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Comentário ao Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 175/2018 (Processos n.os 175/17 e 246/17; DR, 2ª Série, n.º 103, de 29 de Maio de 2018) – Inconstitucionalidade das isenções, em sede de IMT e de Imposto do Selo, aplicáveis aos FIIAH (Fundos de Investimento Imobiliário para Arrendamento Habitacional) e às SIIAH (Sociedades de Investimento Imobiliário para Arrendamento Habitacional

Joana Monteiro de Oliveira
Mestranda em Ciências Jurídico-Financeiras, Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
Advogada Associada, Abreu Advogados


1. Enquadramento

1.1. O Tribunal Constitucional1 foi chamado, pela Autoridade Tributária e Aduaneira2 e pelo Ministério Público3, a apreciar se a norma constante do n.º 2 do artigo 236º da Lei n.º 83-C/2013, de 31 de dezembro (que aprovou o Orçamento do Estado para o ano de 2014), em conjugação com o n.º 16 do artigo 8.º do regime jurídico aplicável aos FIIAH (Fundos de Investimento Imobiliário para Arrendamento Habitacional) e às SIIAH (Sociedades de Investimento Imobiliário para Arrendamento Habitacional), na versão decorrente da aludida Lei n.º 83-C/2013, violam a proibição de retroatividade fiscal, expressamente consagrada no artigo 103.º, n.º 3 da Constituição da República Portuguesa4.

1.2. As normas em questão respeitam ao regime especial tributário aplicável aos FIIAH e às SIIAH, instituído no artigo 8.º do respetivo regime, vindo o referido n.º 2 do artigo 236º da Lei n.º 83-C/2013 estabelecer uma norma transitória aplicável ao regime, a qual prescreve a aplicação de novos pressupostos para a aplicação da isenção em matéria de IMT e de Imposto do Selo, resultantes do aditamento ao já referido artigo 8º do regime jurídico especialmente aplicável aos FIIAH e às SIIAH5. Da referida norma constante do n.º 2 do artigo 236º da Lei n.º 83-C/2013 resulta que, caso os prédios adquiridos na vigência da Lei 64-A/2008, de 31 de dezembro, não sejam objeto de contrato de arrendamento no prazo de três anos, contados a partir de 1 de janeiro de 2014, ou, no que para o caso do presente acórdão diretamente releva, sejam alienados dentro desse prazo, os FIIAH e SIIAH perdem o direito à isenção de IMT e de Imposto do Selo prevista no artigo 8.º, n.osos 7, alínea a), e 8, do Regime jurídico aplicável aos FIIAH e às SIIAH, aprovado por aquela Lei.

1.3 No entender da AT, as regras ora enunciadas não introduzem ex novum um regime de caducidade do benefício fiscal em causa, “… porquanto a obrigatoriedade de destinar o imóvel ao arrendamento habitacional não é um requisito das alterações introduzidas pela Lei do Orçamento do Estado para 2014, mas sim um requisito do regime especial aplicável aos Fundos de Investimento Imobiliário para Arrendamento Habitacional (FIIAH) exigido desde a sua consagração pela Lei do Orçamento do Estado (OE) para 2009…”, inexistindo, assim, qualquer frustração de expetativas dos sujeitos passivos ou violação do principio da não retroatividade da lei fiscal, expressamente consagrado no artigo 103.º, n.º 3 da CRP.
No mesmo sentido, considera o MP que o regime introduzido pela Lei do Orçamento de Estado para o ano de 2014 “… é igual ao que já existia, e que sempre existiu, desde a criação do Regime Especial aplicável aos FIIAH e SIIAH, aprovado pelos artigos 102.º a 104.º da Lei n.º 64-A/2008, de 31 de dezembro”. Conclui pela irrelevância da discussão sobre a constitucionalidade da cessação de efeitos das isenções de IMT e de Imposto de Selo aplicadas a aquisições de prédios urbanos destinados ao arrendamento para habitação permanente ocorridas antes de 1 de janeiro de 2014, quando aqueles não tenham sido objeto de contrato de arrendamento no prazo de três anos a contar desta data, já que a mesma “não resulta do mero decurso do prazo de três anos (prazo da presunção “juris et de jure” criada pela redação dos n.os 14 a 16, do artigo 8.º do Regime Especial aplicável aos FIIAH e SIIAH, da Lei n.º 83-C/2013, de 31 de dezembro) mas da concreta verificação, antes do decurso de tal prazo, da não destinação do bem ao arrendamento para habitação permanente, ao ser alienado sem chegar a ser objeto de qualquer arrendamento”.

