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Comentário ao Acórdão n.º 362/2015 do Tribunal Constitucional, de 9 de Julho de 2015 (DR, II Série, N.º 186, 23 de Setembro de 2015) – Declaração de insolvência e suspensão de prazos de prescrição e de caducidade em processo tributário

Micaela Afonso, Mestre em Direito, Advogada, Abreu Advogados

Isabel Sousa Castro, Mestre em Direito, Advogada, Abreu Advogados


I. O Acórdão n.º 362/2015 do Tribunal Constitucional, de 9 de Julho de 2015 (publicado no DR em 23 de Setembro), tem por objeto a apreciação da constitucionalidade da norma constante do artigo 100.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (de ora em diante CIRE) aprovada pelo Decreto-lei n.º 53/2004, de 18 de Agosto, interpretada no sentido de a mesma determinar a suspensão dos prazos prescricionais no âmbito do processo tributário, por violação do disposto no art. 165.º, n.º 1, alínea i), e 103.º, n.º 2, ambos da Constituição da Republica Portuguesa (doravante CRP).
O referido artigo 100.º do CIRE estabelece que: “A sentença de declaração da insolvência determina a suspensão de todos os prazos de prescrição e de caducidade oponíveis pelo devedor, durante o decurso do processo.”
Esta matéria tinha sido já anteriormente discutida pelo Supremo Tribunal Administrativo, tendo sido jurisprudência dominante1 o entendimento de que o art. 100.º do CIRE era aplicável às obrigações tributárias, ou seja, que o prazo de prescrição ou de caducidade previstos nos arts. 45.º e seguintes da Lei Geral Tributária (doravante LGT) suspendiam-se com a declaração e durante a pendência do processo de insolvência, mas que não contendia com o regime da prescrição, consagrado nos arts. 48.º e 49.º da LGT.
Também a doutrina, nomeadamente pela voz de Jorge Lopes de Sousa2, sufragou que “[n]a verdade, para além de a execução fiscal não poder prosseguir contra o responsável subsidiário antes de findar o processo de falência ou insolvência, este prosseguimento é apenas uma hipótese, pois a dívida exequenda pode vir a ser paga no processo de falência ou insolvência, e os termos do prosseguimento dependem do que for decidido neste processo, pelo que é razoável a solução legal de impor a sustação dos processos de oposição, obstando a que sejam apreciadas questões relativas à responsabilidade subsidiária sem a utilidade prática que deve estar subjacente à actividade jurisdicional”.
A questão suscitada nos presentes autos prendia-se precisamente com uma execução intentada pela Fazenda Pública contra o devedor subsidiário, após a declaração e encerramento da insolvência do devedor originário, sendo que o devedor subsidiário invocou a prescrição nos termos do art. 48.º da LGT e alegou que não se aplicava às obrigações tributárias a suspensão do prazo da prescrição constante do art. 100.º do CIRE, por manifesta inconstitucionalidade orgânica, contendendo com o disposto no n.º 2 do art. 103 e alínea i) do n.º 1 do art. 165.º da CRP.
O recorrente interpôs recurso de constitucionalidade do acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Administrativo a 14 de Maio de 20143, que julgou improcedente o recurso, seguindo a sua jurisprudência anterior4, ou seja, que a sentença de declaração de insolvência determinava a suspensão de todos os prazos de prescrição e de caducidade oponíveis pelo devedor, nos termos do art. 100.º do CIRE, incluindo os prazos que corram no âmbito do processo tributário.

II. Na senda da jurisprudência e doutrina maioritária, o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, proferido a 14 de Maio de 2014, tinha os seguintes fundamentos:

  1. O artigo 100.º do CIRE complementa as causas de suspensão previstas na LGT e deriva de um princípio geral acolhido no n.º 1 do art. 321.º do Código Civil (doravante CC);

  2. As exigências constitucionais previstas no n.º 2 do art. 103.º e na alinea i) do n.º 1 do art. 165.º da CRP em termos de competência legislativa foram cumpridas, porquanto:

    1. O CIRE foi aprovado pelo Decreto-Lei n.º 53/2004 de 18 de Março, no uso da autorização legislativa concedida pela Lei n.º 39/2003 de 22 de Agosto, como tal trata-se de um decreto-lei credenciado por uma lei de autorização da Assembleia da Republica, o que significa que está legitimado a intervir em matéria reservada àquela;

    2. As normas que regulam o regime da prescrição tributária, segundo a jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo e a doutrina, inserem-se nas garantias dos contribuintes, pelo que se incluem na reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da Republica5;

    3. A Lei de Autorização n.º 39/2003 de 22 de Agosto dispõe no n.º 2 do art. 1.º que “o Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas regulará um processo de execução universal que terá como finalidade a liquidação do património de devedores insolventes e a repartição do produtor obtido pelos credores ou a satisfação destes pela forma prevista num plano de insolvência que, nomeadamente, se baseie na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente”;

