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Lei n.º 8/2018, de 2 de Março – Regime Extrajudicial de Recuperação de Empresas (RERE)

Telma Varelas, Mestre em Direito, Advogada, Abreu Advogados

1. No pretérito dia 22 de março foi publicada a Lei n.º 8/2018, a qual, entre outros, criou o Regime Extrajudicial de Recuperação de Empresas (“RERE”), tendo revogado o Decreto-Lei n.º 178/2012, de 3 de agosto, diploma que criou o Sistema de Recuperação de Empresas por Via Extrajudicial (“SIREVE”), consubstanciando uma das medidas integradas do programa Capitalizar, na área de Reestruturação Empresarial.
O RERE (à semelhança do SIREVE) é um instrumento através do qual um devedor que se encontre em situação económica difícil ou de insolvência eminente poderá encetar negociações com todos ou com alguns dos seus credores com vista à obtenção de um acordo – voluntário, de conteúdo livre e, por regra, confidencial – tendente à sua recuperação.
Se o SIREVE estava reservado a empresas e a empresários em nome individual com contabilidade organizada, o âmbito subjetivo de aplicação do RERE alarga-se a todas as entidades compreendidas nas alíneas a) a h) do n.º 1 do artigo 2.º do CIRE, com a exceção das pessoas singulares que não sejam titulares de empresas (art. 3º n.º 1).
No que concerne ao seu âmbito objetivo de aplicação, e para melhor compreensão do mesmo, o RERE define o “acordo de reestruturação” como o “acordo com vista à alteração da composição, das condições ou da estrutura do ativo ou do passivo de um devedor, ou de qualquer outra parte da estrutura de capital do devedor, incluindo o capital social, ou uma combinação destes elementos, incluindo a venda de ativos ou de partes de atividade, com o objetivo de permitir que a empresa sobreviva na totalidade ou em parte.”
No âmbito das negociações, o devedor poderá solicitar a nomeação de um mediador de recuperação de empresas, nos termos do respetivo regime jurídico. Contudo, pelo facto de a sua nomeação continuar a aguardar a aprovação dos diplomas que irão regulamentar a sua aplicação, as negociações ao abrigo do RERE deverão também continuar a decorrer à margem desta “figura”.
Em alternativa ao mediador, poderá ser designado um (ou mais) “credor líder” que exercerá funções de interlocutor no contacto com o devedor.
No que concerne ainda ao diagnóstico económico-financeiro, efetuado no âmbito do SIREVE pela empresa interessada em obter a sua recuperação, através da plataforma informática disponibilizada pelo IAPMEI, passará o mesmo, no âmbito do RERE, a ser efetuado no decurso das negociações, pelo devedor, em articulação com o credor líder e pelo mediador de recuperação de empresas, se houver sido nomeado, visando apresentar aos credores participantes nas negociações os pressupostos nos quais poderão basear o acordo de reestruturação.

2. Protocolo de negociação
A sujeição das negociações aos efeitos legais previstos no RERE depende da celebração de um protocolo de negociação, entre o devedor e os credores não subordinados que representem pelo menos 15% do seu passivo e do depósito do mesmo junto da Conservatória do Registo Comercial. A Segurança Social, a Autoridade Tributária e os trabalhadores são, obrigatoriamente, informados do depósito do protocolo de negociação e do seu conteúdo, sempre que sejam titulares de créditos sobre o devedor, sob pena de nulidade do protocolo de negociação e de todos os atos a ele inerentes, prevendo-se, assim, tal como no SIREVE, a participação obrigatória daquelas duas entidades nas negociações e no acordo de reestruturação do devedor.
Requerido o depósito do protocolo de negociação, dispõem as partes do prazo de 3 meses, incluindo eventuais prorrogações acordadas, para concluírem as negociações resultantes daquele protocolo, restringindo-se em 1 (um) mês o prazo global previsto no SIREVE para efeitos de conclusão das negociações.
No RERE, o IAPMEI deixa de ter o controlo de todo o procedimento, incluindo nas negociações, atribuindo-se maior liberdade às Partes na composição do acordo tendente à reestruturação do devedor. As competências e respetivas atribuições do IAPMEI passam a cingir-se ao acompanhamento, fiscalização, disciplina e sanção da atividade dos mediadores de recuperação de empresas, deixando aquela entidade de exercer funções, diretamente, no próprio processo negocial.
A liberdade conferida às Partes e autonomia do procedimento do IAPMEI determina ainda a gratuitidade do procedimento, não estando a utilização do RERE sujeita ao pagamento da taxa de utilização prevista no âmbito do SIREVE, a qual, constituindo uma receita do IAPMEI, destinava-se a suportar os encargos do procedimento.
Outra inovação deste diploma relativamente ao SIREVE prende-se com o depósito junto da Conservatória do Registo Comercial, ato garantístico para os credores e de que depende a produção plena de efeitos quer do protocolo de negociação, quer do acordo de reestruturação.

