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Comentário ao Acórdão n.º 408/2015 do Tribunal Constitucional, de 23 de Setembro de 2015 (DR, I Série, N.º 201, de 14 de Outubro de 2015) – Títulos executivos: inconstitucionalidade da aplicação do artigo 703.º do novo Código de Processo Civil a documentos particulares anteriores

Ricardo Monteiro, Advogado, Abreu Advogados

1. A jurisprudência constitucional
O acórdão do Tribunal Constitucional n.º 408/2015, de 23 de Setembro de 2015, declara, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma que aplica o artigo 703.º do Código de Processo Civil – aprovado em anexo à Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho – a documentos particulares emitidos em data anterior à sua entrada em vigor, então exequíveis por força do artigo 46.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Civil de 1961. Tal interpretação resulta da conjugação do referido artigo 703.º do Código de Processo Civil e do artigo 6.º, n.º 3, da Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho.
Este aresto vem na sequência de três decisões em processos de fiscalização concreta de constitucionalidade:
- acórdão n.º 847/2014, de 3 de Dezembro de 2014;
- acórdão n.º 161/2015, de 4 de Março de 2015;
- decisão sumária n.º 130/2015, de 13 de Fevereiro de 2015.
No seguimento das citadas três decisões, o Ministério Público – ao abrigo das competências que lhe são atribuídas – requereu a apreciação e declaração, com força obrigatória geral, da norma resultante dos artigos 703.º do Código de Processo Civil e 6.º, n.º 3, da Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho, «na interpretação de que aquele artigo 703.º se aplica a documentos particulares emitidos em data anterior à da entrada em vigor do novo Código de Processo Civil e então exequíveis por força do artigo 46.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Civil de 1961».

2. Evolução legislativa
Na legislação anterior, eram títulos executivos – além dos demais – os documentos particulares, assinados pelo devedor, que importassem a constituição ou o reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante fosse determinado ou determinável por simples cálculo aritmético de acordo com as cláusulas dele constantes, ou de obrigação de entrega de coisa ou de prestação de facto (artigo 46.º, n.º 1, alínea c) do anterior Código de Processo Civil, na última versão). A única excepção era relativa aos escritos particulares com assinatura a rogo (prevista nos artigos 154.º a 157.º do Código do Notariado), cuja exequibilidade dependia do reconhecimento da assinatura por notário, ou por outras entidades e profissionais com competência para tal (artigo 51.º do Código de Processo Civil anterior). Daí que a doutrina considerasse ser o nosso ordenamento jurídico dos mais generosos, a nível europeu, na atribuição da qualidade de título executivo aos documentos particulares não legalizados que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias (neste sentido, Armindo Ribeiro Mendes, “O processo executivo no futuro Código de Processo Civil”, Revista da Ordem dos Advogados, Ano 73, n.º 1, 2013, p. 102).
Para obstar ao aumento do número de execuções, o actual Código de Processo Civil reduz o elenco dos títulos executivos. Neste sentido, estabelece o artigo 703.º, n.º 1, alínea b) do diploma agora vigente que à execução apenas podem servir de base – entre outros – os documentos exarados ou autenticados, por notário ou por outras entidades ou profissionais com competência para tal, que importem a constituição ou o reconhecimento de qualquer obrigação.
Os fundamentos invocados pelo legislador foram o aumento das execuções e o aumento do risco de execuções consideradas injustas, que muitas vezes se iniciavam pela penhora de bens e só depois permitiam o contraditório, através de oposições à execução ou à penhora.
O artigo 6.º, n.º 3, da Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho, estabelece que o disposto no Código de Processo Civil relativamente a títulos executivos, às formas de processo executivo, ao requerimento executivo e à tramitação da fase introdutória só se aplica às execuções iniciadas após a sua entrada em vigor, ou seja, 1 de Setembro de 2013.
Como refere o acórdão em análise, a questão de constitucionalidade que integra o objecto do processo surge, assim, da sucessão no tempo de leis processuais, resultando da conjugação do novo Código de Processo Civil com o regime transitório vertido no artigo 6.º, n.º 3 da lei que o aprovou. Do confronto dos dois regimes e da aplicabilidade do artigo 703.º do Código de Processo Civil vigente a todas as execuções iniciadas após a sua entrada em vigor, conclui-se que é retirada força executiva a documentos particulares que anteriormente a detinham, se ainda não accionados. É esta afectação, a nível processual, da posição creditória, ocasionada pela alteração legislativa, que configura a questão da constitucionalidade.
Assim, continua o aresto, o problema não se prende com a solução material contida no artigo 703.º do Código de Processo Civil vigente (ou seja, com o novo elenco de títulos executivos, a sua maior ou menor extensão ou a integração ou não de determinado documento), porque essa é matéria que está no âmbito da liberdade do legislador. Não há então um problema de confronto entre direitos de privados – o credor e o devedor.
Também não está em causa a aplicação retroactiva de leis restritivas de direitos, liberdades e garantias, proibida pelo artigo 18.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa (CRP), já que a norma apenas se aplica aos processos iniciados após a entrada em vigor do novo Código de Processo Civil.
O que releva é o princípio da protecção da confiança, ínsito no princípio do Estado de Direito democrático, que se encontra consagrado no artigo 2.º da CRP. Como refere o acórdão, a mudança legislativa operada pela norma em análise não afecta os efeitos jurídicos produzidos sob o domínio do direito anterior, na medida em que não é retirado carácter executivo a títulos que já tenham produzido a sua eficácia executiva; mas afecta situações passadas, recusando o reconhecimento da força executiva a documentos particulares que antes a tinham, desta forma desvalorizando a posição do credor de modo com que este não podia contar.

