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Comentário ao Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/2016, de 18 de Fevereiro de 2016 (Processo n.º 1786/10.0PBGMR-A.G1-A.S1; DR, 1.ª Série, n.º 56, de 21 de Março de 2016): Uniformização de jurisprudência – Cumprimento da pena de multa de substituição em dias de trabalho (direito e processo penal) ["Em caso de condenação em pena de multa de substituição, nos termos do artigo 43.º, n.º 1, do CP, pode o condenado, após o trânsito em julgado daquela decisão, requerer, ao abrigo do disposto no artigo 48.º, do CP, o seu cumprimento em dias de trabalho, observados os requisitos dos arts. 489.º e 490.º do CPP."]

André Lamas Leite, Doutor em Direito, Professor da FDUP, Consultor, Abreu Advogados

I) Enquadramento. Noção de «pena de substituição»

1. Não é demais lembrar que as consequências jurídicas do crime são tidas, amiúde, como uma espécie de «parente pobre» da ciência do Direito Penal, não apenas no nosso país, mas em outros Estados que partilham de idêntico substracto jurídico-cultural (1). Nas palavras de Nuvolone (2), «um facto simplesmente acessório, apesar de ser um dos pilares do sistema». E isto não obstante os esforços de vários autores que, como Bonneville de Marsangy (3), sempre consideraram esta disciplina da dogmática criminal, no contexto da «ciência conjunta do Direito Penal», como fundamental para a «verdadeira utilidade social».
Se bem virmos, por certo em uma «unidade funcional» (adaptando a expressão de Zipf, usada em outro contexto), onde por vezes se não deslinda onde começa uma e acaba a outra, a Rechtsfolg cumpre todas estas funções, sem excepção. Não apenas se exige um conhecimento científico delas - e cada vez mais apurado, fruto dos desafios que a globalização (4) coloca crescentemente ao nosso ramo de Direito -, o qual é essencial para uma aplicação respeitadora de parâmetros constitucionais como a proporcionalidade e a igualdade, com a plena juridificação da determinação da pena - até cerca do séc. XIX considerada como uma «arte do julgador», uma tarefa que se achava excluída da racionalidade jurídica e, por isso, da sua controlabilidade por via recursória -, como se mostra essencial o estudo das consequências jurídicas da pena ou das medidas de segurança para qualquer operador judiciário.
Com razão afirma Fletcher (5) (e que aqui adaptamos) que, comparado o sistema do common law com o do civil law, o papel da pena é de maior centralidade no primeiro. Desde logo, toda e qualquer teoria sobre a legitimidade, legitimação, função ou funções e finalidade ou finalidades do nosso ramo de Direito começa sempre pelo entendimento do que seja a pena criminal, na medida em que ela é o centro gravitacional de qualquer dessas magnas questões. Qualquer filosofia penal começa pela filosofia sancionatória e não do sistema dogmático qua tale, em que parece entender a ciência penal alemã, sobretudo, que o essencial se resolve. Donde, sendo diferente o ponto de partida, não é de estranhar que as consequências jurídicas do facto ilícito venham ganhando, no espaço anglo-saxónico, um relevo maior do que na Europa continental, bastando apontar os estudos de Hart, Rawls, Feinberg ou Morris.
O que vem de dizer-se não é contrariado pelo facto de, também na Alemanha, autores existirem que reflectem esta importância do «pensamento do problema» sobre o do «sistema» (6), como se dirá de seguida. Na verdade, Androulakis (7) salienta a importância de uma concepção em que a pena assuma um primado sobre o conceito de delito. Depois de verificar os enormes desencontros em termos da dogmática - em que não há sequer unanimidade quanto à definição do conceito de crime (8) -, o autor sugere que uma boa forma de melhor compreendermos o nosso ramo de Direito passa pela análise da noção de «pena». Chega mesmo a propor uma formulação: «é um sofrimento previsto na lei, ou seja, um tratamento estigmatizante e constrangedor, imposto a um dado sujeito pelo Estado, como expressão da sua especial desaprovação pela violação de uma determinada norma imposta contra um comportamento, para que seja percepcionado como tal» (9). O segmento «expressão de especial desaprovação» é, para Androulakis, o cerne da noção proposta - aquilo que designa por «função expressiva da pena» (expressive Funktion der Strafe), uma verdadeira atitude de raiva e de indignação dirigida aos agentes dos delitos, numa palavra, a institucionalização de tais emoções (10). Sendo exacto que a pena não é o único meio de controlo social (muito ao invés, continuamos a insistir no seu cariz de ultima ratio), enquanto ela for o principal meio de resposta ao crime já perpetrado, não pode deixar de se reconhecer um primado do conceito de pena sobre o de crime (11).