    4. O art. 100.º do CIRE tem um conteúdo genérico, porque aplicável a todos os credores, com vista a possibilitar que todos possam ser pagos pelo produto da massa insolvente, em condições de igualdade e proporcionalidade, através da avocação dos respetivos processos ao do processo de insolvência;

    5. O legislador reconhece a incerteza quanto à possibilidade de satisfação dos direitos de todos os credores, por eventual insuficiência da massa insolvente, pelo que, não seria legítimo que corresse contra os mesmos o prazo de prescrição, o que deriva do princípio geral acolhido no n.º 1 do art. 321.º do CC;

    6. A solução do art. 100.º do CIRE encontra justificação num princípio geral, o previsto no art. 321.º do CC, sem pretender introduzir uma nova causa de suspensão da prescrição das dívidas tributárias e por em causa o regime da prescrição consagrado nos artigos 48.º e 49.º da LGT.

Os argumentos utilizados pelo Supremo Tribunal Administrativo provinham claramente de uma visão fiscalista, com o único fito de garantir o pagamento do Estado, que não atentava nos propósitos do processo de insolvência, que apenas visa regular as relações existentes entre o devedor originário ou insolvente e os credores daquele.
Mais, recorre-se da Lei de Autorização legislativa ao Governo apenas e tão só para tentar arranjar uma justificação para que o artigo 100.º se aplique, sem mais, às obrigações tributárias, nomeadamente, de um devedor subsidiário, que nada tem a ver com o processo de insolvência do devedor originário.
Além disso, é de salientar que a reserva de lei fiscal não se compadece com autorizações legislativas generalistas, atentos os efeitos que a mesma poderá ter.

III. O Tribunal Constitucional desconstruiu os fundamentos invocados pelo Supremo Tribunal Administrativo, considerando que o mesmo se desviou da questão central em discussão no processo.
Na verdade, o Supremo Tribunal Administrativo entendeu que o disposto no artigo 100.º do CIRE é uma emanação do princípio geral consagrado no art. 321.º do CC, o que, no entendimento daquele tribunal, justifica a não pertença da disciplina normativa ora impugnada ao campo das garantias dos contribuintes, por não constituir uma nova causa de suspensão do prazo de prescrição. Entendeu ainda o Supremo Tribunal Administrativo que o art. 100.º do CIRE não visa direta e imediatamente os créditos tributários, mas a generalidade dos créditos sobre a insolvência. Assim, a suspensão de todos os prazos de prescrição e de caducidade oponíveis pelo devedor surge como uma condição de operacionalidade do próprio regime do processo de insolvência, tal como conformado pelo legislador e manifestação do princípio da igualdade entre os credores, pois caso se entendesse que a norma em causa não seria aplicável aos créditos tributários estar-se-ia a beneficiar os demais credores, em detrimento da Fazenda Nacional.
Acontece que, como bem fez notar o Tribunal Constitucional, essa linha de argumentação não tem em conta o facto de se estar perante um contribuinte que apenas é responsável subsidiário pela dívida tributária e que não é parte do processo de insolvência do devedor originário.
Ora, a suspensão decorrente do artigo 100.º do CIRE não impede a Administração fiscal de efetivar a responsabilidade subsidiária por reversão do processo de execução fiscal, com fundamento na “fundada insuficiência dos bens penhoráveis do devedor principal” (art. 23º, n.os 1 e 2 da LGT), contra o devedor subsidiário. Isto mesmo que a execução contra este devedor subsidiário não possa prosseguir sem que se mostre excutido o património do devedor originário.
No entanto, o facto de ser projectada a reversão da dívida do devedor originário para o responsável subsidiário ainda antes da excussão do património do devedor originário permite àquele tomar consciência da clara possibilidade de vir a ser responsabilizado pelo pagamento da dívida que não for paga pelo devedor principal e de, assim, dar início à organização da sua defesa.
O art. 100.º do CIRE tem, pois, que ser interpretado de forma diferenciada, quando do mesmo decorram efeitos imediatos que afetem outros sujeitos que não o insolvente/devedor originário e os credores da insolvência, como é o caso do devedor subsidiário nos termos da legislação fiscal.


O Tribunal Constitucional situa a questão central do recurso de constitucionalidade, no facto de se estar perante um devedor subsidiário que não foi declarado insolvente, o que se afasta de toda a argumentação avançada pelo Supremo Tribunal Administrativo a propósito de a suspensão dos prazos de prescrição e de caducidade durante o decurso do processo de insolvência resultar do princípio geral contido no art. 321.º do CC e do princípio da igualdade entre os credores no próprio processo de insolvência.
Recoloca a questão, então, em saber se a disciplina imputada ao art. 100.º do CIRE pelo Supremo Tribunal Administrativo, aplicando-o aos responsáveis subsidiários pela dívida tributária, se integra ou não na matéria das garantias dos contribuintes.
O Tribunal Constitucional, socorrendo-se da jurisprudência firmada no Acórdão n.º 280/2010, entendeu que a matéria em causa, a saber, as causas de interrupção ou suspensão dos prazos de prescrição ou de caducidade, integra, efectivamente, uma garantia dos contribuintes, para os efeitos do disposto no art. 103.º, n.º 2 da Constituição. Entendeu, assim, o Tribunal Constitucional, que, “embora não traduzindo uma modificação do regime geral da prescrição, a interpretação normativa do artigo 100.º do CIRE acolhida pelo Tribunal a quo originou necessariamente, ao menos no que se refere aos responsáveis subsidiários, uma nova causa de suspensão do referido prazo, não decorrente do regime geral aplicável, nem de outra norma produzida ou autorizada pela Assembleia da República […].”

