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Lei n.º 7/2018, de 02 de março – Regime jurídico da conversão de créditos em capital social

Paulo de Tarso Domingues
Doutor em Direito, Professor da Faculdade de Direito da Universidade do Porto
Sócio AB


1. Conversão de créditos em capital social: finalidade. Passado cerca de um ano sobre o DL 79/2017, de 30 de junho (entretanto objeto de retificação pela extensa Declaração de Retificação n.º 21/2017, de 25 de agosto), que pretendeu agilizar o regime da conversão de créditos dos sócios sobre a sociedade (mais especificamente de créditos de suprimentos) em capital social, foi publicada a Lei n.º 7/2018, de 02 de março que visa finalidade idêntica (a flexibilização da conversão de créditos em capital social), agora quanto aos créditos sobre a sociedade de outros credores (fornecedores, financiadores, etc.).
A finalidade clara de ambos os diplomas é a de permitir “melhorar” o balanço da sociedade, facilitando a “conversão” de créditos sobre a sociedade em capital social, com a correspondente diminuição do respetivo passivo; os titulares dos créditos em causa deixam de poder exigir o respetivo pagamento, recebendo como contrapartida pela extinção dos seus créditos participações sociais da sociedade.
São discutidas as vantagens e desvantagens da conversão de créditos em capital social, sendo, nos ordenamentos que nos são próximos, consagradas distintas soluções nesta matéria (o leitor interessado pode recolher mais informação sobre o tema no nosso Variações sobre o capital social, Almedina, 2009, pp. 223, ss.).

2. Impacto na «praxis» societária. Tal como sucedeu com o DL 79/2017 (sobre este DL pode ver-se a nota publicada neste Fórum Jurídico), parece-nos, no entanto, que também este novo regime – pelos requisitos e pressupostos de que depende – virá provavelmente a ter muito pouco impacto na nossa praxis societária. Vejamos quais são os traços essenciais do mesmo.

3. Âmbito de aplicação. Quanto ao âmbito subjetivo de aplicação deste regime importa sublinhar que ele apenas se aplica a sociedades comerciais (ou a sociedades com forma comercial), com sede em Portugal e cujo volume de negócios seja igual ou superior a 1 milhão de euros (art. 2.º, n.ºs 1 e 4).

4. Requisitos para a conversão. Para que seja possível a conversão de créditos em capital, ao abrigo do disposto nesta Lei 7/2018, será necessário que cumulativamente se verifique:
a) Que o valor do capital próprio da sociedade seja inferior ao seu capital social, de acordo com as últimas contas de execício aprovadas (ou com base em contas intercalares aprovadas há menos de três meses) – art. 3.º. 1, al. a);
b) Que estejam em mora, por prazo superior a 90 dias:
b.1) pelo menos, 10% do total de créditos não subordinados [art. 3.º. 1, al. b), parte inicial], ou
b.2) estando em causa o reembolso de prestações de capital ou juros, pelo menos 25% do total de créditos não subordinados [art. 3.º. 1, al. b), parte final]. Quanto a esta regra, pode questionar-se se aqui somente se compreende a mora relativa ao reembolso de prestações (de capital ou juros) respeitante a contratos de financiamento ou também a mora respeitante a quaisquer acordos de pagamento, nomeadamente de regularização de dívidas, resultantes, p. ex., de fornecimentos de produtos ou serviços. A lei não distingue…
c) Que, após a operação de aumento, o valor do capital próprio fique superior ao valor do capital social no momento da proposta (art. 3.º, n.º 11).