2. As sanções em estudo foram sempre procurando - e continuarão a fazê-lo - um equilíbrio entre a gravidade do delito, do seu modo de execução e das específicas características do seu agente ou agentes documentadas na acção ou omissão penalmente relevantes, por uma banda e, por outra, com a defesa do «ponto mínimo do ordenamento jurídico», i. é, com o ponto abaixo do qual a pena já não reafirma qualquer bem jurídico lesado ou ameaçado de lesão, mas surge como um andrajoso instrumento de insegurança e incerteza jurídicas. Por rectas contas, tal como em todo o ordenamento jurídico, em todos os seus ramos, é essa a dúvida fundamental que perpassa toda e qualquer pena substitutiva.
Apesar de não se desconhecer que existem ordenamentos jurídicos em que tal ainda hoje não é claro (12), em Portugal, há largo consenso doutrinal e jurisprudencial, a que nos juntamos, no sentido de que estamos em face de verdadeiras penas, mesmo que a designação de «alternativas» (conceito diverso, como veremos) possa inculcar uma ideia de menorização das mesmas (13). Como se adiantou, a jurisprudência nacional vem, com inteira justeza, dando nota da assinalada autonomia das penas substitutivas, também por motivos processuais penais. Essencial, neste domínio, é o recente acórdão de uniformização de jurisprudência n.º 8/2013 (14), em que se explica a destrinça do regime de inadimplemento da multa como pena principal ou como pena de substituição, logo se concluindo inexistir, hoje, qualquer correspondência aritmética ou automática entre a prisão como sanção principal e a multa que a substitui, sendo antes o critério de tipo normativo. Tal entendimento apenas é possível porquanto a multa de substituição se não confunde com a multa principal.
Prova de que estamos perante verdadeiras penas retira-se do regime a que estão sujeitas. Comecemos pelo princípio da legalidade criminal; com todos os seus componentes: só se aplicam as penas de substituição previstas expressamente no texto e não outras; inexiste possibilidade de aplicação analógica; a retroactividade in mitius aplica-se de igual forma, assim como a reserva de lei formal. De igual modo, sendo penas fixadas em vez de sanções principais, só se consente a sua determinação uma vez aferida a culpa do agente, pelo que a imputação subjectiva não encontra aqui particularidades especiais. A proporcionalidade que acompanha toda a matéria sancionatória é visível na circunstância de, muitas vezes, nomeadamente para medidas concretas até um ano de prisão, o juiz dispor de várias penas substitutivas e escolher não somente aquela que melhor se adequa às finalidades punitivas, mas também aquela que se traduz em um equilíbrio mais acertado entre a gravidade do facto e do sancionamento. Bem vistas as coisas, a adequação é, como se sabe, um dos sub-princípios em que se desdobra a proporcionalidade.
Também o princípio da pessoalidade e intransmissibilidade da responsabilidade criminal é típico das penas que estudamos (15). Do mesmo passo, qualquer das imposições constitucionais do art. 30.º, não podendo, p. ex., uma pena de substituição ter uma duração indefinida, indeterminada ou deixada ao arbítrio do juiz (16). Em suma, bem pode dizer-se que, logo por imperativo lógico, falando-se de uma sanção que substitui outra, as características da primeira transmitem-se, em regra, à segunda, maxime se das penas substitutivas tivermos uma visão - como a nossa - apostada no reforço da sua efectividade, eficácia e capacidade de preenchimento real das finalidades punitivas. Quanto mais assim o forem, mais as penas em estudo cumprirão o seu desiderato, sendo percepcionadas pelo condenado e pela sociedade como verdadeiras e autónomas sanções.
Apesar do que explanámos, há alguns aspectos de regime da Lei que parecem não encarar ainda as penas substitutivas como verdadeiras sanções, mas sim como uma espécie de «beneplácito» do juiz ou do sistema (17), como um afloramento de um qualquer «direito de graça», como uma «nova oportunidade» concedida ao agente do crime porque, na verdade, este último não teve gravidade suficiente ou o mesmo se passou quanto às circunstâncias que o rodearam. Veja-se, p. ex., o art. 400.º, n.º 1, al. e), do Código de Processo Penal (CPP), resultante da redacção introduzida pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, e que impede o recurso para o STJ de decisões proferidas em recurso pelas Relações face a «penas não privativas de liberdade», como o serão as penas de substituição em sentido próprio. É para nós inconcebível que assim seja (18) e, muito mais, como se prescreve no normativo, que tal recurso esteja até vedado para prisão efectiva desde que não ultrapasse a medida concreta de cinco anos. O Tribunal Constitucional - TC - (19) veio, pelo menos, pronunciar-se pela inconstitucionalidade da interpretação ainda mais gravosa, qual seja a de a primeira instância aplicar pena de substituição e a Relação pena efectiva que, não sendo superior a cinco anos, pareceria, a uma leitura imediatista dos preceitos, impedir o recurso para o nosso mais Alto Tribunal. E isto em razão dos princípios da legalidade criminal e do asseguramento das garantias de defesa.
Ora, não se estranha, por isso, que, fruto de numerosas causas, tal entendimento se propague à comunidade e mesmo ao condenado. Esta vox populi deve-se, desde logo, ao facto de se entender a pena como um sofrimento que conduz a uma privação de liberdade, pelo que tudo o que não a importe será encarado como um realidade jurídica autónoma e menos grave. Mesmo no que tange à multa como pena principal, idêntica concepção se encontra. Na versão anterior à revisão de 2013 do CPP e do Código Penal (CP), em que o arguido era obrigado a responder com verdade sobre os seus antecedentes criminais, era mais ou menos vulgar que quem, p. ex., tivesse sido condenado a uma pena suspensa na sua execução, respondesse convictamente que «não tinha registo criminal». A centralidade da prisão, fruto de mais de dois séculos em que foi considerada como uma «pena-rainha», aponta para esta consequência. Mas não só. A sensação de que as demais penas são brandas está em linha com os pressupostos do neo-retribucionismo e que nos permitem aludir a um punitive turn (20), embora não com todo o seu esplendor no nosso país e nos ordenamentos do civil law, por regra. Acresce que, como veremos, com a reforma de 2007 do CP, o alargamento do âmbito aplicativo e a criação de novas penas substitutivas até certo ponto passou a mensagem para a comunidade de que o preocupante são as condenações em medida superior a cinco anos de prisão, já que estas não admitem qualquer substituição.
Carecemos de estudos empíricos no nosso país mas, em 2004, nos Açores, realizou-se uma investigação (21) que concluiu que a pena suspensa tende a ser dificilmente caracterizada como verdadeira sanção pelos sujeitos, ao invés da pena de prestação de trabalho a favor da comunidade (doravante, de jeito abreviado, pena de PTFC), sendo difícil aos condenados, em todas as medidas de substituição, alcançar o respectivo carácter coactivo. Mesmo quanto à pena de PTFC, mais do que qualquer valor acrescido ligado a um trabalho que beneficia a comunidade, os condenados apreenderam-na como uma forma de «pagar uma multa», salientando ainda que esta foi uma hipótese de contactar com o mercado de trabalho e de ser nele conhecido, com consequências vantajosas para quem se encontrava desempregado (22).
Relacionado com o que vem de dizer-se, sobretudo no que tange à necessidade de encarar as penas de substituição como verdadeiras sanções e não como qualquer «favor» do sistema, é essencial que elas sejam vistas como «respostas normais à comissão de um crime», como tal sendo apresentadas em vários instrumentos legislativos do Conselho da Europa. Assim, as mesmas são capazes de satisfazer as finalidades punitivas: a proporcionalidade entre a gravidade do crime e da sanção e o seu reflexo ao nível da prevenção geral, as exigências de reinserção social - permitindo-nos acrescentar que, como regra, em maior medida que a das penas principais -, com isto reforçando a responsabilidade do agente em relação à comunidade e à vítima (23).

