Fórum Jurídico

Texto PequenoTexto NormalTexto Grande

 

Comentário ao Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 8/2015, de 29 de Abril (Proc. n.º 85/14; in DR I Série, n.º 106, de 2 de Junho de 2015) – Uniformização de Jurisprudência: Crime de Abuso de Confiança Fiscal

Carlos Almeida Lemos, Advogado, Abreu Advogados

Foi publicado a 2 de Junho o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça que pôs termo a uma antiga querela sobre o preenchimento do tipo legal do crime de Abuso de Confiança Fiscal, previsto pelo art. 105.º do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT), aprovado pela Lei 15/2001, de 5 de Junho.
Essencialmente estavam em confronto duas teses:
- uma que considerava o tipo legal de crime preenchido demonstrada que fosse apenas a não entrega do montante do imposto ao Estado, fosse qual fosse a razão dessa não entrega, e tendo ou não o contribuinte faltoso recebido o valor do imposto em falta;
- outra que considerava que o tipo legal apenas ficaria preenchido quando se demonstrasse que o montante de imposto não entregue ao Estado pelo titular da obrigação dessa entrega tinha sido efectivamente recebido pelo contribuinte a quem incumbia a obrigação legal.
O Acórdão proferido fixa jurisprudência no sentido de apenas criminalizar a conduta do contribuinte que, tendo efectivamente recebido valores a título de IVA, os não tenha entregue ao Estado na data em que se venceu essa sua obrigação, aderindo à segunda das posições acima descritas.
Pretendendo esta nossa abordagem ter um carácter eminentemente prático, ressaltaremos na nossa análise o que implicará para as decisões dos tribunais a jurisprudência fixada.

Iniciemos a nossa análise pelo texto da decisão.
Esta afirma: “A omissão de entrega total ou parcial, à administração tributária de prestação tributária de valor superior a € 7.500,00 relativa a quantias derivadas do Imposto sobre o Valor Acrescentado em relação às quais haja obrigação de liquidação, e que tenham sido liquidadas, só integra o tipo legal do crime de abuso de confiança fiscal, previsto no art. 105.º, n.º 1 e 2 do RGIT, se o agente as tiver, efectivamente, recebido”.

Em primeiro lugar, uma perplexidade, que o texto da decisão não resolve, e que vem sendo uma das questões mais discutidas pelos nossos tribunais em sede de produção de prova em julgamento. Não obstante o texto do Acórdão o refira, por mais de uma vez, o que é facto é que a decisão omite uma das principais questões relativamente ao preenchimento do tipo, que é a de saber quando é que o recebimento do IVA liquidado terá de ocorrer para se considerar punível a conduta do contribuinte. Na verdade, vem-se há muito discutindo se o recebimento terá de ocorrer dentro do período findo o qual o contribuinte terá de efectuar a entrega do imposto ao Estado, ou se bastará a demonstração por parte do Ministério Público, secundado pela prova produzida em sede de julgamento pela Autoridade Tributária, que o IVA foi recebido, mesmo que para lá do período em que o montante do imposto efectivamente tivesse de ser entregue nos cofres do Estado. Esta questão não é de somenos, uma vez que muitos casos há em que o contribuinte não recebe o montante liquidado do IVA dentro do prazo em que o teria de entregar, pelo facto de a liquidação ter sido efectuada no período a que corresponderá a entrega do imposto, mas o pagamento surgir depois desse facto, por ter ocorrido, por exemplo, um fraccionamento do pagamento da factura onde foi liquidado esse IVA.
No processo criminal aberto por suspeita de prática de crime de Abuso de Confiança Fiscal, é sempre junto em fase de inquérito o relatório elaborado pela Autoridade Tributária, mais precisamente pelo Inspector Tributário que esteve presente na empresa em acção de fiscalização. Desse relatório constam alguns dados, como sejam o do montante facturado, o do IVA liquidado e o do IVA recebido. Relativamente a este último item, ele é normalmente contabilizado como o IVA recebido à data da elaboração do Relatório, e não o IVA recebido dentro do período em que esse imposto teria de ter sido entregue à Autoridade Tributária. Todavia, este desfasamento, as mais das vezes, não é referido no Relatório elaborado, antes transparecendo que o valor relativo ao IVA recebido se reportará ao final do período em causa, e não ao da elaboração do Relatório (que ocorrerá em data muito ulterior).
Ora, este desfasamento temporal implicará, para uma defesa menos cautelosa, um Procurador desatento, ou um Juiz imprudente, a criminalização do comportamento de um contribuinte em manifesta contradição com o argumento que vingou no Acórdão de Fixação de Jurisprudência agora proferido, penalizando aqueles que, não tendo em seu poder as quantias liquidadas de IVA, à data em que as tinham de entregar ao Estado, não as entregaram, por não as terem em seu poder, tendo-as recebido mais tarde, fruto, por exemplo, de uma fraccionamento do pagamento de uma factura.
O texto da decisão agora conhecida do Acórdão de Fixação de Jurisprudência não é claro quanto a este ponto. Na verdade, a literalidade da decisão não refere em que momento deverá ocorrer o recebimento do IVA para que este seja relevante para a criminalização da conduta do agente.
Se é certo que decorre do restante texto do Acórdão que a conduta será criminalmente relevante se e quando o contribuinte faltoso tiver recebido o montante que liquidou de IVA até á data em que o tinha de entregar à Autoridade Tributária, o certo é que não retiramos essa conclusão da decisão agora tornada pública com a publicação deste aresto.
Ora, a ser esta a interpretação correcta do decidido pelo Supremo Tribunal de Justiça, não teria ficado mal clarificar este ponto, de forma a que não restassem dúvidas sobre a aplicação da Lei, sobretudo por ser Lei Criminal, aquela que, no limite, poderá pôr em causa a liberdade do cidadão contribuinte.

