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Lei n.º 35/2018, de 20 de julho – Alteração das regras de comercialização de produtos financeiros e de organização dos intermediários financeiros, e transpõe as Diretivas 2014/65, 2016/1034 e 2017/593

Jorge Morais, Advogado, Abreu Advogados

A Lei n.º 35/2018, de 20 de julho (“Lei”), que entrará em vigor a 1 de Agosto, transpõe para a ordem jurídica interna a Diretiva 2014/65/UE (DMIF II, Diretiva dos Mercados de Instrumentos Financeiros), de 15 de maio de 2014, a Diretiva (UE) 2016/1034, de 23 de junho de 2016 , ambas do Parlamento Europeu e do Conselho, e a Diretiva Delegada (UE) 2017/593, da Comissão, de 7 de abril de 2016.       
Por força da entrada em vigor da Lei, entrará igualmente em vigor no dia 1 de agosto de 2018 o Decreto-Lei n.º 56/2018, de 9 de julho, que alterou o Regime Geral dos Organismos de Investimento Coletivo, o Regime Jurídico do Capital de Risco, Empreendedorismo Social e Investimento Especializado e o Decreto-Lei n.º 77/2017, de 30 de junho, que veio criar medidas de dinamização do mercado de capitais, com vista à diversificação das fontes de financiamento das empresas.
Das principais alterações introduzidas pela Lei, referimos as que nos parecem mais significativas.

1. Alterações ao quadro regulatório das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras

a) Os produtos e serviços bancários tradicionais, ou seja que não são qualificados como produtos complexos, passam a estar sujeitos a um dever de avaliação da sua adequação ao perfil do destinatário, o que é acompanhado pela obrigatoriedade de estabelecer mecanismos de governação e monitorização dos mesmos (product governance), quer no âmbito da sua conceção quer da sua comercialização, o que aproxima o seu regime das novas regras sobre depósitos estruturados que integram a Lei.
b) São criadas novas regras sobre a remuneração e a avaliação dos colaboradores, da sua qualificação e experiência e em sede de conflitos de interesses.
c) São introduzidas novas regras de registos e arquivos que passam a incluir a obrigação de armazenamento das comunicações estabelecidas com clientes para a celebração de contratos.
d) Permite-se o recurso a agentes vinculados pelas instituições de crédito para a prestação de serviços de investimento ao abrigo da livre prestação de serviço na União Europeia, cumpridos os requisitos de prévia comunicação às autoridades de supervisão competentes.
Várias das referidas alterações, de natureza comportamental, são aplicáveis às sociedades financeiras por remissão, com as necessárias adaptações, sendo necessária uma análise casuísta do tipo de atividade exercida e normativos internos vigentes para determinar, no que respeita a este tipo de sociedades, o efetivo impacto em sede organizacional e comportamental.

2. Alterações ao Código dos Valores Mobiliários (“CVM”) e legislação complementar

a) É alargado o elenco de instrumentos financeiros sujeitos à disciplina do CVM e legislação complementar, passando a qualificar-se como instrumento financeiro as licenças de emissão e excetuando-se da qualificação de atividade de intermediação financeira, com caráter profissional, apenas a sua negociação por conta própria ou no âmbito da execução de ordens de clientes.

b) É restringido o âmbito de entidades que podem exercer atividades de intermediação financeira sem serem qualificadas como profissionais, designadamente retirando tal isenção a quem adquira a qualidade de membro ou participante em mercado regulamentado, ou desenvolva negociação de alta frequência ou tenha acesso eletrónico direto, tentando-se assim enquadrar e limitar os riscos que este tipo de atividade implica (em conjunto com outras disposições de caráter técnico mais detalhado). Neste âmbito, para além da atribuição da qualificação como intermediários financeiros às entidades que exerçam tais atividades negociação algorítmica, sujeitas assim a prévia autorização, são previstos requisitos de organização interna específicos (requisitos técnicos dos sistemas, limites de negociação, planos de continuidade e teste dos sistemas, bem como deveres de notificação de exercício da atividade às autoridades competentes).

c) São atribuídos no Regulamento (UE) n.º 600/2014 poderes de intervenção às autoridades competentes nacionais, bem como à ESMA (Autoridade Europeia dos Valores Mobiliários e dos Mercados) e EBA (Autoridade Bancária Europeia),que permitem às autoridades competentes, verificados certos requisitos, proibirem ou restringirem a comercialização, distribuição ou venda de determinados instrumentos financeiros ou depósitos estruturados, ou um determinado tipo de atividade ou prática financeira. Refira-se que ao abrigo deste regime a ESMA adotou recentemente a sua Decisão (EU) 2018/796 de 22 de Maio de 2018, que restringiu temporariamente os contratos diferenciais na UE, em conformidade com o artigo 40º do Regulamento (UE) n.º 600/2014.