3. Assim enquadrados, diremos, ab initio, que, apesar de a pena substitutiva ser uma pena em si mesma, ela surge na sequência lógica e judicial de uma pena principal. Donde, existe uma relação umbilical entre ambas, porquanto a primeira inexiste sem a segunda. Por certo se não trata do mesmo tipo de relacionamento que intercede entre a sanção principal e a acessória - já perfunctoriamente visto -, desde logo na medida em que esta última é aplicada ao lado da primeira, para além dela, assim reforçando os seus efeitos. Aqui, na pena de substituição, é esta mesma - e só ela - que deve ser adimplida, sem que, não obstante, a sanção principal desapareça. Ela encontra-se em estado que poderíamos qualificar de «reserva», de «quiescência», aguardando pelo modo como o condenado se comportará em face da pena de substituição.
Nos casos de incumprimento, a pena principal não renasce propriamente, pois ela nunca deixou de existir juridicamente, mas pura e simplesmente aplica-se com toda a legitimidade político-criminal e dogmática de que estava desde o início investida (24). Há, assim, um mecanismo similar ao de uma condição aposta à pena principal quando objecto de substituição: ela só produz os seus efeitos se e na medida em que a sanção substitutiva for inadimplida. Aproxima-se, pois, a pena principal, da condição suspensiva e a pena de substituição da condição resolutiva (começa desde logo a produzir efeitos, os quais cessam na hipótese de superveniência de um evento futuro e incerto - o respectivo incumprimento).
Adentrando no conceito de uma pena de substituição, cumpre agora sublinhar que o efeito de coisa julgada abarca a pena principal e a de substituição, havendo, logo na decisão, um sistema de vasos comunicantes entre ambas, pois todos os sujeitos e intervenientes processuais (e a comunidade em geral, por certo) sabem que a segunda se aplicará uma vez falhado o cumprimento da primeira. Donde, existe, como aliás já tivemos ocasião de referir em outro local (25), uma cláusula rebus sic stantibus aposta em todos os processos em que o juiz decide pela aplicação de uma pena substitutiva. Dito de outro modo: a sanção determinada em vez da principal mantém-se se tudo o mais se mantiver constante, o que, aqui, vale por dizer, se a substituição for bem-sucedida. Não o sendo, sem qualquer escolho do prisma do efeito de caso julgado, é a pena principal que se aplica, realizado que seja o juízo de que os desideratos da sanção substitutiva não foram cumpridos pelo condenado, atenta a circunstância de que - e bem - o nosso sistema não estabelece uma revogação imediata e obrigatória da pena substitutiva.
Apesar de a pena de substituição dever observar uma série de características que lhe permitam arvorar-se em satisfação das necessidades punitivas do Estado em vez da pena principal, isso não importa que ambas sejam realidades iguais. Não o são nos respectivos conteúdos, na forma como surgem na sequência de uma decisão judicial, no percurso histórico e nas preocupações político-criminais a que cada uma delas teve e tem de dar resposta. De jeito necessariamente resumido, pois esperamos que a verdadeira amplitude fique clara: o conteúdo de uma pena substitutiva, podendo embora importar a privação de liberdade (pense-se nos artigos 44.º a 46.º do CP (26)), não o faz da mesma forma que a pena de prisão, já que assegura a manutenção do máximo de laços sociais, familiares, laborais e económicos que sempre se partem em uma reclusão permanentemente executada no tempo e o seu núcleo por excelência são as cumpridas na comunidade; as penas substitutivas surgem logo determinadas na decisão judicial e são de aplicação imediata, apenas sendo revogadas aberto um incidente processual de incumprimento, ao passo que a sanção principal, também ela fixada pelo tribunal, importa que o juiz (ou juízes), quando legalmente admissível, ponderaram a sua substituição por outras penas, em regra menos gravosas para o agente, mas entenderam que elas não cumpririam as finalidades punitivas; a história das sanções em análise e a sua intencionalidade político-criminal ancoram-se nos efeitos criminógenos da pena de prisão e na luta contra as de curta duração, exactamente por se considerar que as substitutivas correspondem a um «ponto óptimo» mais conseguido face ao que, entre nós, determina o art. 40.º
Vejamos, agora, o que distingue as penas de substituição dos incidentes de execução da pena.
Em primeiro lugar, o momento no iter decisório e no processo penal em que ambas surgem. As penas substitutivas integram o momento da escolha da pena, uma vez determinada a sua medida concreta - ou, antes disso, logo ao nível do tipo, nas hipóteses de multa alternativa -, ao passo que o incidente de execução, como desde logo a designação inculca, importa que se esteja já em fase pós-sentencial, havendo necessidade de modificar algo aos exactos termos em que a sanção foi judicialmente determinada. Como incidente, trata-se de um conjunto de actos processuais com uma finalidade própria, que pode ou não ocorrer e que, não contendendo directamente com a medida concreta da pena, afecta o respectivo cumprimento.
Por outro lado, e relacionado com o que vem de dizer-se, dogmaticamente, as penas substitutivas constituem uma categoria autónoma, com uma intencionalidade político-criminal específica, ao passo que o incidente de execução não é dotado dessa mesma autonomia, desenrolando-se na dependência de uma sanção principal ou acessória. Donde, se às penas substitutivas se apontam finalidades preventivas, no incidente de execução da pena não são esses objectivos directamente chamados à colação. Do que se trata, ao menos de jeito imediato, é de resolver um problema que surge na fase pós-sentencial, determinado ou pelo inadimplemento do condenado das obrigações que a pena principal ou acessória sobre si fazia impender, ou de, à luz de finalidades preventivas - gerais e especiais, embora com maior relevo para estas últimas -, modificar o modo de cumprimento da pena, quase sempre no que diz respeito ao locus da execução e ao catálogo de obrigações que o condenado deverá adimplir.
Nas palavras de Beleza dos Santos (27), incidente de execução contende com «todas as dúvidas de carácter contencioso acerca da interpretação, aplicação ou eficácia da sentença condenatória», o que nos parece uma noção demasiado sintética e condensada para nos habilitar hoje a compreender o que está em causa.
Por certo existem também semelhanças entre as realidades em estudo. O incidente pode ocorrer tendo por base uma situação de cumprimento ou de incumprimento da pena principal ou acessória. A sanção de substituição de per se, sendo determinada em vez da principal, é fixada pelo juiz sob condição do respectivo cumprimento, sob pena de se aplicar aquela que ela substitui. No que contende com as hipóteses de adimplemento, o incidente de execução visa uma forma de cumprimento sancionatório mais favorável ao condenado, i. e., implicando um menor quantum de sofrimento, tal como, em regra, nas penas substitutivas, isso também sucede para o condenado. Nos casos de incumprimento, em sede de incidente, a consequência desfavorável é o retorno ao modelo executivo anterior, com outras eventuais desvantagens. Nas penas de substituição, o inadimplemento conduz à aplicação da pena que se visava substituir. Donde, bem se pode dizer que quando o incidente de execução ou a sanção substitutiva são determinados, a intencionalidade que lhes preside é a de um regime mais favorável em sede de prevenção especial, desde que tal não contenda com a função de asseguramento do limiar de protecção do ordenamento jurídico.
Assim, p. ex., não se duvida que a liberdade condicional seja um incidente de execução da pena de prisão, assim como as formas de liquidação da sanção pecuniária ou o incumprimento das obrigações derivadas da falta de entrega do título habilitador de condução na pena acessória do art. 69.o Em todos eles estamos já em fase pós-sentencial, havendo, em muitas delas, uma mudança de lugar de cumprimento da pena - que deixa de ser a prisão para passar a ser o domicílio do condenado ou outro local adequado, ou até mesmo a sua restituição à liberdade, embora onerada com deveres, regras de conduta e/ou regime de prova.
Existem consequências práticas na caracterização de uma dada realidade como pena de substituição ou incidente de execução. De facto, quando uma pena de substituição não é cumprida, deveria aplicar-se in totum a sanção principal, sem que houvesse qualquer tipo de desconto ou de uma circunstância favorável ao agente pelo tempo em que os ditames da pena substitutiva foram observados. Já nos casos de incidente de execução, de que é exemplo a liberdade condicional, é ainda hoje discutido se se opera ou não tal desconto, exactamente porque a pena continuou a ser cumprida, mas através de uma outra modalidade (28). Nas penas substitutivas, atento o seu regime condicional, a pena principal não está a ser cumprida no momento em que a substitutiva o está a ser. Um mês de adimplemento das injunções impostas em sede de pena suspensa que, entretanto, é revogada por incumprimento, não significa que a pena principal de prisão tenha sido já cumprida em um mês e que haja, por isso, de proceder ao respectivo desconto. Muito pelo contrário, atento o regime condicional a que está sujeita - repita-se -, a sanção substitutiva só se acha cumprida no final quando, ponto por ponto, a mesma não tenha conhecido incumprimentos ou, pelo menos, inadimplementos que o juiz entenda que possam comprometer os desideratos que animaram a sua determinação. Donde, em apertada síntese, para além do momento do trânsito em julgado, indagar sobre se a pena principal está ou não a ser cumprida de uma outra forma e se esse período de tempo equivale, por isso, a tempo efectivo de cumprimento, é, nas situações de maior dúvida, o critério operativo que julgamos essencial para distinguir a pena substitutiva do incidente executivo.
Se o critério distintivo fosse o que vem de propor-se, prima facie, então, para sermos congruentes, não deveria existir, de iure condendo, qualquer desconto quando apenas uma parte da pena de substituição fosse cumprida. Nem se diga, p. ex., que em hipóteses como a da pena de PTFC, como se verá a seguir, o envolvimento do condenado é mais forte que nas demais, o que justificaria um tratamento mais favorável. Por um lado, em abstracto, a afirmação não é exacta, porquanto casos existem (pena suspensa com regime de prova, todas as penas de substituição detentivas) em que outras sanções substitutivas podem ser tão ou mais gravosas para quem a cumpre.
As diferenças práticas esbatem-se cada vez mais entre os incidentes de execução da pena e a sanção substitutiva, ao ponto de julgarmos poder afirmar que a diferença central entre ambos é, para além de o incidente ser pós-sentencial, a existência prévia ou não da determinação judicial de uma sanção que se prevê seja cumprida totalmente através de uma outra pena (de substituição), ao passo que nos incidentes de execução a pena (principal ou acessória) não é substituída (29). Mais tarde, por via de norma legal, de um incumprimento ou de outro motivo, tem de se abrir uma tramitação com uma intencionalidade própria, mas que decorre no âmbito da pena principal ou acessória e na sua estrita dependência.

