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Lei n.º 49/2018, de 14 de agosto – Cria o regime jurídico do maior acompanhado e elimina os institutos da interdição e da inabilitação

Rui Cardinal Carvalho
Mestrando em Ciências Jurídico-Empresariais, Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra; Curso de Especialização em Compliance e Direito Penal, Instituto de Direito Penal Económico e Europeu/Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra
Advogado Estagiário, Abreu Advogados


Introdução
No dia 14 de agosto de 2018 foi publicada a Lei n.º 49/2018, que veio eliminar os institutos jurídicos da interdição e da inabilitação, substituindo os regimes legais destes últimos por um regime unificado de um novo instituto do Direito Civil português - o instituto jurídico do i>acompanhamento de maiores.
Para além do significativo impacto produzido ao nível do Código Civil1, a referida Lei 49/2018, de 14 de agosto, procedeu, ainda, à revogação e modificação de inúmeros preceitos nos mais variados diplomas legais da ordem jurídica nacional. Não obstante o seu impacto transversal, são de salientar, pela sua relevância dogmática e prática, as já referidas alterações operadas ao Código Civil, por um lado e, por outro, as modificações introduzidas no Código de Processo Civil, nomeadamente no que concerne ao (novo) processo especial tendente ao decretamento do acompanhamento, que vêm delinear os termos em que se processará a operacionalização prática do novo instituto do acompanhamento de maiores.
Nos termos do disposto no artigo 25.º da Lei 49/2018, de 14 de agosto, esta entrará em vigor 180 dias após a sua publicação, ou seja, no próximo dia 10 de fevereiro de 2019. Atenta a proximidade do termo da sua vacatio legis, e, bem assim, a relevância e magnitude das alterações por si introduzidas, afigura-se pertinente proceder a uma análise, ainda que breve, daquele diploma legal.

1. Considerações Gerais
De acordo com a Exposição de Motivos da Proposta de Lei que esteve na origem da Lei n.º 49/2018, de 14 de agosto, os "fundamentos finais da alteração das denominadas incapacidades dos maiores (...) são, em síntese, os seguintes: a primazia e autonomia da pessoa, cuja vontade deve ser respeitada e aproveitada até ao limite do possível; a subsidiariedade de quaisquer limitações judiciais à sua capacidade, só admissíveis quando o problema não possa ser ultrapassado com recurso aos deveres de proteção e de acompanhamento comuns, próprios de qualquer situação familiar; a flexibilização da interdição/inabilitação, dentro da ideia de singularidade da situação; a manutenção de um controlo jurisdicional eficaz sobre qualquer constrangimento imposto ao visado; o primado dos seus interesses pessoais e patrimoniais; a agilização dos procedimentos, no respeito pelos pontos anteriores; a intervenção do Ministério Público em defesa e, quando necessário, em representação do visado"2.
Da análise dos supracitados fundamentos podemos desde logo retirar que o legislador procurou superar as dificuldades associadas à falta de flexibilidade das soluções oferecidas pelo binómio "inabilitação/interdição"3, substituindo o paradigma anterior de soluções do género "one size fits all", por um novo, de soluções "custom-made", pensadas para cada sujeito concreto e adaptadas às suas situação e condição específicas.
Uma outra conclusão a que se chega é a de que, neste novo contexto em que as medidas se adaptam ao sujeito que delas é objeto e não o contrário, as medidas restritivas da amplitude da esfera de liberdade e autonomia do sujeito deverão sempre ser aplicadas a título subsidiário, e, quando o sejam, apenas e só dentro dos limites do estritamente necessário para eliminar as barreiras com que o sujeito que delas é objeto se depara, capacitando-o. Estes dois princípios da subsidiariedade e da necessidade representam, em nosso ver, as traves mestras sobre as quais assenta o novo regime do maior acompanhado, razão pela qual nunca poderá o intérprete – seja ele o académico, o advogado, ou, acima de tudo, o juiz -, perdê-los de vista quando visa concretizar as soluções que nele se preveem.
Com as alterações introduzidas pela Lei n.º 49/2018, de 14 de agosto a ordem jurídica portuguesa adapta-se às exigências provenientes de instrumentos internacionais a que o nosso país se encontra adstrito, nomeadamente a Convenção das Nações Unidas de 30 de março de 2007 sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência4, e integra-se, definitivamente, no movimento de revitalização da lei civil em matéria de incapacidades das pessoas singulares maiores a que já haviam aderido, por exemplo, as ordens jurídicas alemã, francesa, italiana5.
       