1.4 Já o Tribunal a quo - Centro de Arbitragem Administrativa6 - recusou a aplicação da norma constante do n.º 2 do artigo 236.º da Lei n.º 83-C/2013, em conjugação com o n.º 16 do artigo 8.º da Lei n.º 64-A/2008, na redação da Lei n.º 83-C/2013, com fundamento na sua inconstitucionalidade material, em virtude de considerar que ali se estabelece uma tributação retroativa (retroatividade autêntica), violadora do princípio consagrado no n.º 3 do artigo 103.º da CRP.

2. O Entendimento do Tribunal Constitucional

2.1 Considera o TC que, antes de mais, é essencial ter presente que a ratio da criação do regime tributário especialmente aplicável aos FIIAH e às SIIAH foi a de incentivar e dinamizar o mercado de arrendamento urbano em Portugal, de forma a minorar o impacto do sector na crise económico-financeira iniciada em 2008, pelo que o conjunto de isenções estabelecidas no regime, com vista a incentivar a constituição de entidades vocacionadas para o investimento na área do arrendamento em Portugal, constituem indubitavelmente benefícios fiscais.

2.2 Entendeu o CAAD que o pressuposto de aplicação da norma isentiva - destinação do imóvel a arrendamento para habitação permanente – tinha, na sua versão original, natureza instantânea, no sentido em que era suficiente a declaração da correspondente intenção (de arrendamento) por parte do sujeito passivo, feita no momento do facto tributário relevante, isto é, da aquisição do imóvel. Considerou portanto que, em virtude de, no caso concreto, tanto o evento tributário - aquisição do imóvel – como a condição de aplicação do benefício - destinação do prédio a arrendamento habitacional permanente - se verificarem integralmente sob a vigência da lei antiga (já que ambos ocorreram antes de 1 de janeiro de 2014), ao serem aplicados novos pressupostos de aplicação da condição do benefício a um facto tributário plenamente formado estar-se-ia perante uma norma autenticamente retroativa e, por isso, contrária ao princípio da proibição da retroatividade fiscal.

2.3 Para o TC, contudo, apesar de ser pacífico tratar-se de um benefício condicional, já que a sua concessão está necessariamente dependente da verificação de uma condição, a verdade é que não é certa a sua caracterização como facto instantâneo. No entendimento do TC, “os benefícios fiscais consagrados naquele artigo 8.º são, não estáticos, mas dinâmicos, no sentido em que visam incentivar a prática do sucessivo conjunto de atos que integram o iter necessário à colocação no mercado de arrendamento habitacional de frações adquiridas pelos fundos imobiliários para esse fim, através do estabelecimento entre as vantagens fiscais em cada momento atribuídas e a atividade em concreto estimulada de uma relação de causa-efeito”. Acresce que, no que toca às isenções de IMT e Imposto do Selo, “a causa do benefício só pode residir na efetiva disponibilização do imóvel adquirido para arrendamento habitacional”, o que necessariamente significa que a atividade que se visa incentivar “não é a mera aquisição do imóvel, ainda que acompanhada da declaração do propósito de o afetar ao arrendamento habitacional; é sim a colocação no mercado de arrendamento habitacional do imóvel adquirido, sendo essa, em definitivo, a atividade cujo exercício se pretendeu estimular através da concessão dos referidos benefícios”. Por força destes argumentos, e por se mostrar crucial determinar a estrutura do facto tribuário para efeitos de aferir se resulta violado o princípio constitucionalmente consagrado de proibição da retroatividade fiscal, concluiu por fim o TC que o facto que determina a aplicação da norma isentiva era, já na sua versão originária (Lei n.º 64-A/2108), um facto de natureza complexa de formação sucessiva, que apenas se completava com a efetiva disponibilização do imóvel adquirido para fins de arrendamento.

