclamem menos gastos municipais. Mesmo relativamente aos prédios com risco acrescido, acima referidos, o valor da TMPC continua a ser determinado apenas pela capacidade contributiva revelada pela propriedade do prédio, e não pela probabilidade da necessidade da intervenção da proteção civil. Finalmente, e no que toca ao argumento da qualificação do tributo em questão como contribuição financeira, o TC afirma que o diploma base – o RGTAL – apenas prevê a aprovação de taxas municipais, pelo que, na ausência de diploma habilitante para a aprovação de outro tipo de tributos e não sendo qualificáveis de taxas, “[r]esta, pois, concluir pela inconstitucionalidade das normas” acima identificadas10.

3. Conclusão
A circunstância de a incidência subjetiva e do valor da TMPC serem determinados com base nas regras de IMI leva-nos a acompanhar a posição do TC, que declarou a inconformidade constitucional das disposições legais em apreço. Como refere José Casalta Nabais11, a qualificação de um tributo como taxa não se basta com o “teste da bilateralidade”. É necessário aferir se o critério em que assenta aquela figura tributária é determinado pela ideia de proporcionalidade. Neste caso, apesar de identificarmos duas prestações - a taxa e os serviços de proteção civil -, o valor da taxa não é determinado pelo custo suportado pelo Município de Lisboa com a realização daquelas atividades, mas através de uma percentagem do valor patrimonial tributário dos imóveis situados naquele concelho. Como bem evidenciou o TC, o critério utilizado é, ainda, infundado. Isto é, ainda que os serviços de proteção civil estejam maioritariamente relacionados com operações em edifícios, a verdade é que são precisamente aqueles que se encontram num estado de conservação mais degradado e que, em princípio, têm menor valor patrimonial tributário, os que reclamam a intervenção do Município de Lisboa, muito embora sejam os que impliquem simultaneamente o pagamento de um valor mais reduzido de TMPC. Por outras palavras, quem paga mais de TMPC é quem tem menos perspetivas de vir a usufruir daqueles serviços. Acresce que, como defende Sérgio Vasques12, nas taxas o “sujeito passivo tem que ser o efectivo causador ou beneficiário” e a prestação do serviço tem de ser certa, ainda que futura. A TMPC, pelo contrário, incide sobre todos os sujeitos passivos de IMI no Município de Lisboa, que podem nunca vir a aproveitar a prestação de serviços de proteção civil, pelo que somos da opinião que é de aplaudir o entendimento do TC vertido neste Acórdão.


______________________
1 Adiante, “TC”.
2 Republicado pelo Aviso n.º 2926/2016. Doravante, “RGTPRML”.
3 Adiante, “CRP”.
4 Adiante, “TMPC”.
5 Adiante, “IMI”.
6 Cfr. n.º 1 do artigo 59.º do RGTPRML.
7 Cfr. n.º 2 do artigo 59.º do RGTPRML.
8 Vide Acórdão n.º 418/2017.
9 Aprovado pela Lei n.º 53-E/2006, de 29 de dezembro. Doravante, “RGTAL”.
10 Discordando quanto à alínea f) do n.º 1 do artigo 6.º do RGTAL não constituir base legal suficiente para a provação de uma taxa de proteção civil mas acompanhando a decisão no que toca ao n.º 1 do artigo 59.º do RGTPRML e à incongruência do critério da base de incidência do IMI utilizado, vide Voto de Vencido de Cláudio Monteiro.
11 Direito Fiscal, 4.ª Edição, Almedina, Coimbra, 2007, págs. 21-22.
12 Manual de Direito Fiscal, Almedina, Coimbra, 2013, págs. 211-212.