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Lei n.º 23/2018, de 5 de junho – Direito a indemnização por infração ao direito da concorrência

Sílvia Bessa Venda
Mestre em Direito, Faculdade de Direito do Porto da Universidade Católica Portuguesa
Investigadora do Católica Research Centre for the Future of Law
Advogada, Abreu Advogados


I. Direito à reparação
Quase 20 anos volvidos desde o reconhecimento do direito das empresas, dos consumidores e das autoridades públicas à reparação dos danos causados por violações das normas da concorrência1, por parte do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), este direito foi agora consagrado no ordenamento jurídico português, pela Lei n.º 23/2018, de 5 de junho, que transpõe a Diretiva 2014/104/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de novembro de 2014, relativa a certas regras que regem as ações de indemnização no âmbito do direito nacional por infração às disposições do direito da concorrência dos Estados-Membros e da União Europeia, e procede à primeira alteração ao RJC, bem como, à quarta alteração à Lei de Organização do Sistema Judiciário2. Vejamos infra as principais inovações que passaram a reger a aplicação privada do direito da concorrência em Portugal, desde o passado dia 4 de agosto (data da entrada em vigor da lei).

II. Princípio da responsabilidade solidária
Regra geral, as empresas infratoras respondem de forma solidária pela reparação integral dos lesados, independentemente de estes serem adquirentes diretos ou indiretos. Acresce que, o legislador português foi para além da diretiva e responsabilizou também as pessoas singulares pelos danos causados por violações às normas da concorrência, desde que aquelas tenham exercido uma influência determinante (que se presume a partir de 90% do capital) sobre a empresa infratora, ao tempo da infração. Esta solidariedade não prejudica o exercício do direito de regresso, em função da responsabilidade relativa de cada infrator. Ademais, este regime de responsabilidade solidária encontra duas exceções, relacionadas com as Pequenas e Médias Empresas (PME) e com as empresas às quais foi concedida clemência, i.e., dispensa de coima, por serem as primeiras a revelar a sua participação no ilícito concorrencial. Em ambos os casos, a sua responsabilidade é meramente subsidiária perante lesados que não sejam os seus próprios clientes ou fornecedores, diretos ou indiretos. Por outras palavras, só responderão perante estes últimos se as demais empresas infratores não puderem reparar integralmente os danos sofridos. No entanto, relativamente às PME, para que este regime de exceção opere é necessário que os seguintes requisitos se encontrem preenchidos:

  1. detenham uma quota, em cada um dos mercados afetados pela infração ao direito da concorrência e ao longo de toda a duração da mesma, inferior a 5%;

  2. a sua viabilidade económica seja irremediavelmente prejudicada pela aplicação do princípio da responsabilidade solidária, desvalorizando os seus ativos por completo;

  3. não tenha liderado o ilícito concorrencial ou coagido outras empresas a participarem no mesmo; ou

  4. não tenha sido anteriormente condenada, por decisão definitiva, por outra infração ao direito da concorrência.

III. Pressupostos da responsabilidade civil extracontratual por ilícito concorrencial
Os titulares do direito à reparação veem o seu ónus da prova invertido, quer relativamente à existência de danos causados pelas infrações de cartel (e não quanto à sua quantificação, muito embora esta seja da competência do Tribunal sempre que o cálculo pelo lesado resulte “praticamente impossível ou excessivamente difícil”), quer quanto ao ato ilícito em geral, desde que, neste último pressuposto, a infração já tenha sido declarada por uma decisão pública definitiva - da Autoridade da Concorrência (AdC) ou do Tribunal de Recurso. Enquanto que a presunção de danos acima referida é ilidível, a da infração previamente declarada não admite prova em contrário. Já relativamente aos efeitos das decisões condenatórias proferidas em outros Estados-Membros, o legislador português foi, uma vez mais, para além da diretiva, ao considerá-las como presunções ilidíveis e não como meros elementos de prova “prima facie”3. Sem prejuízo do supra exposto, mantem-se o ónus do lesado relativamente à existência de danos causados pelas demais práticas restritivas da concorrência (que não as de cartel) e ao nexo de causalidade, nos termos confirmados pelo pelo Ac. Otis4.