II) Efectividade, certeza e credibilidade das penas de substituição

1. Porventura um dos desafios mais prementes que se colocam à matéria de que curamos contende com a manutenção das penas substitutivas como sendo percepcionadas pelos operadores judiciários, pelos agentes de crimes, pelas vítimas e pela comunidade no seu conjunto como verdadeiras penas e não como «simulacros». Isso mesmo é assumido pelo legislador na exposição que acompanhou a Revisão de 1995 do CP, em que se verificava que a prática judiciária de 1982 até aí apontava para um uso da pena suspensa em domínios onde seria preferível lançar mão da multa, «gerando-se a ideia de uma «quase absolvição», ou de impunidade do delinquente primário, com descrédito para a justiça penal» (30). Na verdade, a umbilical relação delas à ressocialização reclama, como bem refere, entre outros, Dolcini, que as sanções em estudo sejam dotadas de um grau de efectividade que se aproxime, normativamente, daquele que se atribui às penas principais (31).
É nossa convicção que as penas substitutivas só cumprirão em absoluto o seu papel se e na medida em que forem percepcionadas pelo agente e pela comunidade como verdadeiras sanções e que, embora em termos normativos (e não naturalísticos) se assemelhem às penas principais. Ora, tal importa que as mesmas sejam eficazes e fiáveis, ou seja, que não sejam um arremedo de pena, um modo encapotado de descriminalização ou de despenalização. De outro modo, elas arriscam-se a ser um simulacro de penas e, com isso, um instrumento de net-widening. Ora, este é um risco muito considerável, como vem sido apontado pela doutrina alemã. A coberto de uma maior influência da análise económica do Direito, os fenómenos de diversão e, em outra direcção, também as penas de substituição podem transforma-se em «uma capitulação dos esforços de uma descriminalização de Direito substantivo» (32).
Elas não se traduzem - ou não devem traduzir-se - em uma lassidão do sistema criminal, mas sim em uma opção racional entre alternativas que, normativamente, desempenham as mesmas funções e que, assim sendo, cumprem de modo similar as finalidades da intervenção penal. Nas palavras de von Hirsch, as sanções de que tratamos «devem ser de forma a poderem ser auto-suportadas por uma pessoa com uma coragem razoável» (33). Daí o sublinhado que temos dado à efectividade, certeza e eficácia das medidas substitutivas. Por outras palavras, não é seguro que elas conduzam a menos Direito Penal, mas sim a um diferente modo de intervenção criminal. É este o desafio central em toda a matéria.
O ideal seria uma efectividade na proporcionalidade, seja a dita «efectividade instrumental» (efeito de protecção), seja a «efectividade simbólica» (a qual apela e tenta um efeito de coesão) ou a «efectividade pedagógica» (efeito de aprendizagem) (34). Apesar de não resultar expressamente do elemento literal, cremos que é para aí que apontam instrumentos de soft law (35).
Esta preocupação com a efectividade das penas substitutiva, que assumimos como um Leitmotiv, tem conhecido eco relevante na jurisprudência que, de modo diríamos unânime, tem negado provimento a recursos em que uma reacção de substituição incumprida se deseja, depois, substituir uma vez mais, furtando-se o agente à pena principal (36).

2. À luz destes que, para nós, são critérios-rectores em todas as penas substitutivas, vejamos um pouco mais de perto o regime da multa a que se refere o art. 43.º, n.ºs 1 e 2.
O primeiro não estabelece um critério directo quanto à correspondência entre o número de dias de prisão como pena principal e o número de dias de multa (37), o que tem suscitado algum debate doutrinal e jurisprudencial quanto a saber se o critério deverá ser automático (1 dia de prisão, 1 dia de multa) ou normativo. Sobre a questão, que aqui somente releva para ilustrar a importância do juízo autónomo também sobre a multa de substituição, já se debruçou o acórdão de uniformização de jurisprudência n.º 8/2013 (38), em termos que merecem a nossa concordância.
A orientação tirada foi no sentido de que «a pena de multa que resulte, nos termos dos atuais artigos 43.º, n.º 1, e 47.º, da substituição da pena de prisão aplicada em medida não superior a um ano, deve ser fixada de acordo com os critérios estabelecidos no n.º 1 ao artigo 71.º e não, necessariamente, por tempo igual ou proporcional ao estabelecido para a prisão substituída» (39). Ora, o dado saliente é o de que, ao remeter o juiz para um critério normativo, em que o número de dias de multa pode ser superior ou inferior ao de dias de privação de liberdade, tal como o mesmo art. 43.º, n.º 1 remete para o art. 47.º, tal significa que, por seu turno, ordenando este último a aplicação dos «critérios estabelecidos no n.º 1 do artigo 71.º», quanto à primeira fase de determinação da sanção pecuniária, há uma remissão directa para a «culpa do agente e [as] exigências de prevenção».
Anote-se, de seguida, que, mesmo em face da redacção do art. 43.º, para medidas concretas da pena até um ano, somos de parecer que inexiste uma preferência legislativa (40) no sentido da aplicação da multa de substituição em face das demais sanções não detentivas que ao caso cabem (pena de PTFC, pena suspensa, pena do art. 43.º, n.º 3, se conexionados os crimes com a pena de substituição, art. 44.º, n.º 1). Poder-se-ia argumentar, pelo contrário, que esta preferência pela reacção pecuniária se justificaria por via do facto de a pena de multa ter sido vista, durante muito tempo, praticamente como a única substituição à pena privativa de liberdade. Mais ainda, as suas vantagens em termos de evitar a perda dos laços sociais do condenado, a que acrescem vantagens pecuniárias para o Estado (seria farisaico omiti-las), terão contribuído para esta opção. Todavia, não está demonstrado, do prisma político-criminal ou por intermédio de estudos criminológicos, que a pena de multa importe mais benefícios quando comparada com outras sanções substitutivas. E isto quer em termos de diminuição da taxa de reincidência - factor de medida do sucesso directamente relacionado com o outcome da medida -, quer de um prisma teorético em sede de vantagens mais pronunciadas da pena pecuniária. V. g., os benefícios societais decorrentes da prestação de trabalho podem, ao invés, suplantar aqueles que derivam de uma simples limitação do património do condenado que, comparado com a pena de PTFC, não importa o quantum de maior esforço pessoal daquele sobre quem impende a pena e que, por isso, de modo mais fundado, se espera que a sinta como mais directa e imediatamente conexionada com o facto criminoso e com a personalidade demonstrada na comissão. Uma última nota neste ponto: o legislador partiu da diferença de limitação de direitos fundamentais em cada uma das penas substitutivas, do seu conteúdo, portanto, e, a partir daí, desenhou o recorte de regime de cada uma delas. Sucede, todavia, que se não pode, em abstracto, afirmar que um desses conteúdos é mais gravoso que outro, tudo dependendo de um conjunto de factores atinentes ao agente e ao facto. Assim sendo, não admira que seja difícil ao legislador, como vimos, decidir sobre se o cumprimento parcial de uma pena substitutiva deve ou não ser objecto de desconto, existindo regimes bastante diversos, como sublinhado, e, em alguns aspectos, injustos. Assim, regras de conduta e/ou deveres no âmbito de uma pena suspensa podem afectar esses direitos fundamentais em medida não despicienda e, mesmo assim, não são descontados na pena principal se incumpridos in totum, ao invés do que sucede, p. ex., com a pena de PTFC. Dir-se-á, nesta última, que o input favorável desde logo do prisma da percepção comunitária conduziu a um tratamento privilegiado. Limitação de direitos do condenado, efeito preventivo-geral e especial, são esses os elementos a ter em conta na concreta modelação das reacções substitutivas e que, visto nem sempre correrem em idêntico sentido, explicam a existência de irritações intra-sistemáticas, tantas vezes de difícil explicação, impossibilitando, por outro lado, a construção de uma verdadeira «teoria geral das penas de substituição». Parte-se do específico conteúdo para a formulação de regras de regime, admitindo a maleabilidade das medidas em estudo. Não se trata de algo necessariamente negativo, porquanto confere ao juiz um amplo espaço de latitude no momento da escolha da pena, melhor a adequando ao disposto no art. 40.º, sendo, ainda, o reconhecimento da existência de vasos comunicantes entre as singulares penas, o que bem se compreende depois da digressão histórica que fizemos e da análise dos seus pressupostos político-criminais.
O que vem de dizer-se não significa que, na questão essencialmente jurisprudencial de saber se existe ou não uma hierarquia entre as penas substitutivas, nos pronunciemos em sentido afirmativo. Muito ao invés, sob pena de criarmos um falso dever jurídico sem adesão à realidade e, paradoxalmente, sem consequências jurídicas, é para nós exacto que se não pode defender a existência de uma verdadeira hierarquia legal das penas substitutivas (41). A plasticidade das construções normativas em que elas se precipitam ficaria a perder no que tange à maleabilidade da sua aplicação judicativa se se patrocinasse um tal espartilho. Por outras palavras, embora se possa dizer que, como regra, as penas de substituição detentivas são mais gravosas para o condenado que as não detentivas, em relação a todas as outras possíveis comparações, surge-nos como quase impossível, em abstracto, estabelecer uma graduação. Por um lado, o Tatbestand de cada uma das sanções não permite dizer, p. ex., que a multa é mais grave que a pena de PTFC, desde logo porque mesmo analisando-a em perspectiva económica, aquilo que representa um prejuízo para o condenado pode bem ditar uma inversa ordem (42). Por outro lado, elaborando agora um juízo in concreto, mantendo-nos no mesmo exemplo, uma pena de multa em valor elevado pode ser mais grave do que uma prestação laboral ou do que uma suspensão do exercício de uma função que ao caso eventualmente coubesse. A impossibilidade de apreender um mais grave conteúdo de sofrimento para o agente do crime, em abstracto, leva-nos, por fim, como argumento suplementar, a patrocinar a posição que nega a existência de uma hierarquia (legal) entre as diferentes penas substitutivas.

