Decreto-Lei n.º 97/2019 de 26 de Julho – Procede à alteração ao Código de Processo Civil, alterando o regime de tramitação eletrónica dos processos judiciais.Margarida Mesquita Palha, Mestre em Direito Forense e Arbitragem (Universidade Nova de Lisboa), Advogada Estagiária, Abreu Advogados
António Vidal, Mestre em Direito Empresarial (Universidade Católica Portuguesa, Lisboa), Advogado Estagiário, Abreu Advogados
A partir do dia 16 de Setembro de 2019, entrará em vigor o Decreto-Lei n.º 97/2019, de 16 de Julho, que promete conferir um caráter indubitavelmente eletrónico à tramitação dos processos que corram termos junto dos tribunais judiciais.
Com efeito, são introduzidas alterações ao Código de Processo Civil, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho, tanto ao nível da submissão e requisição de documentação pelas partes e outros interessados, como ao nível da estruturação da informação num sistema que realiza de forma automática um número crescente de tarefas.
1. A crescente desmaterialização do processo
Em Portugal já se encontra implementado um sistema informático que suporta a tramitação eletrónica do processo (o
Citius), permitindo aos mandatários praticar inúmeros atos processuais à distância e visualizar as notificações relevantes de forma imediata e desburocratizada.
Apresentando-se como um marco na maior agilização e simplificação processual, o Citius não atingia, contudo, a sua plena virtualidade.
Com efeito, passa agora a relegar-se o processo em suporte físico para uma função secundária, de mero auxílio à tramitação do processo, que deverá ser realizada, sempre que possível, eletronicamente.
Encontramos uma das manifestações mais relevantes deste propósito no artigo 132.º do Código de Processo Civil, que esclarece que a tramitação dos processos, incluindo a prática de atos escritos, é efetuada no sistema de informação de suporte à atividade dos tribunais, podendo os atos dos magistrados, excecionalmente em situação de indisponibilidade do sistema, ser praticados em papel com a subsequente digitalização e inserção no referido sistema. Dispõe também o preceito que as comunicações entre tribunais ou agentes de execução e entidades públicas e outras pessoas coletivas, que auxiliem os tribunais no âmbito dos processos judiciais, podem ser efetuadas por via eletrónica através de uma interoperabilidade entre o sistema de informação de suporte à atividade dos tribunais e os sistemas de informação das referidas entidades. Por fim, esclarece-se que o processo pode ter um suporte físico, mas somente
"com o objetivo de apoiar a respetiva tramitação" (n.º3).
Apesar de se estabelecer que as peças processuais e os documentos juntos às mesmas devem ser apresentados por via eletrónica (artigo 144.º), estabelece-se um limite para garantir que o processo é íntegro e assente na verdade: é, com efeito, conferida ao juiz a possibilidade de exigir que sejam exibidas em suporte de papel as peças e/ ou os originais dos documentos, quando, a título de exemplo, duvidar da autenticidade ou genuinidade das peças ou dos documentos ou quando for necessário realizar perícia à letra ou assinatura dos documentos (n.º 5 do artigo 144.º).
Outra mudança consiste na ampliação do acesso ao sistema de informação pelos peritos e por outros intervenientes processuais não representados por mandatários (n.º 9 do artigo 144.º).
Note-se que, mais uma vez, se prevê que a secretaria deverá proceder à digitalização dos documentos que sejam apresentados em suporte de papel e inseri-los subsequentemente no sistema (n.º 11), manifestando a intenção do legislador de plena informatização. Neste sentido, a consulta de processos, bem como a entrega de peças processuais ou documentos em suporte físico, a obtenção de informações ou mesmo os pedidos e levantamentos de certidões, passam a poder ser efetuados em qualquer tribunal, independentemente do tribunal onde correm os autos.
Outra importante introdução corresponde à assinatura digital de todas as decisões pelo juiz ou juízes respetivos, devendo estas ser elaboradas no sistema de informação de suporte à atividade dos tribunais, o qual deverá garantir o registo das sentenças e dos acórdãos finais (artigo 153.º).
A propósito do investimento na tramitação eletrónica do processo, acrescente-se, por último, que é agora expressamente determinado que sempre que a emissão de certidão seja efetuada oficiosamente pelo tribunal, deve ser feita em formato eletrónico (n.º 6 do artigo 170.º)
2. Introdução de citação eletrónica de pessoas coletivas
O Decreto-Lei n.º 97/2019 introduz novidades também a nível de citação, na medida em que admite a citação por via eletrónica de entidades públicas da Administração direta ou indireta do Estado quando tal esteja previsto em portaria dos membros do Governo responsáveis pela área da justiça e pela entidade pública em causa. O mesmo se prevê quanto a outras pessoas coletivas, desde que tal se encontre previsto em protocolo celebrado entre a pessoa coletiva e o Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça, I.P. e homologado pelo membro do Governo responsável pela área da justiça. Em ambas as hipóteses, dependentes de desenvolvimento legislativo, as citações e notificações presumir-se-ão efetuadas no 3.º dia posterior ao do seu envio para o sistema informático do citando ou notificando (não se aplicando eventual dilação por aplicação do artigo 245.º, conforme estatuído no n.º 6 do artigo 246.º).
Pode acontecer, no entanto, que o número elevado de partes, a dimensão do despacho ou da decisão a notificar às partes ou o volume dos documentos a transmitir motivem a notificação fora do âmbito do sistema de informação. Nesse caso, deverá ser enviado por correio registado às partes um código de acesso a endereço eletrónico onde os elementos a notificar ou transmitir se encontrem disponíveis, presumindo-se a notificação efetuada no 10.º dia posterior ao do registo ou no 1.º dia útil seguinte a esse, quando o não seja, ou em qualquer dia anterior em que a parte consulte o processo eletronicamente (artigo 247.º).