2. Do acompanhado
Nos termos da nova redação do artigo 138.º do Código Civil, introduzida pela Lei n.º 49/2018, pode ser acompanhado o maior impossibilitado, por razões de saúde, deficiência, ou pelo seu comportamento, de exercer, plena, pessoal e conscientemente, os seus direitos ou de, nos mesmos termos, cumprir os seus deveres.
A amplitude dos conceitos indeterminados utilizados para delimitar o universo de sujeitos que podem ser beneficiários das medidas de acompanhamento permite superar as dificuldades inerentes à utilização de conceitos concretos e limitativos em matéria da definição do âmbito subjetivo dos institutos da interdição e da inabilitação, e adequa-se aos fundamentos subjacentes ao novo regime, que visa acolher e integrar e não identificar e isolar. Com efeito, e como bem sintetiza Mafalda Miranda Barbosa, "porque se parte da capacidade e não da incapacidade e porque se acolhe a vontade do beneficiário (...) o intérprete não tem de ficar limitado por um elenco rígido de fundamentos"6.

3. Do requerimento do acompanhamento
De acordo com a nova letra do artigo 141.º do Código Civil, o acompanhamento é requerido pelo sujeito que dele pretenda beneficiar ou, mediante autorização deste, pelo cônjuge, pelo unido de facto, ou por qualquer parente sucessível. Com esta solução consagra-se aquilo que pode designar-se como princípio de primazia da vontade do acompanhado, atribuindo-se a este, como regra, o poder de decidir se pretende tirar partido ou não das vantagens que o decretamento da medida de acompanhamento lhe poderá oferecer.
A primeira exceção à regra acima referida surge logo na parte final do artigo 141.º do Código Civil, onde se prevê que o acompanhamento poderá ser requerido, independentemente de autorização, pelo Ministério Público. Nesta medida, afigura-se-nos que o legislador atribuiu ao Ministério Público a prerrogativa de substituir e, até mesmo contrariar, o beneficiário na decisão pessoalíssima sobre a oportunidade e necessidade do decretamento do acompanhamento, solução esta que parece de difícil justificação à luz dos princípios basilares do novo regime legal.
Nas situações em que, em face das circunstâncias, o beneficiário não possa livre e conscientemente dar a autorização referida, o tribunal pode, a pedido cônjuge, do unido de facto, ou de qualquer parente sucessível, suprir esta falta.
Por outro lado, o suprimento pelo tribunal pode igualmente ocorrer quando este considere existir um fundamento atendível para tal, apesar de entender que o beneficiário está em condições de livre e conscientemente fornecer a autorização necessária para o requerimento do acompanhamento. Nesta possibilidade encontramos uma segunda exceção à regra da primazia da vontade do beneficiário.
Neste ponto é importante referir que o pedido de suprimento da autorização do beneficiário pode ser cumulado com o próprio pedido de decretamento de medida(s) de acompanhamento, o que permitirá obter alguns ganhos do ponto de vista da eficiência processual.
Numa última nota, cabe também mencionar que o acompanhamento pode ser requerido e instaurado dentro do ano anterior à maioridade, para produzir efeitos a partir desta. Nestes termos, sendo previsível que um menor estará impossibilitado de exercer, plena, pessoal e conscientemente, os seus direitos ou de, nos mesmos termos, cumprir os seus deveres, quando atingir a maioridade, permite-se a antecipação do requerimento do acompanhamento, de modo a garantir que esse menor não ficará desprotegido durante período de tempo mais ou menos extenso que decorrer entre o momento em que atingirá a maioridade e o momento em que seria decretado o acompanhamento.
Sendo requerido o acompanhamento dentro do ano anterior à maioridade, as responsabilidades parentais ou a tutela manter-se-ão até ao trânsito em julgado da sentença que o decrete.