3. Na multa de substituição, portanto, sendo possível o pagamento fraccionado, tal como na multa principal (veja-se a remissão do art. 43.º, n.º 1 para todo o art. 47.º), o problema do desconto também se coloca. Comece por dizer-se que, a uma primeira abordagem, poder-se-ia ter por incompreensível esta opção de admitir ainda a liquidação em prestações da multa de substituição. Na verdade, tratar-se-ia de uma faculdade injustificada que o legislador concederia a um condenado a quem já foi substituída a prisão por multa. Em nada se contribuiria para que o instituto sobre que debruçamos a nossa investigação fosse dotado das características de efectividade (43), eficácia e exigência, tributos únicos a uma confiança comunitária nas sanções substitutivas. Ora, imaginando que o condenado a um ano de prisão vê a mesma substituída por multa de igual duração (como se sabe, o art. 43.º, n.º 1 não dispõe de um critério expresso, sendo esta a correspondência que a doutrina e a jurisprudência têm vindo a defender), cujo pagamento é autorizado em prestações (imagine-se que a multa é de 365 dias à taxa diária de 10 € - 3650 € -, a pagar em 10 prestações mensais sucessivas de 365 €), sendo liquidadas somente duas delas, como se opera o cálculo da sanção principal a cumprir? Na medida em que cada prestação, neste exemplo, corresponde a 36,5 dias de prisão, o pagamento de duas corresponde a 73 dias, pelo que faltam cumprir 292 dias de prisão contínua como pena principal. Na circunstância de o condenado beneficiar da suspensão da execução da prisão subsidiária (art. 49.º, n.º 3) e inadimplir as injunções de cariz não económico que lhe forem opostas, renasce a pena principal na sua integralidade (art. 49.º, n.º 3, 2.ª parte). Bem se compreende que assim seja, visto que estamos já em face de uma derradeira oportunidade concedida para o cumprimento da multa substitutiva por via de acções ou omissões que não importam prestações de conteúdo económico. Assim sendo, o eventual inadimplemento que persista em nada poderia ser imputado a uma deficiente situação económica do condenado, mas somente à falta de vontade nesse mesmo cumprimento. O que já não pode suceder com a multa de substituição é a ocorrência de um pagamento parcial a todo o tempo (o art. 43.º, n.º 2, in fine somente remete para o n.º 3 do art. 49.º e já não para o n.º 2). Donde, por impossibilidade legal absoluta, não se levanta, em tais hipóteses qualquer funcionamento do desconto.
Apesar do esforço argumentativo, não nos convence esta linha de raciocínio. Na verdade, estamos perante uma pena de substituição que, pela sua própria natureza, só se pode aplicar a sanções de prisão. Ora, bastará imaginar um caso em que o tipo legal só preveja pena privativa de liberdade para concluirmos pelo bem fundado da opção legislativa. Se assim não fosse, correr-se-ia o risco de, ab initio, se afastar do âmbito aplicativo das penas em estudo as hipóteses fácticas concretas em que o agente, não tendo capacidade económica para liquidar a multa de substituição uno acto, a poderia fazer de modo fraccionado. Não admitir a faculdade legal atribuída pelo nosso legislador seria penalizar desproporcionadamente aqueles que, condenados em prisão, simplesmente não poderiam beneficiar de uma pena de substituição, pela circunstância de não terem os mais expeditos meios económico-financeiros, o que levantaria sérias dúvidas de constitucionalidade. É evidente que a questão se complica para os casos de tipos que prevêem multa alternativa, mas aí a situação já contende com o problema de saber se fará sentido distinguir esse momento «inicial» de um outro em que se opere a «escolha da pena» e em que, segundo a doutrina mais difundida, se deve admitir uma primeira escolha da pena de prisão e, depois, de multa de substituição. Trata-se de solução da qual discordamos frontalmente, como à frente se verá.

III) A linha argumentativa do acórdão
       
       O iter cognoscitivo-hermenêutico seguido pela ilustre Conselheira relatora reveste-se, como é seu timbre, de uma completa linha argumentativa que, sendo bem-fundada, não merece, todavia, a nossa concordância. Tal deve-se, no essencial, aos aspectos até aqui enunciados sobre a noção de uma pena de substituição, alicerçado no imperativo de esta sanção dever cumprir as mesmas finalidades da pena principal. Se assim não for, como visto, é a implosão da confiança comunitária na validade e efectividade da pena substitutiva que está em causa, o que, sendo habitualmente o seu «calcanhar de Aquiles» é, por isso mesmo, o aspecto que, em nosso juízo mais se deve acautelar.
Começa o aresto por traçar um quadro evolutivo histórico em que demonstra que, até à Revisão de 1995 do CP, era clara a letra e o espírito da Lei no sentido de se admitir que, independentemente da natureza da pena ser principal ou substitutiva, comportava sempre a possibilidade de o condenado, querendo-o, requerer ao Tribunal que, ao invés do seu pagamento, pudesse liquidá-la por via de trabalho. Num assinalável dever de honestidade intelectual, a colenda relatora também não deixa de sublinhar, em tal percurso histórico, que o actual art. 49.º, nos seus n.ºs 1 e 2, não indica, expressis verbis, tal faculdade, o que entende ter-se tratado de algo praticamente desnecessário, em face da tradição jurídico-criminal neste particular.
A partir desta verificação, de um prisma de justiça material, diríamos, entende-se que nada impede o condenado de, nos prazos e nas condições a que aludem os artigos 489.º e 490.º do CPP, requerer o cumprimento da multa de substituição por trabalho. Com razão se diz que a norma do art. 48.º não é uma verdadeira pena substitutiva, mas somente uma forma de cumprimento da multa, com independência da natureza dogmática que a mesma assuma.
Mais, esgrime-se o argumento que do prisma especial-preventivo, tal requerimento é demonstrativo da vontade ressocializadora proposta e nunca imposta do condenado, o que deve merecer o acolhimento da Lei, mesmo que a sua letra não o diga de um modo transparente. Por outro lado, chama-se a atenção para o instrumento do art. 49.º, n.º 3, aplicável à multa substitutiva, como espécie de «lugar paralelo» no sentido de que o legislador não foi indiferente às concretas situações económico-financeiras em que o condenado se encontra, parecendo (ao menos no que compreendemos) parificar-se essas mesmas preocupações com a questão que no aresto uniformizador se colocava. Donde, tratar-se-ia de uma oportunidade para que a «sanção de constrangimento» se mantivesse como de ultima ratio, seja nos casos de pena principal, seja de substituição. Este último é um argumento particularmente apontado na fundamentação jurídica do acórdão, julgando-se que assim se dá um melhor cumprimento ao programa político-criminal gizado.
Não se desconhece, como é óbvio, a diversa natureza dogmática assumida pela multa nas suas duas vestes, mas entende-se que a mesma está ao serviço da justiça que melhor se alcança por via da solução que mereceu acolhimento por parte da esmagadora maioria dos Senhores Conselheiros do STJ, sobretudo com o argumento (se bem lemos) de que o texto legal, se não impõe, também não proíbe que a multa substitutiva seja cumprida de uma diversa forma, ao dispor do condenado, qual seja a aludida no art. 48.º, posto que o mesmo o requeira no prazo de 15 dias contados da notificação para pagamento e que o juiz entenda que esta é uma forma adequada e suficiente de cumprir as finalidades da própria pena de substituição, as quais são, reflexamente, as da pena principal. Note-se, pois, que o acórdão sob anotação não propende para uma hermenêutica que seria por certo incorrecta, de uma automaticidade entre o requerido e a prestação laboral, exigindo-se sempre a intermediação de um juízo do magistrado judicial, o qual é, natura rerum, prognóstico.
       