2.4 Adianta ainda o TC que o estabelecimento de um prazo dentro do qual o imóvel adquirido terá de ser efetivamente arrendado, sob pena de caducidade das isenções, não significa que a disponibilização do imóvel para aquele fim não integrasse já a condição inicialmente aposta ao benefício, mas sim que, em todos os casos em que o contrato de arrendamento não venha a ser efetivamente celebrado dentro daquele prazo (e ainda que por causa não imputável ao fundo), o benefício caduca, renascendo a correspondente obrigação tributária. Da mesma forma, a determinação de um prazo dentro do qual o imóvel adquirido pelo fundo não pode ser alienado, sob pena de caducidade das isenções, não significa que a efetiva colocação do prédio no mercado de arrendamento habitacional não fosse já legalmente exigida, mas sim que, mesmo que o imóvel seja efetivamente disponibilizado para arrendamento habitacional, o fundo é obrigado a conservar a propriedade do imóvel durante aquele prazo, ainda que a celebração efetiva do contrato de arrendamento se tenha frustrado por causas que não sejam imputáveis. Pelo que considera o TC que, “ao adicionar ao pressuposto originariamente previsto para a isenção (…) os novos pressupostos resultantes do aditamento ao artigo 8.º do Regime jurídico aplicável aos FIIAH dos seus atuais n.os 14 a 16 (…), a norma do n.º 2 do artigo 236.º da Lei n.º 83-C/2013 alcança e agrava a condição resolutiva aposta ao benefício, que vinha do passado, originando, com isso, um caso de retroatividade inautêntica”. Assim, e não obstante não se tratar de uma norma sob incidência da proibição da retroatividade fiscal consagrada no n.º 3 do artigo 103.º da Constituição - e de não ser, por isso, sancionável de forma automática, nos termos em que o são as situações de retroatividade autêntica –, a norma constante do n.º 2 do artigo 236.º da Lei n.º 83-C/2013, ora em apreço, apenas será considerada constitucionalmente conforme se, em face dos elementos que integram a relação jurídico-tributária atingida, for de concluir que a aplicação da nova lei a factos iniciados sob a vigência da lei antiga é compatível com as exigências que, em caso de alteração da ordem jurídica, o legislador é obrigado a respeitar por força do princípio da proteção da confiança.

2.5 O que releva, pois, é o facto de, em virtude da retroatividade imposta pelo n.º 2 do artigo 236.º da Lei n.º 83-C/2013, as isenções concedidas ao abrigo da versão originária da Lei que aprovou o regime jurídico especialmente aplicável aos FIIAH e às SIIAH caducarem, não apenas se o imóvel adquirido não for disponibilizado para arrendamento habitacional em momento posterior ao da respetiva aquisição, mas também se, não obstante aquela disponibilização, nenhum contrato de arrendamento vier a ser efetivamente celebrado por razões não imputáveis ao fundo e/ou o imóvel adquirido acabar por ser alienado na sequência dessa impossibilidade, dentro dos três anos subsequentes à entrada em vigor da nova lei. Recorde-se que, nos termos da lei antiga, afigurava-se condição necessária e suficiente para atribuição das isenções concedidas no âmbito do IMT e do Imposto do Selo a destinação do imóvel adquirido ao arrendamento habitacional, através da sua efetiva disponibilização para o efeito, nada sendo estabelecido quanto à necessidade de um imóvel adquirido ter de vir a ser efetivamente arrendado/permanecer na esfera de propriedade do fundo durante determinado período de tempo para que tal beneficio não caducasse.