4. Do acompanhante
O acompanhante deverá ser um sujeito maior e no pleno exercício dos seus direitos, e é escolhido pelo beneficiário ou pelo seu representante legal7, sendo designado judicialmente. Assim, também neste ponto vigora o princípio da primazia da vontade do beneficiário, mas também aqui este princípio não vigora de forma absoluta e irrestrita.
Com efeito, parece-nos que, se por um lado é verdade que o legislador atribui ao beneficiário a possibilidade de escolha do acompanhante, por outro lado também é certo que é ao tribunal que incumbe a designação do mesmo. Nesta medida, a escolha apresentada pelo beneficiário não poderá deixar de ser considerada pelo tribunal, mas este último poderá dela afastar-se quando entender que uma outra é imposta pelo imperioso interesse do beneficiário.
Na falta de escolha, o acompanhamento é deferido, no respetivo processo, à pessoa cuja designação melhor salvaguarde o interesse imperioso do beneficiário, apresentando a lei uma lista não taxativa de sujeitos, indicados por ordem de preferência, na qual se incluem o cônjuge não separado, judicialmente ou de facto, o unido de facto, os pais do beneficiário, entre outros. No limite, poderá ser designado como acompanhante qualquer pessoa, conquanto seja idónea.
Note-se que podem ser designados vários acompanhantes, com diferentes funções, devendo as atribuições de cada um ser especificadas.
Uma vez designados, o cônjuge, os descendentes ou os ascendentes, não podem, em regra, escusar-se ou ser exonerados. De todo o modo, no caso dos descendentes, é possível a exoneração a pedido dos mesmos, conquanto tenham decorrido cinco anos desde o trânsito em julgado da decisão de designação e existam outros descendentes igualmente idóneos para o exercício das funções de acompanhamento para as quais o descendente que pretende a exoneração tenha sido designado8-9.
A mesma limitação não existe para os demais acompanhantes, que poderão pedir escusa com base nos fundamentos previstos no artigo 1934.º do Código Civil ou requerer a sua substituição decorridos que estejam cinco anos sobre o trânsito em julgado da decisão de designação.
Em qualquer caso, os acompanhantes designados poderão sempre ser judicialmente removidos caso faltem ao cumprimento dos deveres próprios do cargo ou revelem inaptidão para o seu exercício.

5. Do mandato com vista a acompanhamento
Nos termos do disposto no artigo 156.º do Código Civil, o maior pode, prevenindo uma eventual necessidade de acompanhamento, celebrar um contrato de mandato para a gestão dos seus interesses, sendo que este contrato poderá ser celebrado com ou sem poderes de representação.
O mandato celebrado seguirá o regime geral deste tipo de contrato, previsto nos artigos 1157.º e seguintes do Código Civil, devendo, não obstante, especificar os direitos envolvidos e o âmbito de uma eventual representação.
A possibilidade de celebração de mandato com vista a acompanhamento revela, uma vez mais, a importância atribuída pelo legislador à vontade e autonomia do maior. A relevância desta vontade surpreende-se igualmente na solução prevista no n.º 3 do artigo 156.º do Código Civil, quando se prevê que o conteúdo do mandato celebrado deve ser aproveitado, no todo ou em parte, pelo tribunal que decreta o acompanhamento. Assim, e apesar de o tribunal dispor da possibilidade de se afastar das soluções consagradas no contrato de mandato quando o imperioso interesse do maior assim o impuser, não deverá deixar de ter em conta o que daquele contrato resulta no momento da definição do âmbito da proteção e na designação do acompanhante.
Por regra, sendo proferida sentença decidindo o acompanhamento do mandante, caducará o mandato no momento em que o mandatário tome conhecimento dessa decisão. De todo o modo, esta caducidade não terá lugar quando o mandato tenha sido conferido também no interesse do mandatário ou de terceiro e, bem assim, quando da caducidade possam resultar prejuízos para o mandante ou seus herdeiros (artigo 1175.º, n.os 1 e 2 do Código Civil).