IV) Razões da discordância

1. É conhecido que uma hermenêutica de pendor historicista-subjectivista está há muito tempo arredada daquela que deve merecer do intérprete maiores favores. Cremos ter sido esta a prevalecente na fundamentação do aresto. Ao invés, o pendor deve ser objectivista-actualista, reconstruindo, a partir do möglisches Wortsinn, a solução em termos do elemento teleológico. Outras não são as linhas com que o Código Civil comanda a interpretação de qualquer norma do complexo jurídico (cf. art. 9.º). Donde, o assinalado «sentido possível das palavras» é uma garantia irredutível de observância do princípio da legalidade criminal (art. 29.º da CRP, e art. 1.º), a que todos devemos obediência, sob pena de implosão do valor da segurança e certeza aplicativas do Direito que, como sempre, podem encontrar antinomias com o valor da Justiça.
No entanto, no caso vertente, nem sequer vislumbramos qualquer violação de considerações de justiça material, mas sim o cumprimento escrupuloso de um programa político-criminal que deve estar cada vez mais apostado na valorização das penas em estudo como verdadeiras e autónomas sanções. Daqui resulta que a divergência dogmática de uma multa principal deve ter repercussões no seu regime de cumprimento, quando comparado com a multa substitutiva.
Assinale-se, por outro lado, como também se faz na fundamentação de que discreteamos, que a sanção constante do art. 48.º não é uma verdadeira pena de substituição, desde logo na medida em que a pena principal fixada na decisão é de multa e não é, logo aí, ordenado o seu cumprimento por intermédio da prestação de trabalho. Não se nega que o n.º 2 do artigo, ao remeter para disposições dos artigos 58.º e 59.º (44), consagra a pena de PTFC como uma espécie de «direito subsidiário», mas tal justifica-se porque, materialmente, em ambas as hipóteses, existe uma prestação gratuita de trabalho. Todavia, aqui, como Figueiredo Dias desde sempre defendeu, estamos em face de uma «sanção de constrangimento», destinada a que o condenado liquide a multa e que a prisão subsidiária seja, de facto, uma ultima ratio (45). Veja-se, por outra banda, que o art. 48.º, ao lado do pagamento diferido ou fraccionado, da nomeação de bens à penhora, para além do óbvio pagamento total ou parcial, é somente uma forma de adimplir a multa principal. Donde, há um leque de escolhas ao dispor do condenado que não sucede em uma verdadeira pena substitutiva. Nesta última, além do mais, reforçando o critério distintivo a que chegámos, é o juiz que, na decisão, determina que a pena principal está em condições de se cumprir por intermédio de uma outra, aplicada em vez dela, realidade diversa da do art. 48.º Por fim, tinha sido indicado, em face da redacção originária do CP de 1982 mas, entretanto modificada, (46) que a possibilidade de o juiz escolher entidades privadas como beneficiárias da pena de PTFC é um sinal distintivo desta pena de substituição quanto à que se acha prevista no art. 48.º, uma vez que aí não se faz esta referência. Daqui se retira que a sanção de dias de trabalho daquele último normativo é ainda uma sanção destinada a cumprir interesses ligados fundamentalmente ao Estado e não tanto à comunidade no seu conjunto, uma vez que ela surge na sequência de uma pena de multa que vê o seu quantitativo reverter para o Estado. Já na pena de PTFC, como há sobretudo interesses da comunidade em causa, admite-se que as entidades privadas de interesse societário sejam beneficiárias dessa prestação de trabalho. Donde, em conclusão quanto a este ponto (47), não se negando embora a existência de aproximações em sede do fundamento político-criminal, a natureza dogmática é diferente entre o art. 48.º e a pena de PTFC
Ora, é precisamente este relevante aspecto que o acórdão sob anotação não reconhece. Para além de inexistir, nos n.ºs 1 e 2, do art. 43.º, norma legal habilitante, não podemos concordar com o argumento de que «a execução da pena da multa de substituição pode ocorrer por duas formas: por pagamento voluntário (…) ou por prestação de dias de trabalho, nos termos previstos nos artigos 48.º do CP e 490.º do CPP» (48). A referência ao art. 15.º do Decreto-Lei n.º 375/97, de 24 de Dezembro, não tem, neste contexto, qualquer sentido, porquanto o que o artigo diz é que, nas condições do art. 48.º, as regras previstas naquele diploma são também aplicáveis, o que bem se entende, mesmo sendo institutos de natureza dogmática distinta, atenta a circunstância de ele e o art. 58.º envolverem ambos uma prestação gratuita de trabalho. O que já não refere o inciso - nem poderia, sob pena de contradição com o já assinalado regime do art. 43.º, n.ºs 1 e 2 - é que à multa de substituição se aplica a possibilidade de o respectivo cumprimento ocorrer por via de prestação laboral (49).
Por outro lado, o presente aresto vai ao arrepio do que temos por uma boa linha jurisprudencial em matéria da aplicação da pena substitutiva de multa. Assim, veja-se a propósito de matéria controvertida sobre a qual incidiu já acórdão de uniformização de jurisprudência no sentido de não admitir a aplicação do art. 49.º, n.º 2 às hipóteses da pena de multa de substituição (50).
As especificidades da multa de substituição quando comparada com a sua congénere pena principal não se ficam por aqui. Não somente não pode a multa de substituição ser paga a todo o tempo, total ou parcialmente, uma vez prolatado o despacho que verifique o incumprimento e mande aplicar a pena principal (o art. 43.º não remete para o art. 49.º, n.º 2), como também não comporta — no que é o busílis da questão sob estudo — a substituição por trabalho, lançando mão do art. 58.º ou do art. 48.º Na verdade, tal consistiria, na prática, como agora vem sufragado pelo STJ, em admitir uma substituição de uma substituição, o que só deporia negativamente quanto à efectividade que se deseja para a matéria (51). O mesmo se diga para as hipóteses em que a multa de substituição é paga em prestações ou de modo diferido e uma das prestações deixa de ser paga (com o vencimento das demais, i. e., ocorrendo perda do benefício do prazo, como sucede no Direito Civil) ou não é paga no prazo fixado — não cabe recurso a qualquer modo de trabalho comunitário (52).
Acresce que a uniformização jurisprudencial a que ora se chegou abre a porta para que o condenado acabe por, na prática, ser ele a escolher, em grande medida, que pena substitutiva quer cumprir: a multa ou a pena de PTFC. Entendamo-nos: vimos já que o art. 48.º não consagra uma lídima sanção de substituição, mas houve também ocasião para demonstrar que, por via da remissão desse inciso para boa parte do regime dos artigos 58.º e 59.º, o seu conteúdo prático assemelha-se em muito. Donde, a mensagem que a decisão da qual se discorda passa ao condenado e à comunidade acaba por ser a de um desrespeito pelo juízo de substituição elaborado pelo magistrado judicial. Não se esqueça que, no campo formal aplicativo do art. 43.º, n.º 1, cabe o do art. 58.º, n.º 1 (sendo este último até mais extenso). Donde, se o juiz se decidiu por aplicar a multa, implicitamente resulta dessa decisão que arredou as demais penas substitutivas que estavam ao seu dispor, de entre as quais a pena de PTFC. Ora, por certo se não negando que mesmo a tese ora patrocinada não comporta uma aplicação automática a pedido do condenado, acaba por, em rectas contas, admitir algo que o legislador não pretendeu, ou seja, que o juízo prognóstico substitutivo elaborado para aquele caso individual e concreto possa ser de algum modo ultrapassado pelo condenado. Se quisermos, por outras palavras, sem prejuízo de, como houve ocasião de referir, as penas de substituição se regerem por uma cláusula de rebus sic stantibus, de natureza suspensiva, até um seu adimplemento em toda a linha, a decisão judicial que de entre um leque de penas aplicáveis elege a multa, forma uma espécie de «caso julgado formal» em relação às demais, o que é desrespeitado pela tese aqui patrocinada.
Não se diga ainda ter-se tratado de um qualquer «esquecimento» e muito menos lacuna de lei. Foi clara intentio legis consagrar um distinto regime de cumprimento e de incumprimento dos dois tipos de multas, aliás em linha com a sua diversa natureza jurídico-dogmática. Se a multa substitutiva não é paga pelas vias que a Lei expressamente abre (pagamento no todo ou em parte, fraccionado, diferido ou, em fase posterior, suspendendo-se a pena principal de prisão mediante as injunções de cariz não económico do art. 49.º, n.º 3), é da própria natureza da pena substitutiva que se aplique a principal. Aliás, o art. 49.º, n.ºs 1 e 2 não podia ser mais eloquente nesse sentido. E percebe-se esta diferença de regime: estamos já em face de uma pena (de multa) que se cumpre no lugar (em vez) de outra (privativa de liberdade), pelo que se não liquidada por via das formas assinaladas, estar a admitir uma outra que não encontra na literalidade dos preceitos o mínimo de correspondência, ainda que imperfeitamente expressa, é fazer implodir o próprio modo relacional entre as duas sanções - principal e de substituição. Sem que motivos de justiça concreta se divisem: o condenado já mereceu um juízo de prognose favorável de que não se justiçaria o contacto deletério com o meio prisional. O que já não é razoável é admitir que ele acabe por lançar mão de um mecanismo como o do art. 48.º que está pensado apenas e tão-só para a multa principal, onde se fala com propriedade na «sanção de constrangimento». No domínio das substitutivas, é toda uma outra ordem de considerações que está em causa - entendeu-se que, como regra, com menor restrição de direitos fundamentais do arguido, se alcançariam os desideratos punitivos do art. 40.º, pelo que toda a matéria em estudo acaba por ser uma vera concretização do princípio a que alude o art. 18.º da CRP, nas suas celebradas três dimensões de suficiência, adequação e proporcionalidade stricto sensu. Donde, cabe ao legislador democraticamente legitimado indicar as concretas formas de adimplemento da multa substitutiva, tendo-se operado uma acertada concordância prática entre a abertura dessa multa a todos os condenados, independentemente da sua situação económico-financeira — e daí o pagamento prestacional, diferido ou a suspensão do art. 49.º, n.º 3 — e a efectividade e certeza daquela que é uma verdadeira pena. Não deixa de ser paradoxal, na argumentação contrária e que fez vencimento, que se afirme isto mesmo e que depois se ligue, em nosso modo de ver, sem arrimo literal, os dois regimes de cumprimento e incumprimento das duas (variegadas) formas de pena pecuniária.
Vejamos agora o problema do prisma do instituto do desconto. Comece por dizer-se que, a uma primeira abordagem, poder-se-ia ter por incompreensível esta opção de admitir ainda a liquidação em prestações da multa de substituição. Na verdade, tratar-se-ia de uma faculdade injustificada que o legislador concederia a um condenado a quem já foi substituída a prisão por multa. Em nada se contribuiria para que o instituto sobre que debruçamos a nossa investigação fosse dotado das características de efectividade (53), eficácia e exigência, tributos únicos a uma confiança comunitária nas sanções substitutivas. Ora, imaginando que o condenado a um ano de prisão vê a mesma substituída por multa de igual duração (como se sabe, o art. 43.º, n.º 1 não dispõe de um critério expresso, sendo esta a correspondência que a doutrina e a jurisprudência têm vindo a defender), cujo pagamento é autorizado em prestações (imagine-se que a multa é de 365 dias à taxa diária de 10 € - 3650 € -, a pagar em 10 prestações mensais sucessivas de 365 €), sendo liquidadas somente duas delas, como se opera o cálculo da sanção principal a cumprir? Na medida em que cada prestação, neste exemplo, corresponde a 36,5 dias de prisão, o pagamento de duas corresponde a 73 dias, pelo que faltam cumprir 292 dias de prisão contínua como pena principal. Na circunstância de o condenado beneficiar da suspensão da execução da prisão subsidiária (art. 49.º, n.º 3) e inadimplir as injunções de cariz não económico que lhe forem opostas, renasce a pena principal na sua integralidade (art. 49.º, n.º 3, 2.ª parte). Bem se compreende que assim seja, visto que estamos já em face de uma derradeira oportunidade concedida para o cumprimento da multa substitutiva por via de acções ou omissões que não importam prestações de conteúdo económico. Assim sendo, o eventual inadimplemento que persista em nada poderia ser imputado a uma deficiente situação económica do condenado, mas somente à falta de vontade nesse mesmo cumprimento. O que já não pode suceder com a multa de substituição é a ocorrência de um pagamento parcial a todo o tempo (o art. 43.º, n.º 2, in fine somente remete para o n.º 3 do art. 49.º e já não para o n.º 2). Donde, por impossibilidade legal absoluta, não se levanta, em tais hipóteses qualquer funcionamento do desconto.
Apesar do esforço argumentativo, não nos convence esta linha de raciocínio. Na verdade, estamos perante uma pena de substituição que, pela sua própria natureza, só se pode aplicar a sanções de prisão. Ora, bastará imaginar um caso em que o tipo legal só preveja pena privativa de liberdade para concluirmos pelo bem fundado da opção legislativa. Se assim não fosse, correr-se-ia o risco de, ab initio, se afastar do âmbito aplicativo das penas em estudo as hipóteses fácticas concretas em que o agente, não tendo capacidade económica para liquidar a multa de substituição uno acto, a poderia fazer de modo fraccionado. Não admitir a faculdade legal atribuída pelo nosso legislador seria penalizar desproporcionadamente aqueles que, condenados em prisão, simplesmente não poderiam beneficiar de uma pena de substituição, pela circunstância de não terem os mais expeditos meios económico-financeiros, o que levantaria sérias dúvidas de constitucionalidade. É evidente que a questão se complica para os casos de tipos que prevêem multa alternativa, mas aí a situação já contende com o problema de saber se fará sentido distinguir esse momento «inicial» de um outro em que se opere a «escolha da pena» e em que, segundo a doutrina mais difundida, se deve admitir uma primeira escolha da pena de prisão e, depois, de multa de substituição. Trata-se de solução da qual discordamos frontalmente.