IV. Acesso a elementos de prova
Mediante pedido de qualquer das partes na ação de indemnização, o Tribunal pode conceder o acesso a elementos de prova na posse da outra parte ou de terceiro. Este requerimento deve ser fundamentado e a decisão do Tribunal que sobre ele recair deve basear-se num juízo, não só de relevância, mas de proporcionalidade, devendo ser analisados todos os interesses legítimos envolvidos, incluindo a confidencialidade da informação. No entanto, a lei esclarece que “o interesse em evitar ações de indemnização na sequência de uma infração ao direito da concorrência não constitui interesse que justifique proteção”, em linha com a jurisprudência do TJUE5-6.
O acesso a elementos de prova incluídos num processo da AdC é limitado. Para além do Tribunal dever ponderar adicionalmente (i) a especificidade do pedido, (ii) se a respetiva ação de indemnização já foi proposta e (iii) a necessidade de “salvaguardar a efetividade da aplicação do direito da concorrência pelas entidades públicas”, a Lei n.º 23/2018 transpôs as apelidadas de listas negra e cinzenta. Trata-se de elencos taxativos de documentos, respetivamente: absolutamente inacessíveis - declarações para efeitos de isenção/redução de coima e propostas de transação -; e que apenas podem ser divulgados uma vez concluído o processo da AdC - documentos especificamente preparados para o processo da AdC, documentos elaborados pela AdC e enviados às partes no decurso do processo e propostas de transação revogadas. As consequências da violação das regras sobre o acesso à prova são a inadmissibilidade da prova e a aplicação de uma multa processual, que pode ascender a 5000 UC. Em caso de incumprimento ou recusa de uma ordem de divulgação emitida pelo Tribunal, a lei prevê a possibilidade de aplicação de uma sanção pecuniária compulsória, até 500 UC.

V. Ação popular e Tribunal competente
As associações de empresas cujos associados sejam vítimas da infração, bem como, as associações e fundações que tenham por fim a defesa dos consumidores têm legitimidade para intentarem ações de indemnização por infrações ao direito da concorrência. Caso aquela infração seja a causa de pedir exclusiva da ação, o seu julgamento compete ao Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão. O mesmo se aplica relativamente aos pedidos de acesso a meios de prova e ao exercício do direito de regresso entre co infratores.
VI. Conclusões
Em face do acima exposto, resulta evidente que a Lei n.º 23/2018 constitui um importante passo na direção do exercício efetivo (e até aqui escasso) do direito à reparação por danos causados por infrações às regras da concorrência. Não obstante e na ausência de incentivos relevantes às stand-alone actions, i.e., às ações de indemnização intentadas previamente à atuação da AdC, prevemos que o segundo objetivo da diretiva - equilibrar as aplicações pública e privada das referidas regras - fique aquém do adequado.

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1 I.e., dos arts. 9.º, 11.º e 12.º da Lei n.º 19/2012, de 8 de maio, que aprovou o novo regime jurídico da concorrência (RJC), das normas correspondentes de outros Estados-Membros e dos arts. 101.º e 102.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia.
2 Aprovada pela Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto.
3 A presunção do ilícito concorrencial foi uma das previsões mais controversas no âmbito dos trabalhos preparatórios da nova lei, os quais tiveram origem numa proposta de transposição elaborada pela AdC, a pedido do Governo. A autoridade consultou os stakeholders e, na proposta submetida a consulta pública, constava que a declaração da existência de uma infração por parte de entidades públicas nacionais ou de outros Estados-Membros “constitui presunção inilidível”. Em face das críticas e por forma a “mitigar a litigiosidade potencialmente relacionada com este aspeto, assim evitando prejudicar a compensação dos lesados”, a AdC recuou na proposta final submetida ao Governo, e fez cair o “in” relativamente à decisão proferida noutros Estados-Membros. Mesmo atendendo apenas aos efeitos das decisões nacionais, e muito embora se trate de uma norma imperativa da diretiva, esta solução continua passível de observações, designadamente quanto à sua constitucionalidade e coerência sistemática. Os documentos relativos à supra mencionada consulta pública podem ser consultados em www.concorrencia.pt.
4 Vide Ac. do TJ de 06.11.2012, Proc. C-199/11, pts. 65 e 66, disponível em www.curia.europa.eu.
5 Vide Ac. do Tribunal Geral de 15.12.2011, CDC Hydrogene Peroxide, Proc. T-437/08, pt. 49, disponível em www.curia.europa.eu.
6 O leitor interessado sobre o contexto da União, anterior e posterior à diretiva, pode consultar os nossos The Disclosure of Documents Collected by Competition Authorities Before and After the EU Damages Directive, in 60 Years of EU Competition Law: Stocktaking and Future Prospects, Edt. por Roberto Mastroianni e Amedeo Arena, Editoriale Scientifica, Napoles, 2017, ps. 99-112; e As Regras Antitrust e o Direito a uma Reparação Efetiva – O Acesso às Declarações de Clemência, in Colecção Estudos, N.º 6, Instituto do Conhecimento AB, Almedina, 2017, ps. 299-343.