6. Do conteúdo do acompanhamento
Em coerência com os fundamentos do regime do acompanhamento de maiores, o acompanhamento só deverá ser decretado quando não seja possível satisfazer as necessidades do beneficiário através dos deveres gerais de cooperação e de assistência, e, ainda assim, deverá sempre limitar-se ao mínimo necessário para cada caso concreto. Por esta razão, no momento do decretamento da medida de acompanhamento, o tribunal deverá afinar e adaptar o acompanhamento ao beneficiário, assim se compreendendo que o legislador tenha decidido atribuir ao tribunal o poder de, em função de cada caso e independentemente do que haja sido pedido, cometer ao acompanhante os mais diversos poderes, lançando mão de algum ou de vários regimes, designadamente:

  1. Do regime do exercício das responsabilidades parentais ou dos meios de as suprir, conforme as circunstâncias;

  2. Do regime da representação geral ou representação especial com indicação expressa, neste caso, das categorias de atos para que seja necessária;

  3. Da administração total ou parcial de bens;

  4. Da autorização prévia para a prática de determinados atos ou categorias de atos.

Em qualquer caso, e independentemente da configuração originária da medida de acompanhamento, a mesma está sujeita a uma revisão periódica que deverá ocorrer, no mínimo, de cinco em cinco anos, desde que outra periodicidade não seja estabelecida na sentença que decreta o acompanhamento. Por outro lado, e em estrita observância do princípio da necessidade, prevê-se que o acompanhamento cessa ou é modificado mediante decisão judicial que reconheça a cessação ou a modificação das causas que o justificaram.
Uma vez decretada a medida de acompanhamento, o agora acompanhado, gozará da proteção associada à intervenção do acompanhante dentro dos limites e para os efeitos definidos na sentença. De todo o modo, qualquer que seja o conteúdo concreto da medida decretada, os atos de disposição de imóveis carecerão sempre de autorização judicial prévia e específica.
O decretamento da medida de acompanhamento será, à partida, irrelevante para efeitos de determinação da amplitude da capacidade para o exercício dos direitos pessoais do acompanhado, que se manterá inalterada. De facto, a lei esclarece que o exercício destes direitos - que enumera numa lista não taxativa10 - é livre, salvo disposição da lei ou decisão judicial em contrário.
Igualmente intocada pelo decretamento da medida de acompanhamento ficará a capacidade de exercício do acompanhado para celebrar negócios da vida corrente, uma vez que esta também só poderá ser limitada pela lei ou por decisão judicial nesse sentido11.       
Nos termos do disposto no 146.º, do Código Civil, no exercício da sua função, o acompanhante deverá privilegiar o bem-estar e a recuperação do acompanhado, com a diligência requerida a um bom pai de família, na concreta situação considerada.
Com vista à orientação da conduta do acompanhante, o legislador consagrou, em articulação com aquela norma de conteúdo positivo, no artigo 150.º do Código Civil, uma norma de conteúdo negativo, pela qual impõe ao acompanhante o dever de se abster de agir em conflito de interesses com o acompanhado. Assim, confirmando-se a existência de uma situação de conflito de interesses, o acompanhante deverá abster-se de praticar o ato em questão, ou, alternativamente, deverá requerer ao tribunal a autorização necessária para o fazer. A sanção para o incumprimento destes deveres alternativos encontra-se prevista n.º 2 do artigo 150.º do Código Civil, que remete o intérprete para o artigo 261.º deste diploma legal, preceito que prevê a invalidade do negócio celebrado consigo mesmo.
Apesar de o legislador não definir o que se deve entender por "conflito de interesses" para efeitos de aplicação do artigo 150.º do Código Civil, e não obstante a norma remissiva que é o n.º 2 deste artigo 150.º, deverá entender-se, como defende Mafalda Miranda Barbosa, que o "âmbito de relevância do artigo 150.º é mais amplo...", não estando em causa apenas "a específica celebração de negócios jurídicos, mas qualquer forma de atuação que envolva um conflito de interesses"12. De facto, se assim não se entendesse, ficaria aberta a porta à possibilidade de o acompanhante prosseguir os seus próprios interesses em detrimento dos interesses do acompanhado nas situações em que não estivesse diretamente envolvido como parte.
A lei prevê ainda que o acompanhante deverá manter um contacto permanente com o acompanhado, devendo visitá-lo, no mínimo, com uma periodicidade mensal, ou outra periodicidade que o tribunal considere adequada13.
Mais se deve referir que o exercício das funções de acompanhante não é remunerado, sem prejuízo da alocação de despesas, consoante a condição do acompanhado e a do acompanhante. De todo o modo, a confiança do legislador no acompanhante não é absoluta e, por essa razão e por forma a permitir uma sindicância do modo de exercício desta função, o acompanhante deverá prestar contas ao acompanhado e ao tribunal no momento em que cessar a sua função ou quando, na pendência do exercício da mesma, assim seja judicialmente determinado.
       