2. Em súmula: temos por correcto o entendimento de que uma pena de prisão substituída por multa, quando não liquidada, importa o cumprimento da totalidade da sanção privativa de liberdade, sem que seja possível a prestação de trabalho (54). Não apenas o art. 43.º depõe neste sentido, como se estaria a admitir uma substituição da substituição, que faria inapelavelmente ressentirem-se as exigências de certeza e efectividade que defendemos para a matéria em estudo (55). Sobre o mesmo tópico, com interesse, veja-se ainda o ac. do TRP (56), onde se ressalta a autonomia doutrinal e sistemática da multa de substituição por relação à multa como pena principal.
Este aresto é ainda importante pelo voto de vencido lavrado por Pedro Vaz Patto, que se pronuncia no sentido de que devia aplicar-se o vertido no art. 49.º, n.º 2 ao art. 43.º por razões de coerência do sistema, de respeito pelo princípio político-criminal de luta contra as penas curtas de prisão e pela circunstância de que se preferem as reacções não detentiva às detentivas. Permitimo-nos discordar desta posição, desde logo porque não achamos que o legislador não tenha feito uma referência expressa ao art. 49.º, n.º 2 por lhe ter parecido que tal seria redundante em face das preocupações político-criminais do sistema. Trata-se da presunção de um sentido que, sendo exacto que é orientado do prisma político-criminal de jeito correcto, esquece que também se deve presumir que o legislador se soube exprimir nos termos mais acertados. Por outro lado - e sobretudo -, não se pode esquecer a assinalada diferença dogmática entre as duas penas de multa e que o incumprimento pelo agente importa o falhanço do juízo de prognose, o que deve determinar o adimplemento da sanção inicial fixada, sob pena de a efectividade das penas de substituição ficar comprometida. Na mesma linha de orientação, embora em matéria não coincidente, mas também eivado de preocupações de garantia da confiança comunitária nas penas de substituição, cf. o ac. do TRP (57): «II — Não é possível substituir a pena de prisão por trabalho a favor da comunidade, depois de revogada a suspensão da execução da pena de prisão.». Ainda, o ac. do TRG (58), com razão afirmando que, em caso de revogação da pena suspensa sujeita ao dever do art. 51.º, n.º 1, al. a), mesmo que a indemnização neste último prevista seja paga, nem por isso deixa de se aplicar a pena principal.
Em uma palavra, embora com fundamentação não coincidente in totum, é nossa convicção que a razão - recorrendo a uma hermenêutica teleologicamente fundada e fundante, respeitadora das decisões do legislador e da diversa natureza e configuração jurídico-dogmática das duas modalidades de pena pecuniária - assistia aos ilustres três Conselheiros que votaram vencidos.