Analisada a sobredita questão, passou o Tribunal Constitucional a apreciar se o Governo se encontrava devidamente autorizado a produzir tal regulamentação legal.
Da Lei de autorização n.º 39/2003 de 22 de Agosto, nomeadamente do n.º 2 e das alíneas a), b) e h) do n.º 3 do art. 1.º, nada se retira quanto à matéria relativa às consequências decorrentes do processo especial de insolvência para o Estado, nem quanto à matéria da prescrição de dívidas fiscais.

Uma autorização legislativa não se basta com a utilização de “termos abrangentes” dos quais se possa induzir as matérias sobre as quais o Governo fica habilitado a legislar, tal como já foi anteriormente decidido pelo Tribunal Constitucional no Acórdão n.º 6/20146, em cujo texto se pode ler que “os decretos-lei autorizados que estejam em desconformidade com os termos da autorização, como é o caso em que excedem os limites da autorização e legislem sobre matéria diferente ou em sentido divergente do autorizado, incorrem em direta violação da competência legislativa da Assembleia da República e, logo, em inconstitucionalidade orgânica, total ou parcial”. Por outro lado, e como também se assinalou no referido aresto, fazendo alusão à doutrina consagrada no Acórdão n.º 168/2002, “a eventual dissonância do decreto-lei autorizado relativamente à autorização legislativa depende da aplicação das regras de interpretação jurídica, cabendo ao Tribunal Constitucional avaliar o sentido e alcance da credencial legislativa e determina se as disposições editadas pelo Governo se incluem ainda dentro da competência legislativa que foi especialmente concedida por efeito da autorização”.
Ora, como do diploma autorizativo não consta qualquer especificação quanto ao seu conteúdo, do mesmo não é extraível qualquer sentido útil, face às exigências do disposto no art. 165, n.º 2 da CRP, para efeitos de credencial parlamentar bastante para o Governo legislar sobre aquela matéria.

O Acórdão do Tribunal Constitucional foi inovador face à jurisprudência e doutrina produzida, uma vez que colocou o problema em análise sobre um diferente prisma: “o problema era o de saber se a aplicação do art. 100.º do CIRE ao cômputo da prescrição invocável pelo responsável subsidiário do contribuinte direto cuja insolvência é declarada contende com o regime da respetiva prescrição tributária e, consequentemente, com o regime das suas garantias enquanto contribuinte”. Ora, colocado o problema sobre este prisma e atendendo às opções que a Administração Tributária tem ao seu poder, nomeadamente a reversão fiscal, e, ainda, à lei de autorização legislativa concedida ao Governo, resulta claro que o artigo 100.º do CIRE, interpretado no sentido de que a declaração de insolvência suspende o prazo prescricional das dividas tributárias imputáveis ao devedor subsidiário no âmbito do processo tributário, ao ser editado pelo Governo a descoberto de credencial parlamentar e tendo em conta a matéria que regula, enferma do vicio de inconstitucionalidade orgânica.
Assim decidiu o Tribunal Constitucional: “julgar inconstitucional, por violação do artigo 165.º, n.º 1, alínea i), da Constituição, a norma do artigo 100.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, (…) interpretada no sentido de que a declaração de insolvência aí prevista suspende o prazo prescricional das dívidas tributárias imputáveis ao responsável subsidiário no âmbito do processo tributário”.


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1 Acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 18/07/2014, processo n.º 0119/14, Relator: Dulce Neto e de 05/12/2014, processo n.º 01225/12, Relator: Fernanda Maçãs, disponíveis em www.dgsi.pt.
2 JORGE LOPES DE SOUSA, Código de Procedimento e de Processo Tributário, vol. III, Áreas, Lisboa, 2011, p. 3.
3 Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 14/05/2014, processo n.º 0115/14, Relator: Ascenção Lopes, disponível em www.dgsi.pt.
4 V. supra, nt. 1.
5 Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 14/10/2009, processo n.º 0528/09, Relator: Jorge de Sousa, disponível em www.dgsi.pt, e Acórdão do Tribunal Constitucional de 05/07/2010, processo n.º 133/10, Relator: Conselheiro Carlos Fernandes Cadilha, disponível em www.tribunalconstitucional.pt.
6 Acórdão n.º 6/2014 do Tribunal Constitucional, Relator: Carlos Fernandes Cadilha, disponível em www.tribunalconstitucional.pt.