7. Da validade dos atos do acompanhado
Uma vez decretada a medida de acompanhamento, a lei sanciona com a anulabilidade os atos praticados pelo acompanhado em contravenção ao decretado. Assim, e a título de mero exemplo, será anulável o contrato de compra e venda celebrado após trânsito em julgado da sentença que decretou a necessidade de autorização do acompanhante para a prática, pelo acompanhado, de quaisquer atos de alienação de bens do seu património, e através do qual o acompanhado alienou um dos seus automóveis sem autorização prévia do acompanhante.
Igualmente anuláveis serão os atos praticados depois do anúncio do início do processo de decretamento da medida de acompanhamento desde que a mesma venha, efetivamente, a ser decretada, e os atos em questão se mostrem prejudiciais para o acompanhado. A solução segue a linha da que se encontrava prevista para o caso paralelo dos atos praticados pelo inabilitado e pelo interdito na pendência, respetivamente, do processo de inabilitação ou interdição, e afigura-se, em nosso ver, adequada, uma vez que também no caso do maior acompanhado, e à semelhança do que sucedia com os interdicendos, há que garantir uma solução de compromisso entre as necessidades de tutela do sujeito que, apesar de potencialmente incapaz, não tem interesse em se ver ostracizado do tráfego, e as necessidades de tutela da confiança dos terceiros que, apesar de cientes da existência de um processo de decretamento de acompanhamento relativamente ao maior, com este possam, ainda assim, ter interesse em contratar.
Relativamente ao prazo dentro do qual a anulabilidade deve ser requerida, dispõe o artigo 154.º, n.º 2 do Código Civil, que este só começa a contar-se a partir do registo da sentença, sem, no entanto, esclarecer qual o prazo que deverá ser contado a partir desse termo a quo que é fixado. Não obstante o silêncio do legislador, poderá defender-se que, estando em causa uma anulabilidade, o prazo em questão será o prazo regra de um ano previsto no artigo 287.º do Código Civil14.
A circunstância de estar em causa uma anulabilidade impõe que se determine quem possui legitimidade para a invocar. Simplesmente, também aqui o legislador se absteve de regular expressamente a questão. Assim, e uma vez mais, deverá ter aplicação o regime geral da anulabilidade previsto no artigo 287.º do Código Civil, de acordo com o qual só têm legitimidade para arguir a anulabilidade as pessoas em cujo interesse a lei a estabelece – indubitavelmente o acompanhado e, possivelmente, o acompanhante que o deva substituir ou assistir na prática de atos do género daquele cuja anulabilidade se pretende15.