3. O princípio da protecção da confiança
A jurisprudência constitucional sedimentou os critérios de que depende a tutela da confiança legítima dos cidadãos. O acórdão refere-os. Antes de mais, três requisitos cumulativos: que o legislador tenha encetado comportamentos capazes de gerar nos cidadãos expectativas de continuidade; que estas expectativas sejam legítimas, justificadas e fundadas em boas razões; e que as pessoas tenham feito planos de vida tendo em conta a perspectiva de continuidade do comportamento do Estado. Caso estes requisitos se verifiquem, torna-se necessário ponderar entre interesses contrapostos, de acordo com o princípio da proporcionalidade em sentido estrito: por um lado, a confiança (legítima) dos particulares na continuidade do quadro normativo vigente; por outro lado, as razões de interesse público que motivaram a alteração legislativa.
No caso em apreço, o Tribunal Constitucional refere que, ao longo das últimas décadas, se tem assistido a sucessivas iniciativas legislativas de alargamento do rol de títulos executivos: desde o Decreto-Lei n.º 533/77, de 30 de Dezembro, que subtraiu a exigência de reconhecimento notarial de assinatura do devedor nos títulos cambiários (letras, livranças e cheques) quando o montante da dívida constante do título fosse inferior à alçada da Relação; passando pelo Decreto-Lei n.º 242/85, de 9 de Julho, que estendeu tal eliminação a todos os títulos de crédito, independentemente do seu valor; até à reforma do Código de Processo Civil de 1995/96, que consagrou a exequibilidade de documentos comprovativos de um leque muito alargado de obrigações, com dispensa generalizada de reconhecimento notarial da assinatura do devedor. Ora, os credores tomaram decisões com base neste quadro legislativo, sendo provável que tivessem diligenciado pela autenticação dos documentos se tal fosse, à data da sua assinatura, requisito de exequibilidade. Assim, resume o Tribunal Constitucional, ao suprimir a ligação que antes se estabelecia entre o valor probatório dos documentos particulares e a exequibilidade extrínseca da pretensão neles materializada, a norma sob escrutínio introduziu uma modificação que era imprevisível, já que os credores desses títulos depositaram uma confiança legítima na sua exequibilidade – criada e alimentada pelo legislador –, representando o novo regime uma imprevisível opção defraudadora dessa confiança, que a evolução legislativa não fazia razoavelmente prever.
Deve realçar-se que o acórdão não censura a actual opção legislativa, tendo em conta os interesses em causa. O que importa, em termos de protecção da confiança, é a produção de efeitos da lei nova relativamente a documentos que eram título executivo e que, de um dia para o outro, deixaram de o ser. Como reconhece o acórdão, o credor não perde acesso à execução por força alteração legislativa nem fica impedido da defesa e exercício do seu direito, pois tem alternativas processuais (maxime, acção declarativa e injunção). Mas a injunção nem sempre é legalmente admitida, sendo certo que a simplicidade e celeridade do procedimento estão nas mãos do devedor, já que a oposição implica a distribuição como acção declarativa.
Já a exigência de recurso prévio à acção declarativa propriamente dita – e a experiência demonstra-o – pode dificultar ao credor (ou até impossibilitar) a efectivação do seu direito, já que, sem a garantia da penhora, a “volatilidade” dos bens do devedor propicia estratégias que poderão deixar a execução sem objecto.

4. A decisão do Tribunal Constitucional
Julgou o Tribunal Constitucional que a intensidade do dano da confiança infligido pela aplicação imediata da lei nova não se mede apenas pela maior morosidade na satisfação do crédito, mas também pelo risco acrescido de perda de eficácia da acção executiva, pelo que o regime transitório constante da lei que aprovou o Código de Processo Civil gera uma lesão particularmente intensa da confiança legítima dos particulares.
Em suma, o interesse público subjacente regime do Código de Processo Civil actualmente vigente não demonstra ter um contrapeso suficientemente intenso face à medida da afectação da confiança legítima dos credores, afectando excessivamente as suas expectativas – que se mostram legítimas e fundadas em boas razões –, ofendendo assim o princípio constitucional da protecção da confiança dos cidadãos, ínsito no princípio do Estado de Direito consagrado no artigo 2.º da CRP.

5. Os votos de vencido
O acórdão do Tribunal Constitucional teve        quatro votos de vencido, dois deles com declaração.
O Conselheiro Cura Mariano votou vencido por entender que se está perante uma norma transitória sectorial, sendo que, regra geral, a aplicação no tempo das normas processuais é imediata e que a alteração não pode ser olhada como uma surpresa totalmente inesperada. Refere ainda que esta alteração não tem consequências substantivas, reflectindo-se apenas no modo como o direito invocado pode ser judicialmente exercido, sem que a necessidade de instauração de processo declarativo faça perigar o exercício efectivo daquele direito, já que podem ser utilizados procedimentos cautelares. Do lado contrário estão prementes interesses públicos, designadamente o combate ao risco das “execuções injustas” e a diminuição do número das acções executivas que entorpeciam o regular funcionamento do sistema judicial, que deveriam prevalecer.
A Conselheira Ana Guerra Martins, secundada pelos Conselheiros Pedro Machete e Vaz Ventura, entende que a norma em causa não configura uma ofensa ao princípio da confiança decorrente do artigo 2.º da CRP, pelo que não é inconstitucional. É referido que esta opção legislativa é relativamente recente, que nunca se tratou de uma solução consensual e que não corresponde ao que habitualmente se passa em ordenamentos jurídicos similares ou no próprio Direito Europeu (dando como exemplo a Convenção de Bruxelas, que apenas menciona as escrituras públicas, quando trata da exequibilidade de títulos extrajudiciais).