A interpretação que fazemos – a de se criminalizar apenas a conduta daquele que, tendo recebido o valor do imposto por si liquidado até à data em que legalmente o teria de entregar ao Estado, e não o tendo feito – é a única consentânea com a ratio do preceito. Na verdade, o que o contribuinte tem a obrigação de entregar é aquele valor que recebeu de um terceiro, seu cliente, na sequência da venda de um bem ou da prestação de um serviço. Aliás, o imposto é denominado de Imposto sobre o Valor Acrescentado, por pretender tributar, numa cadeia de valor, apenas e só o valor que, no decurso da cadeia, vai sendo acrescentado por cada um dos intervenientes. Razão pela qual é permitido aos contribuintes que liquidam IVA deduzir os valores por si pagos a montante, relativos ao IVA que lhes foi cobrado nas transmissões anteriores. A ser assim, como é, apenas fará sentido criminalizar a conduta daquele que, tendo recebido o valor do imposto daquele que a jusante se encontra na cadeia de valor, não procedeu à entrega desse montante à Autoridade Tributária, como era sua obrigação. Bem pelo contrário, não fará qualquer sentido criminalizar a conduta daquele que, tendo liquidado IVA, não tenha recebido a quantia relativa ao imposto liquidado, simplesmente pelo facto de o seu cliente não lhe ter pago a factura, integral ou parcialmente.
Não cometerá, assim, o crime de Abuso de Confiança Fiscal o contribuinte que não entregue até ao final do período em causa valores de IVA que não lhe foram pagos dentro dessem mesmo período.

Coisa diversa será a da existência de uma dívida fiscal, perseguida através de processo de execução fiscal, relativamente aos montantes de IVA liquidados e não entregues ao Estado. Aqui estaremos apenas perante uma questão fiscal, sem a consequência da eventual aplicação de uma pena de prisão ao infractor, mas apenas sujeita a consequências civis próprias de uma cobrança de dívida. Foi pena que a redacção do Acórdão de Fixação de Jurisprudência não tenha acautelado futuras incertezas da sua aplicação, ainda para mais quando estamos a tratar de matéria Penal, com a gravidade que encerra.

Acreditamos, contudo, que os Tribunais, e nestes não só os Juízes, como também os Senhores Procuradores, apliquem este aresto de forma correcta, preenchendo esta insuficiente redacção da decisão, iluminados pela ratio da mesma, dando suporte à tese que sempre interpretou o art. 105.º do RGIT como norma de Direito Penal que é, com os cuidados que a mesma merece, sobretudo pela gravidade das consequências que, no limite, implica.
Referimos os Senhores Procuradores, não no papel de decisores, que não o são, mas como titulares da Acção Penal, que são, com o poder de pedir a absolvição do arguido quando a prova que lhes é presente em julgamento não é suficiente para suportar uma condenação.
A minha experiência enquanto advogado demonstra que, mesmo antes da publicação do Acórdão em comentário, já vinha sendo prática dos tribunais a consideração de que praticava um crime de Abuso de Confiança Fiscal apenas aquele contribuinte que não tinha entregue o IVA efectivamente recebido no período em causa, deduzidas que fossem os seus eventuais créditos relativos a esse imposto.
Pelo que cremos que esta orientação correcta sairá reforçada com a jurisprudência agora fixada.
Saudamos, mesmo com a identificada insuficiência, esta decisão, por ser mais um passo em frente na boa aplicação da Justiça Penal.

Disponível na BDJUR

  • Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça nº 8/2015 de 02-06-2015
    «A omissão de entrega total ou parcial, à administração tributária de prestação tributária de valor superior a EUR 7.500 relativa a quantias derivadas do Imposto sobre o Valor Acrescentado em relação às quais haja obrigação de liquidação, e que tenham sido liquidadas, só integra o tipo legal do crime de abuso de confiança fiscal, previsto no artigo 105 nº 1 e 2 do RGIT, se o agente as tiver, efectivamente, recebido»