8. Do processo de decretamento da medida de acompanhamento
Nos termos do disposto no artigo 891.º do Código de Processo Civil, o processo de acompanhamento de maior tem "caráter urgente, aplicando-se-lhe, com as necessárias adaptações, o disposto relativamente aos processos de jurisdição voluntária relativamente aos poderes do juiz, ao critério de julgamento e à alteração das decisões com fundamento em circunstâncias supervenientes".
Por forma a maximizar o efeito útil do decretamento do acompanhamento e combater eventuais delongas processuais potencialmente prejudiciais, permite-se que sejam requeridas ou oficiosamente decretadas as medidas cautelares que a situação concreta reclamar, em qualquer altura do processo.
Uma vez iniciado o processo, cabe ao juiz determinar, em face do caso concreto, o tipo de publicidade que deve ser dada ao início do mesmo, ao seu decurso, e, por fim, à decisão final do processo. Desta circunstância decorre que as medidas de publicidade poderão ser distintas consoante a fase processual, sem prejuízo de deverem sempre obedecer ao princípio de estrita necessidade consagrado no artigo 153.º do Código Civil e de acordo com o qual a publicidade a dar às várias fases do processo é limitada ao estritamente necessário para defender os interesses do beneficiário ou de terceiros.
Da decisão relativa à medida de acompanhamento cabe recurso de apelação, tendo legitimidade para o interpor o requerente, o acompanhado, e, na qualidade de assistente, o acompanhante. Em nosso ver, o elenco apresentado neste artigo 901.º do Código de Processo Civil não se revela coerente com o artigo 141.º do Código Civil, que identifica os sujeitos com legitimidade para propor a ação tendente ao decretamento do acompanhamento. Com efeito, este último artigo atribui ao Ministério Público a possibilidade de propor a ação em questão, mas o artigo 901.º Do Código de Processo Civil nega-lhe a possibilidade de interpor recurso da decisão relativa à medida de acompanhamento, uma vez que não o inclui no elenco de sujeitos com legitimidade para o efeito.

Conclusão
O novo regime jurídico do maior acompanhado veio introduzir alterações significativas na ordem jurídica nacional em matéria de incapacidade das pessoas singulares maiores, substituindo o paradigma legal estabelecido pelos institutos da inabilitação e da interdição e há já muito tempo consolidado, por um novo paradigma, que se pretende mais adequado à dignidade da pessoa do incapaz, que reclama e impõe um tratamento da situação deste último que seja proporcional e adequado às suas limitações.
A flexibilidade do novo regime e a possibilidade de adequação da medida de acompanhamento a cada caso concreto por este permitido são, sem dúvida, duas das maiores vantagens que este oferece. Estas vantagens deverão ser exploradas sem receio pelos nossos tribunais, e isto apesar das dificuldades interpretativas que, como vimos, o novo regime legal suscita, uma vez que só assim se concretizará plenamente o potencial subjacente ao novo regime e, bem assim, os objetivos definidos pelo nosso legislador.