3. Efeitos processuais da celebração e depósito do protocolo de negociação (sem prejuízo de outros efeitos previstos pelas partes)

  1. Suspensão imediata do processo de insolvência cuja declaração haja sido requerida por credor participante no protocolo de negociação ou aderente ao mesmo, desde que aquela não tenha ainda sido declarada;

  2. Extinção automática das ações executivas para pagamento de quantia certa instauradas contra a empresa e ou os seus garantes relativamente às operações garantidas, salvo se no acordo for prevista a manutenção da respetiva suspensão;

  3. Suspensão, por prejudicialidade, das ações destinadas a exigir o cumprimento de ações pecuniárias instauradas contra a empresa e ou os seus garantes, relativamente a operações garantidas, salvo se for celebrada transação;


O depósito do protocolo de negociação determina, ainda, a impossibilidade de, durante o período das negociações, os prestadores de serviços essenciais interromperem o fornecimento dos mesmos por dívidas relativas a serviços prestados anteriormente ao depósito do protocolo, sem que a referida impossibilidade afete os créditos constituídos naquela data, o que consubstancia também uma inovação relativamente ao SIREVE.
Findas as negociações e sendo celebrado um acordo de reestruturação (cujos termos são fixados livremente pelas partes, podendo compreender, designadamente, os termos da reestruturação da atividade económica do devedor, do seu passivo, da sua estrutura legal e societária, dos novos financiamentos a conceder ao devedor e das garantias a prestar por este), deverá o mesmo ser assinado por todas as partes intervenientes e depositado na Conservatória do Registo Comercial, a pedido do devedor ou de qualquer credor, produzindo efeitos após o referido depósito.
Independentemente da celebração (ou não) de um acordo de reestruturação, o devedor é livre de sujeitar novas negociações ao RERE, com os mesmos ou com diferentes credores, desde que não viole os termos específicos do acordo anteriormente alcançado ao abrigo deste regime. Esta é também uma alteração face ao regime juridico anterior resultante do SIREVE, no qual se previa que as empresas que não obtivessem acordo no procedimento, incumprissem as obrigações decorrentes do acordo celebrado ou requeressem a extinção do procedimento estavam impedidas de apresentar novo requerimento para utilização do SIREVE durante o prazo de 2 (dois) anos a contar da data do despacho de aceitação do requerimento.
Por sua vez, ao contrário do SIREVE, o RERE exige ainda que o acordo de reestruturação seja acompanhado de uma declaração emitida por um Revisor Oficial de Contas que ateste que a sociedade não se encontra em situação de insolvência, aferida nos termos do artigo 3.º, n.os 1 a 3, do CIRE.