5. Iniciativa dos credores e proposta da operação. A iniciativa da conversão de créditos em capital deve ser subscrita por credores cujos créditos constituam, pelo menos, dois terços do total do passivo da sociedade e a maioria dos créditos não subordinados (art. 3.º, n.º 3).
Note-se que a proposta tem que ser subscrita por aquele quantum de credores, mas não se exige que todos os subscritores tenham que converter os seus créditos em capital.
Por outro lado, e apesar de a lei o não dizer expressamente, deve ser dada a possibilidade aos demais credores – não subscritores da proposta – de converterem os seus créditos em capital. É a solução que está prevista para a situação em que a operação é decretada por via judicial (art. 5.º, n.º 3), sendo igualmente a que resulta do fundamental princípio da igualdade de tratamento dos credores.
O pedido dos credores deve ser dirigido à administração da sociedade, acompanhado de um relatório de um ROC, elaborado nos termos do art. 28.º CSC, que ateste ainda estarem verificados os requisitos de que depende a operação, e de uma proposta de alteração do pacto social e eventualmente de transformação da sociedade (art. 3.º, n.º 3, als. a) e b) e n.º 10).
Desta regra – e da sujeição daquele relatório ao disposto no art. 28.º CSC – resulta inequivocamente que esta “conversão” do crédito em capital corresponde a uma entrada em espécie, devendo, consequentemente, ficar sujeita ao respetivo regime legal (vide, a propósito, o disposto no art. 25.º CSC).
A administração da sociedade deve prestar aos credores a informação que por eles lhe seja solicitada, necessária à elaboração da proposta, nomeadamente quanto ao montate e composição do passivo (art. 3.º, n.º 5). Se essa informação não for prestada no prazo de 10 dias pela administração da sociedade, o ROC, que elaborar o relatório, poderá atender às informações que, sobre essa matéria, lhe sejam prestadas pelos credores (art. 3.º, n.º 6).
A proposta de alteração (aumento) do capital pode ser acompanhada de uma proposta de prévia redução do capital social, incluindo o zeramento do capital social (com o consequente squeeze out dos sócios do grémio societário), quando “seja de presumir” que as participações sociais não têm qualquer valor (art. 3.º, n.º 7). Uma proposta de redução de capital que não se destine à absorção das perdas sofridas pela sociedade (que, no caso de zeramento, terá de corresponder a uma situação em que as participações sociais não têm qualquer valor económico) equivalerá a uma expropriação forçada sem justa indemnização, constitucionalmente proibida! Por isso, é que no caso de a proposta incluir uma redução do capital, a mesma tem necessariamente de ser devidamente justificada e conter uma demonstração do valor das participações sociais (art. 3.º, n.os 8 e 9).
Note-se que do art. 3.º, n.º 7 parece resultar que qualquer redução do capital social (ainda que não se tratasse de uma redução a zero), só seria possível quando as participações sociais nada valessem. Deve, no entanto, entender-se que, ainda que as particpações tenham valor económico, será possível a redução do capital, desde que o valor da redução não exceda o limite das perdas e, portanto, não implique a tal “expropriação” de valor aos sócios. É isso, de resto, o que resulta do disposto no art. 3.º, n.º 10.

6. Direitos dos sócios. Recebida a proposta, os sócios podem, querendo, evitar a entrada dos credores para a estrutura societária. Dois caminhos estão previstos para esse efeito:
Em primeiro lugar – e apesar de estarmos perante uma entrada em espécie, no caso, uma entrada com créditos –, a lei confere-lhes um direito de preferência no aumento de capital. I. é, os sócios podem substituir-se aos credores, realizando eles o aumento de capital por estes pretendido, através da realização de novas entradas em dinheiro (art. 3.º, n.º 12). Apenas são admissíveis, neste caso, entradas em dinheiro e já não entradas em espécie.
O disposto no art. 3.º, n.º 14 levanta, a este propósito, perplexidades e dificuldades interpretativas. Com efeito, desta norma resulta, se bem compreendemos, que, se o exercício do direito de preferência – e a realização de novas entradas pelos sócios – não corresponder à totalidade dos créditos que se pretendem converter em capital, as novas entradas em dinheiro deverão ser utilizadas (proporcionalmente e com respeito pela respetiva prioridade) no pagamento dos créditos que não seriam convertidos. É isso que é dito expressis verbis na norma: “o valor das entradas em dinheiro que sejam efetivamente realizadas é aplicado na amortização dos créditos que não sejam convertidos em capital”. Acontece que, assim o julgamos, a coerência sistemática do regime implica a solução contrária. Na verdade, se a preferência abranger o valor total dos créditos que se pretendem converter, as novas entradas servirão para liquidar tais créditos (os que seriam convertidos!) – art. 3.º, n.º 12. Ora, não se descortina razão para solução diferente quando as novas entradas não cobrem a totalidade do valor que se pretende ver convertido em capital. De resto, quando os sócios exercem a preferência, o que pretenderão será exatamente isso: que o seu esforço impeça a entrada de terceiros para o grémio social. Por isso, também no caso do art. 3.º, n.º 14, o valor das entradas deve ser usado para liquidar (ainda que parcialmente) o valor dos céditos que se pretendem ver convertidos em capital. Donde, e porque a redação da norma contém, assim nos parece, um lapso – que, a não ser corrigido, conduz a uma contradição intrassistemática insanável –, deve ser feita uma interpretação corretiva da mesma, eliminando-se a palavra “não” do mencionado art. 3.º, n.º 141.
A segunda via para evitar a entrada dos credores para o grémio societário, está prevista para o caso de a operação – de conversão dos créditos em capital – vir a ser imposta judicialmente. Nesta hipótese, os sócios terão 30 dias, após o trânsito em julgado da respetiva sentença homologatória, para adquirir ou fazer adquirir por terceiro as participações sociais resultantes do aumento de capital. Aqui, a lei impõe agora, no entanto, que os sócios adquirem ou paguem a totalidade dos créditos dos credores proponentes (e só destes!), que não apenas o valor que foi convertido em capital. Parece-nos, claramente, uma solução desproporcionada e injustificada. A justa composição dos interesses em causa (foram os credores não quiseram converter todo o valor dos seus créditos…) apenas exigiria que aos sócios fosse permitido adquirir as novas participações sociais resultantes da conversão dos créditos.