2.6 Ao vir a ser determinada, pelo n.º 2 do artigo 236.º da Lei n.º 83-C/2013, a caducidade dos benefícios, no caso de o imóvel adquirido, apesar de disponibilizado para arrendamento habitacional, não vir a ser efetivamente arrendado dentro de determinado prazo por razões não imputáveis ao fundo e/ou acabar por ser por essa razão alienado de modo a minimizar eventuais prejuízos decorrentes da impossibilidade da sua rentabilização, o TC conclui que “(…) a lei nova transfere para os fundos o risco inerente ao funcionamento do mercado em termos que não só não tinham paralelo no domínio da lei antiga como não eram, em face dos que aí se previam, de modo algum antecipáveis”, concluindo em seguida que a aplicação retroativa desta norma frusta as expetativas legitimas dos fundos imobiliários na manutenção do regime fiscal em vigor à data de aquisição dos imóveis, pelo que, não havendo qualquer interesse constitucionalmente protegido que justifique a lesão da confiança dos fundos imobiliários, será forçoso concluir pela inconstitucionalidade da referida norma, por violação do principio da tutela da confiança.

2.7 Desta forma, decidiu o TC “Julgar inconstitucional, por violação do princípio da proteção da confiança, decorrente do artigo 2.º da Constituição, a norma decorrente do n.º 2 do artigo 236.º da Lei n.º 83-C/2013, de 31 de dezembro, em conjugação com o n.º 16 do artigo 8.º do Regime jurídico aplicável aos FIIAH e às SIIAH, na versão decorrente das alterações levadas a cabo pela aludida Lei, de acordo com a qual as isenções em sede de IMT e de Imposto de Selo previstas nos n.os 7, alínea a), e 8, daquele artigo 8.º caducam se o imóvel adquirido for alienado no prazo de três anos, contados de 1 de janeiro de 2014”.

3. Conclusão
A circunstância de a lei nova integrar, por via de aditamento ao regime, novos pressupostos não contemplados na lei vigente à data das aquisições dos imóveis pelos FIIAH e SIIAH, que determinam a caducidade de um benefício anteriormente conferido, leva-nos a acompanhar integralmente a posição do TC, que declarou a inconformidade constitucional das disposições legais em apreço.
Apesar de se tratar de um facto tributário de formação sucessiva7, tal não significa que nunca haverá inconstitucionalidade. Aliás, como refere Américo Brás Carlos, “a inconstitucionalidade é possível, não porque tal norma seja retroativa (que não é) mas quando viole o princípio da proporcionalidade, enquanto corolário do princípio da segurança tributária ou da protecção da confiança. Assim, a inconstitucionalidade poderá verificar-se nos casos em que a alteração introduzida pela lei nova seja de tal modo gravosa e inesperada que ponha em causa aquele princípio constitucional geral, aqui aplicado à tributação”8 .
O princípio da segurança tributária ou da proteção da confiança decorre dos artigos 1.º e 2.º da CRP e está ínsito na ideia de Estado de Direito Democrático, que lhe impõe a obrigação de se abster de praticar atos que afetam a proteção da confiança dos seus administrados, no caso, dos FIIAH (Fundos de Investimento Imobiliário para Arrendamento Habitacional) e das SIIAH (Sociedades de Investimento Imobiliário para Arrendamento Habitacional) - é de sufragar o entendimento do TC vertido neste Acórdão.

___________________________
1 Adiante, TC.
2 Doravante, AT.
3 Doravante, MP.
4 Adiante, CRP.
5 Aprovado pelos artigos 102.º a 104.º da Lei n.º 64-A/2008, de 31 de dezembro.
6 Doravante, apenas CAAD.
7 A propósito do facto tributário complexo, veja-se na doutrina estrangeira de língua portuguesa, Paulo de Barros Carvalho, que considera que “o acontecimento só ganha proporção para o Direito, mesmo que composto por mil outros factos que se devam conjugar, no instante em que todos estiverem concretizados, na forma legalmente estipulada”: Curso de Direito Tributário, Editora Saraiva, São Paulo, 1985, p.153.
8 V. Impostos – Teoria Geral, 5.ª Edição, Almedina, Coimbra, 2016, p.128.