Também o Ministério Público deverá ser notificado por via eletrónica, conforme estabelece o n.º 2 do artigo 252.º, aplicando-se a regra geral quanto à presunção da notificação efetuada no 3.º dia posterior ao do seu envio através do sistema informático.
3. O justo impedimento na consulta eletrónica do processo
De forma a tutelar e reforçar a primazia do
Citius, vem o diploma introduzir uma situação de justo impedimento quanto ao mandatário que fique impedido de aceder à área reservada, considerando-se a notificação efetuada apenas quando for ultrapassado o justo impedimento (artigo 248.º). Para tal, aplica-se o regime do justo impedimento previsto no artigo 140.º, com as necessárias adaptações ao sistema informático – e ao Citius em particular.
4. Interoperabilidade entre o
Citius e as bases de dados nacionais
Uma das mais interessantes novidades, apresentando potencial para melhorar substancialmente a agilidade processual, é a conexão anunciada entre o sistema de informação de suporte à atividade dos tribunais e, por um lado, as bases de dados do registo civil e comercial, e, por outro, bases de dados de entidades públicas da Administração direta ou indireta do Estado.
No que respeita ao registo, prevê-se uma comunicação, imediata e automática, aos processos em curso de informações relativas ao falecimento ou extinção das partes (n.º 5 do artigo 270.º), bem como a comunicação automática pela Associação Profissional respetiva, relativamente à alteração de domicílio profissional dos mandatários e outros intervenientes processuais.
Do ponto de vista dos mandatários, permite-se agora a pesquisa nas bases de dados do ficheiro central de pessoas coletivas do Registo Nacional de Pessoas Coletivas ou da Autoridade Tributária e Aduaneira, de modo a certificar-se de que realizam uma identificação correta do réu ou outras partes no processo das quais não tenham os dados necessários para a correta identificação na respetiva petição (artigo 552.º).
Note-se, a propósito da submissão da petição inicial, que o artigo 558.º determina que o próprio sistema informático detetará a verificação dos fundamentos que possam obstar à respetiva admissão, a menos que a peça seja apresentada em suporte de papel, cabendo, nesse caso, à secretaria a tarefa de aferir a possibilidade de admissão.
De facto, passa agora a ser obrigatório indicar o NIF/NIPC do autor, bem como a sua profissão e local de trabalho, quando aplicável, sendo essa informação prestada também para as restantes partes no processo introduzidas pelo autor, quando tal lhe seja possível.
O artigo 560.º, que anteriormente previa a possibilidade de o autor apresentar nova petição inicial ou comprovativo de pagamento de taxa de justiça, dentro dos 10 dias subsequentes à recusa de recebimento ou de distribuição da petição, ou à notificação da decisão judicial que a haja confirmado, vem agora determinar que só há lugar ao aproveitamento da data de submissão da primeira petição caso estejamos perante apresentação por parte não patrocinada e caso tal petição seja entregue em suporte de papel.
Significa isto que, a menos que a petição tenha sido apresentada por parte não patrocinada por mandatário em suporte de papel, caso se verifique a falta de um dos elementos considerados necessários ao prosseguimento dos autos (presentes no artigo 558.º), não será possível que o autor apresente uma petição inicial aperfeiçoada, sendo liminarmente rejeitada pela secretaria.
Isto implicará também que o incorreto preenchimento do formulário online na plataforma
Citius leve à rejeição automática da petição inicial, sem possibilidade de aperfeiçoamento - e eventualmente sem aproveitamento da taxa de justiça já paga.
5. Inquirição de testemunhas fora do tribunal
Por fim, estabelece-se a possibilidade de as testemunhas residentes fora do concelho onde se encontra sediado o tribunal ou juízo poderem ser ouvidas por meio de equipamento tecnológico em tempo real não só a partir do tribunal ou juízo da área de residência como também em qualquer instalação do município ou da freguesia, quando protocolado, ou de outro edifício público.
Para tal, a parte que indica uma testemunha residente fora do concelho onde se encontra sediado o tribunal deve indicar se a mesma será por si apresentada, ou, por outro lado, será ouvida por videoconferência, ficando por definir se será o próprio tribunal a agendar a mesma junto do edifício público protocolado, em que termos e com que prazos – não esquecendo que esta possibilidade está associada à criação de protocolos com determinadas entidades, de momento ainda não completamente definidas.
Conclusões
As alterações introduzidas prometem modernizar o sistema judiciário em Portugal, apostando-se num afastamento dos tradicionais instrumentos de trabalho ao dispor dos advogados e dos tribunais. Ainda assim, assiste-se a uma simplificação dos mecanismos disponibilizados nas situações em que se revele necessário o recurso ao suporte de papel ou à deslocação física dos sujeitos processuais às instalações dos tribunais, designadamente, permitindo-se que a obtenção de informações, pedido e obtenção de certidões, entrega de peças processuais ou de documentos em suporte físico, bem como a consulta de processos, possa ser feita em qualquer tribunal, independentemente do tribunal onde corre o processo (n.º 3 do artigo 158.º).
Também a distribuição de processos, que passa a ser realizada numa periodicidade bidiária (artigo 208.º), e a estatuição de que o ordenamento, alteração e levantamento de penhoras devem ser realizados por meios eletrónicos (n.º 3 do artigo 712.º) revelam aquele desígnio.
Todas as modificações expostas devem ser entendidas no contexto de simplificação e aproximação dos cidadãos ao processo, concretizada no novo artigo 9.º-A: o tribunal deve dirigir-se às próprias partes e pessoas singulares e coletivas utilizando preferencialmente uma linguagem simples e clara.