7. Aprovação da operação pela sociedade. Transmitida a proposta dos credores à sociedade, deve ser “imediatamente” convocada uma assembleia geral, que deverá ter lugar no prazo máximo de 60 dias após a receção da proposta (art. 4.º, n.º 1). Note-se que, estando em causa necessariamente uma alteração do pacto, desde logo resultante da variação do capital social, a aprovação terá que resultar do quorum qualificado legalmente exigido para este efeito em cada tipo societário (cfr. art. 265.º, para as SQ, e arts. 383.º e 386.º, para as SA).
A sociedade – através do seu órgão de administração – pode negociar com os credores alterações à proposta. Estas alterações devem ser dadas a conhecer aos sócios com a antecdência mínima correspondente ao prazo de convocação da assembleia geral, o que significa que elas devem, em princípio, ser negociadas antes do envio da convocatória.

8. Suprimento judicial. Se, no prazo de 90 dias a contar da receção da proposta, esta não for aprovada pelos sócios ou se se não for convocada a AG ou ainda se não for executada a deliberação que aprovou a proposta, os credores podem requerer a intervenção do tribunal (com competência para o processo de insolvência da sociedade) para que supra aquela falta (art. 4.º, n.º 3), devendo a o suprimento apenas ser concedido quando se encontrem verificados os requisitos acima assinalados no n.º 4.
O regime previsto para este suprimento judicial – que visa ultrapassar a inércia ou a resistência dos sócios relativamente à operação – está previsto no art 5.º.
Trata-se de uma solução profundamente intrusiva da vida sociedade: permitir que um juiz – mesmo contra a vontade dos sócios – possa alterar a estutura societária. Sendo (muito!) discutível a bondade da solução, não se pode, uma vez mais, deixar de alertar para a cegueira do legislador nacional que teima reiteradamente em desrespeitar e violar frontalmente o direito comunitário no âmbito desta matéria relativa à variação do capital social.
Com efeito, as legislações nacionais dos Estados membros têm de cumprir e observar as regras previstas no Direito da União Europeia. E, nesta matéria, o artigo 68.º2 da Diretiva 2017/1132/UE (que podemos designar por Diretiva Codificadora do Direito das Sociedades)3 impõe, para as SA4, de forma imperativa, que a competência para aumentar o capital social apenas pode ser atribuída à assembleia geral e, quando autorizada, a outro órgão da sociedade5.
Por isso, este regime de suprimento judicial, consagrado na Lei 7/2018, não poderá aplicar-se às sociedades anónimas6. Assim, no que respeita a estas sociedades, o juiz não deverá determinar o suprimento judicial da aprovação da operação, por tal consubstanciar uma violação do disposto na Diretiva Codificadora. E, se uma tal decisão vier a ser decretada, os sócios poderão dela recorrer, nomeadamente para o TJUE ao abrigo da figura do reenvio prejudicial7.

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1 Sobre a interpretação corretiva, pode ver-se Baptista Machado, Introdução ao direito e ao discurso legitimidor, Almedina, 1982, p. 186.
2 Norma que corresponde ao artigo 25.º da originária Segunda Diretiva sobre sociedades.
3 Foi a Segunda Diretiva sobre sociedades (Diretiva 77/91/CEE, publicada no JO L 026, de 30/01/77) que veio pioneiramente regular, exclusivamente quanto às sociedades anónimas, "a conservação e as modificações do capital social", razão pela qual foi também designada por Diretiva do Capital. Esta Diretiva foi, mais tarde, revogada e substituída pela Diretiva 2012/30/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de outubro de 2012, publicada no JO L 315/74, de 14 de novembro de 2012, no âmbito da política seguida a nível comunitário, de consolidação oficial dos atos normativos que foram objeto, no passado, de diversas alterações, como ocorreu com esta Segunda Diretiva. Entretanto, foi publicada a Diretiva (UE) 2017/1132, de 14 de junho de 2017, que procedeu à unificação e codificação, num texto só, de diferentes Diretivas sobre sociedades, entre as quais se inclui a Segunda Diretiva. Por facilidade de exposição, designarei esta Diretiva 2017/1132/UE por Diretiva Codificadora do Direito Societário.
4 As únicas que, no ordenamento jurídico português, são abrangidas pelo regime do capítulo IV do Título I, relativo à conservação e alterações do capital social. Cfr. art. 44.º e Anexo 1 da Diretiva Codificadora.
5 O n.º 2 da norma admite, na verdade, uma exceção a esta regra: permite que os sócios, no ato constitutivo ou por mera deliberação, possam atribuir, sob certas condições, essa competência (exclusivamente!) a outro “órgão da sociedade”, que, no caso português, se estatuiu que fosse o órgão de administração (cfr. artigo 456.º CSC).
6 Tal questão já não se colocará quanto a outros tipos societários, uma vez que o regime comunitário referido em texto não é aplicável a outras sociedades que não as SA.
7 Os acórdãos do TJUE supra referidos foram precisamente tirados ao abrigo da figura do reenvio prejudicial.