4. Principais efeitos da celebração e depósito do acordo de reestruturação

  1. Extinção imediata dos processos judiciais declarativos, executivos ou de natureza cautelar que respeitem a créditos incluídos no acordo de reestruturação e dos processos de insolvência, desde que a mesma não tenha ainda sido declarada, que hajam sido instaurados contra o devedor por entidade participante no acordo de reestruturação, salvo previsão expressa no acordo em contrário;

  2. Benefícios fiscais previstos nos artigos 268.º a 270.º do CIRE, desde que, de um modo geral, o acordo compreenda a reestruturação de créditos correspondentes a, pelo menos, 30% do total do passivo não subordinado do devedor, o que deverá ser devidamente certificado por declaração emitida por revisor oficial de contas, permitindo-se, assim, que as empresas beneficiem de condições fiscais idênticas às que beneficiariam através de um acordo celebrado pela via judicial;

  3. Insusceptibilidade de resolução em benefício da massa dos negócios jurídicos que hajam compreendido a efetiva disponibilização ao devedor de novos créditos pecuniários e a constituição de garantias, caso o devedor venha a ser ulteriormente declarado insolvente;

  4. Utilização do acordo, cumpridos os requisitos/maiorias previstas no art. 17.º-I do CIRE, para iniciar um PER com vista à sua homologação judicial.


Não obstante, ao contrário do que se verificava no âmbito do SIREVE e do que decorre do artigo 11.º n.º 2 do diploma em análise, a extinção prevista na al. a) supra abrange apenas as ações instauradas contra a empresa devedora, excluindo-se daquele efeito os respetivos garantes.

5. Consequências do incumprimento do acordo de reestruturação
O incumprimento de alguma das obrigações previstas no acordo de reestruturação não determina a invalidade das demais obrigações dele resultantes perante o mesmo ou outros credores, nem afeta a validade dos atos que hajam sido praticados em sua execução.
Por outro lado, ao contrário também do que se verificava no âmbito do SIREVE, o credor não tem que aguardar o prazo de 30 (trinta) dias, após a interpelação do devedor, para, querendo e em caso de incumprimento do devedor, resolver o acordo.
Assim, na ausência de disposição expressa do acordo de reestruturação:

  1. O incumprimento por uma das partes legitima a parte afetada pelo mesmo a resolver o acordo de reestruturação;

  2. O incumprimento de uma prestação legitima o credor da mesma a declarar imediatamente vencidas todas as demais prestações de que seja credor constantes do acordo de reestruturação;

  3. O incumprimento perante um credor não determina o automático incumprimento das demais obrigações constantes do acordo de reestruturação.

Não obstante, a resolução não tem efeito retroativo nem importa a repristinação dos termos originais da obrigação alterada no acordo de reestruturação, o qual constitui título executivo relativamente às obrigações pecuniárias nele assumidas pelo devedor, inovação de importância prática relevante face ao antigo SIREVE.
Por fim – e certamente como forma de estimular a negociação ao abrigo do regime legal em análise –, no prazo de 18 (dezoito) meses a contar da entrada em vigor da presente lei, poderão recorrer ao RERE os devedores que estejam em situação de insolvência, aferida nos termos do art. 3.º n.º 3 do CIRE, dispensando-se a apresentação da declaração a elaborar por Revisor Oficial de Contas, exigida pelo art. 19.º n.º 2 al. a) do diploma em análise.
Em suma, se por um lado, a celebração e o depósito do protocolo de negociação terá, certamente, impacto na obtenção de um ambiente favorável à negociação com os credores, conferindo-lhes maior segurança e contribuindo para a formalização do acordo de reestruturação do devedor,
Por outro, apesar (i) da autonomia do procedimento relativamente ao IAPMEI, (ii) da liberdade de conformação dos termos do acordo atribuída às Partes subscritoras, (iii) das alterações relativamente às consequências do incumprimento do acordo e (iv) da atribuição de força executiva ao mesmo, poderá a circunscrição dos efeitos advenientes do acordo de reestruturação (assim como do protocolo de negociação) aos credores que o subscrevam e a exclusão, relativamente aos garantes do devedor, do efeito extintivo dos processos judiciais em curso continuar a consubstanciar um entrave à reestruturação extrajudicial e efetiva do devedor que pretenda recorrer ao RERE.