____________________
1 Para além das alterações diretas operadas ao nível dos regimes jurídicos da interdição e da inabilitação, os quais estão especificamente previstos e regulamentados, respetivamente, nos artigos 138.º a 151.º e 152.º a 156.º do Código Civil, este último diploma legal sofre, ainda, alterações reflexas, impostas pela necessidade de adequação sistemática do novo regime.
2 Proposta de Lei n.º 110/XIII, disponível em https://www.parlamento.pt/ActividadeParlamentar/Paginas/DetalheIniciativa.aspx?BID=42175, p. 3.
3 Para uma síntese das críticas apontadas ao regime da interdição, veja-se Raúl Guichard Alves, "Alguns aspectos do instituto da interdição", in Interdição e Inabilitação, Coleção Formação Inicial do Centro de Estudos Judiciários, 2015, pp. 42 e ss. Mais desenvolvidamente, veja-se Paula Távora Vítor, A Administração do Património das Pessoas com Capacidade Diminuída, Coimbra Editora, Coimbra, 2008.
4 Disponível em português em http://www.inr.pt/content/1/1187/convencao-sobre-os-direitos-das-pessoas-com-deficiencia.
5 Em termos sucintos, sobre os regimes existentes em cada uma destas ordens jurídicas e sublinhando-se a influência destes na ordem jurídica nacional, veja-se Mafalda Miranda Barbosa, Maiores Acompanhados – Primeiras notas depois da aprovação da Lei n.º 49/2018, de 14 de agosto, Gestlegal, Coimbra, 2018, pp. 41 a 48.
6 Mafalda Miranda Barbosa, op. cit., pp. 52 e 53.
7 A possibilidade de escolha pelo representante legal do beneficiário compreende-se se tivermos em conta que o acompanhamento pode ser requerido no dentro do ano anterior à maioridade para produzir efeitos a partir desta.
8 Apesar de o artigo 144.º, n.º 2, do Código Civil referir apenas que os "descendentes podem ser exonerados, a seu pedido, ao fim de cinco anos, se existirem outros descendentes igualmente idóneos" (sublinhado nosso), não identificando, com precisão, o termo a quo desse prazo, parece-nos que este não poderá ser outro que não o do trânsito em julgado da sentença pela qual os descendentes foram designados como acompanhantes.
9 Não obstante a letra do artigo 144.º, n.º 2, do Código Civil exigir apenas a existência de descendentes "igualmente idóneos", entendemos que a interpretação vertida em texto se impõe, sob pena de se alcançarem soluções que subvertem a lógica subjacente ao regime. Com efeito, ao permitir-se a designação de múltiplos acompanhantes, cada um com diferentes funções, pretende-se maximizar a probabilidade de escolher a pessoa certa para acompanhar o beneficiário em cada aspeto concreto da sua vida. Assim sendo, o juízo sobre a idoneidade de determinada pessoa para o exercício das funções de acompanhante não poderá desligar-se das concretas funções que tal pessoa será chamada a desempenhar. Nestes termos, e por estas razões, também o descendente que se pretenda exonerar ao abrigo do artigo sob análise só o poderá fazer se outro descendente existir que seja idóneo para substituí-lo no exercício das suas concretas funções.
10 Constam desta lista os direitos "de casar ou de constituir situações de união, de procriar, de perfilhar ou de adotar, de cuidar e de educar os filhos ou os adotados, de escolher profissão, de se deslocar no país ou no estrangeiro, de fixar domicílio e residência, de estabelecer relações com quem entender e de testar". Deve, no entanto, sublinhar-se que é nula a disposição testamentária feita por maior acompanhado a favor de acompanhante, ainda que estejam aprovadas as respetivas contas. Só assim não será se o acompanhante em questão for descendente, ascendente, colateral até ao terceiro grau, cônjuge do acompanhado ou pessoa com quem este viva em união de facto.
11 Sobre o que deve entender por "negócios da vida corrente" para efeitos de aplicação desta norma, acompanhamos Mafalda Miranda Barbosa, op. cit., p. 65, que entende que os "negócios da vida corrente são, portanto, os negócios que a generalidade das pessoas celebra ou para satisfação do dia-a-dia ou para satisfação de necessidades que, ultrapassando o quotidiano, fazem ainda parte do ordinário da vida".
12 Mafalda Miranda Barbosa, op. cit., p. 61.
13 Conforme bem notou o Conselho Superior da Magistratura no seu parecer sobre a Proposta de Lei que esteve na origem da Lei n.º 49/2018, o legislador não curou de especificar como deverá implementar-se esta obrigação de acompanhamento quando sejam designados múltiplos acompanhantes: estarão, todos eles, obrigados a visitar com a periodicidade mínima fixada na sentença ou, supletivamente, na lei? Poderão os múltiplos acompanhantes visitar em regime de turnos e assim dar cumprimento àquela obrigação?
Apesar do silêncio do legislador, parece-nos que, também aqui, a resposta a apresentar não deverá ignorar o fundamento subjacente à solução legal e que, na nossa perspetiva, é claramente o de garantir que o acompanhante não deixará de ter o contacto mínimo necessário ao cabal exercício da sua função. Assim sendo, sendo designados vários acompanhantes, com diferentes atribuições, poderão as exigências de acompanhamento do beneficiário em matéria de visitas ser diferentes para cada um, podendo o tribunal, porque a lei não o impede, mas antes o parece impor, determinar qual a periodicidade mensal adequada a cada um dos acompanhantes designados, sendo certo que, na falta de determinação judicial, valerá periodicidade mensal mínima legalmente fixada, a qual, em coerência com o que vem de ser dito, deverá ser observada por cada um dos acompanhantes, por se presumir necessária ao efetivo exercício das funções de cada um.
14 Desenvolvidamente sobre esta questão, veja-se Mafalda Miranda Barbosa, op. cit., pp. 71 a 75.
15 Neste sentido, com argumentos ponderosos, Mafalda Miranda Barbosa, op.cit., pp. 73 e 74.