d) É permitido o estabelecimento em Portugal de sucursais de empresas de investimento com sede em país terceiro, que pretendam prestar serviços de investimento ou exercer atividades de investimento, em conjunto com ou sem a oferta de serviços auxiliares a investidores profissionais ou não profissionais na aceção do CVM, verificados os pressupostos definidos na lei e sujeita a autorização do Banco de Portugal. É ainda autorizada a prestação de serviços de investimento por exclusiva iniciativa do cliente, por uma empresa de investimento com sede em país terceiro (reverse solicitation), mas restringindo o âmbito de tal prestação ao(s) serviço(s) expressamente solicitado(s) pelo cliente.

e) Os deveres organizativos dos intermediários financeiros são reforçados, designadamente em matéria de governo e aprovação de produção e/ou de distribuição de instrumentos financeiros, produzidos por si ou por terceiros (product governance), devendo os intermediários financeiros que prestem tais serviços ou atividades de investimento proceder, previamente à sua comercialização e/ ou distribuição, à identificação do mercado-alvo, dos riscos associados a tal mercado, e da adequação do serviço ou atividade às características dos clientes a que o produto se destina.

f) São reforçadas as regras em matéria de proteção de bens de clientes, designadamente interditando a celebração de contratos de garantia financeira com transferência de titularidade celebrados com investidores não profissionais.

g) São ainda criadas novas obrigações de registo de transações, em particular quanto ao registo de ordens dadas por telefone ou por meios eletrónicos.

h) No que respeita aos deveres de conduta dos intermediários financeiros são alteradas:
i. As normas que definem o elenco de instrumentos considerados não complexos, para efeitos do regime de mera execução, o que alarga o leque de situações em que se exige a verificação do carácter adequado da operação ao perfil do cliente.
ii. As normas que regulam a possibilidade do intermediário financeiro oferecer a terceiros ou deles receber qualquer remuneração, comissão ou benefício não pecuniário (inducements) relativamente à prestação de uma atividade de intermediação financeira são alteradas, reforçando os deveres de informação ao cliente e estabelecendo os requisitos para que um benefício não seja considerado ilegítimo.
iii. Os deveres de informação a clientes e ao público em matéria de execução nas melhores condições passam a incluir a obrigatoriedade de divulgação anual das cinco estruturas de negociação mais utilizadas e os resultados obtidos.
iv. Os intermediários financeiros devem assegurar que os colaboradores que prestem serviços de intermediação financeira possuem as necessárias qualificações e experiência profissional e que a sua política de remuneração e avaliação é definida de forma a salvaguardar o dever de atuar no interesse dos seus clientes.
i) A regulamentação das estruturas de negociação é objeto de alterações relevantes, sendo criado um novo sistema de negociação organizado, sujeito a registo junto da CMVM, e limitado à negociação de instrumentos não representativos de capital. Paralelamente são mantidas as atuais estruturas de negociação (mercados regulamentados, sistemas de negociação multilateral e internalização sistemática), reforçados os deveres de transparência pré e pós-negociação, estabelecido o princípio de efetuar transações em ações admitidas à negociação num mercado regulamentado (ou negociadas numa plataforma de negociação) em mercado regulamentado, MTF (Sistema de Negociação Multilateral) ou através de um internalizador sistemático. Consagram-se também regras quanto à obrigação de negociação de certas categorias de derivados em plataformas de negociação, e é ainda alargado o dever de reporte de transações.

3. O Regulamento (EU) n.º 1286/2014
É ainda de referir o Regulamento (UE) n.º 1286/2014, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de novembro de 2014, sobre os documentos de informação fundamental para pacotes de produtos de investimento de retalho e de produtos de investimento com base em seguros (PRIIPs), cujo regime é densificado no Anexo II da Lei. Regula-se, entre outras matérias, as autoridades competentes para a fiscalização do cumprimento do disposto no referido Regulamento em função da natureza dos produtos, as regras aplicáveis às mensagens publicitárias relativas a PRIIPs e à notificação do documento de informação fundamental à autoridade competente.

4. Conclusões
Deste conjunto de instrumentos legislativos, ora transpostos pela Lei , ou diretamente aplicáveis na ordem jurídica interna, decorrem alterações significativas do quadro regulatório em vigor, no que respeita não só à organização e ao exercício das atividades de intermediação financeira em sentido estrito, como da atividade financeira tradicional, desenvolvida pelas instituições de crédito e sociedades financeiras, com incidência também na atividade seguradora, e que exigirão a revisão, adaptação e/ ou criação de um conjunto de procedimentos e normativos internos pelos seus destinatários, designadamente em matéria comportamental e de organização, bem como a adaptação da documentação contratual.
Trata-se de um pacote legislativo com dimensão e impacto inéditos e, para além destas alterações à legislação nacional (principalmente ao CVM, ao RGOIC e ao Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedade Financeiras), deveremos assistir em breve a uma grande proliferação de instrumentos normativos por parte dos reguladores, CMVM e Banco de Portugal, que deverão igualmente regulamentar algumas destas matérias, também elas em conexão com o acima mencionado Decreto-Lei n.º 56/2018, de 9 de julho.