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(1)Verifica-o, entre nós, p. ex., João Luís de Moraes Rocha, «Da brandura de costumes à execução das penas», in: Ousar Integrar, 8, 4 (2011), p. 109, bem como Nuno Caiado/Teresa Lopes, «Inovar a execução das penas — a associação da vigilância electrónica a novas formas de prisão domiciliária e de execução da liberdade condicional», in: Revista Portuguesa de Ciência Criminal (RPCC), 20, 4 (2010), p. 596. Carlos Prat Westerlindh, Las consecuencias jurídicas del delito (análisis de la doctrina del Tribunal Constitucional), Madrid: Dykinson, 2003, p. 68, fala na consequência do crime como «a grande esquecida por parte do (…) legislador». E lembra bem que esta região normativa só pode ser correctamente estudada quando apresentada em relação com as demais áreas do Direito Penal (ibidem, p. 74) e, acrescentamos nós, com o Direito Processual Criminal. Na Alemanha, também sucede algo de similar, concentrando-se o legislador, sobretudo, na reforma da Parte Especial do Código Penal (cf. Winfried Hassemer, «Características e crises do moderno Direito Penal», in: Revista Síntese de Direito Penal e Processual Penal, 18 (2003), p. 149). De modo claro e concordante, estranhando a falta de estudos da doutrina sobre a matéria, Wolfgang Frisch, «Dogmática jurídico-penal afortunada y dogmática jurídico-penal sin consecuencias», in: Albin Eser et al. (coords.), La ciencia del Derecho Penal ante el nuevo milenio, Valencia: Tirant lo Banch, 2004, p. 200. No México, de jeito claro, Luis de la Barreda Solórzano, «Punibilidad, punición y pena de los sustitutivos penales», in: Javier Piña y Palacios (coord.), Memoria del Primer Congreso Mexicano de Derecho Penal (1981), México: Universidad Nacional Autónoma de México, 1982, pp. 63-64.

(2) «Un congrès italien de Droit Pénal sur les peines et mesures alternatives à l’époque actuelle», in: Cahiers de Défense Sociale (1977), p. 49.

(3) De la récidive, ou des moyens les plus efficaces pour constater, rechercher et réprimer les rechutes dans toute infraction à la loi pénale, t. I, Paris: Librairie de Jurisprudence de Cotillon, 1844, p. iv.

(4) As definições são multímodas. Pelo seu cariz impressivo, a do filósofo da educação francês Dany-Robert Dufour, Le délire occidental et ses effets actuels dans la vie quotidienne: travail, loisir, amour, Paris: Éditions Les Liens qui Libèrent, 2014, p. 13 merece referência: «o controlo regulado do mundo pela hiperclasse, anteriormente designada por hiperburguesia financeira, transfronteiriça e pós-moderna, hedonista e inculta, baseada na predação rápida e sistemática», com razão aludindo ao fim da vita contemplativa e a uma passagem de «um mundo encantatório a um mundo operatório» (ibidem, pp. 14-17).

(5) George P. Fletcher, «La dogmática jurídico-penal alemana vista desde fuera», in: Albin Eser et al. (coords.), La ciencia del Derecho Penal ante el nuevo milenio, Valencia: Tirant lo Banch, 2004, pp. 265-271.

(6) Vejam-se os conceitos em Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal. PG, 2.ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, 2007, pp. 28-33.

(7) Nikolaos K. Androulakis, «Über den Primat der Strafe», in: ZStW, 108, 2 (1996), pp. 300-332.

(8) A não ser verificar que o crime é tudo aquilo que o legislador, na sua discrição (Gutdünken), proclame como tal (Nikolaos K. Androulakis, «Über den Primat…», p. 300).

(9) Nikolaos K. Androulakis, «Über den Primat…», p. 303.

(10) Nikolaos K. Androulakis, «Über den Primat…», pp. 309-310.

(11) De modo muito claro, Nikolaos K. Androulakis, «Über den Primat…», p. 332.

(12) A começar pelo alemão. Assim, a título meramente exemplificativo, como informam Reinhart Maurach/Karl Heinz Gössel/Heinz Zipf et al., Strafrecht. AT, Teilband 2, 8. Auflage, Heidelberg, C.F. Müller, 2014, § 65, Rn 12, p. 862, a maioria da jurisprudência e da doutrina daquele país têm das sanções em estudo a concepção de se tratar de uma «modificação da execução da pena» (eine Modifikation der Strafvollstreckung), embora existam alguns autores que vêem no correspondente à nossa pena suspensa uma especial Strafart; Bruns, v. g., entende esta última como uma dritte Gröβe, ao lado das penas e das medidas de segurança. Os autores propendem, de idêntico modo, para considerar a pena suspensa como «uma modificação da pena privativa de liberdade», do prisma dogmático, embora, a partir de uma visão político-criminal, se trate de um reacção própria e autónoma, a qual permite ao condenado uma «ressocialização ambulante» (In kriminalpolitischer Hinsicht ist die Strafaussetzung eine eigenständige Reaktionsweise, die man als “ambulante Resozialisierung" umschreiben könnte.) - cf. ibidem, § 65, Rn 13, p. 863. No Relatório do Anteprojecto de CP de Angola, escreve-se que a pena suspensa é uma «medida de diversão» (p. 18)

(13) Para além dos Manuais de referência, veja-se Pedro Vaz Patto, Critérios de escolha de pena não privativa da liberdade, em alternativa e em substituição da pena de prisão - algumas questões, à luz dos fins das penas, comunicação apresentada no CEJ em 17/5/2013, disponível em http://www.cej.mj.pt, acedido em 12/6/2013, a que pertence esta interessante reflexão: «[d]essa forma [por via de uma maior imaginação judicial em sede do tema em estudo, que também advogamos] se evita aquele dilema com que muitas vezes é confrontado quem tem de escolher uma pena em situações de fronteira: há um profundo abismo entre uma pena de prisão efectiva, demasiado severa, e uma pena de prisão suspensa na sua execução, demasiado benévola.». O que vai dito em texto é sugerido por Dominique Raimbourg, Répression: d’une culture de l’enfermement à une culture du controle, 2013, disponível em http://www.jean-jaures.org/Publications/Les-notes/Repression-d-une-culture-de-l-enfermement-a-une-culture-du-controle, acedido em 20/7/2013. A autora refere mesmo que a prisão continua a ser, em França, de momento, a única sanção de referência e que é entendida enquanto tal pela comunidade, salientando que, para a direita, ela é «o alfa e o ómega da resposta à delinquência». Ademais, as prisões estão a ser geridas em regime de parcerias público-privadas, com um custo de € 32.000 anuais por cada recluso.
Ao que vai dito em texto não obsta que, p. ex. em Itália, a pena suspensa seja considerada como uma «causa de extinção da punibilidade» — assim, Francesco Antolisei (colaboração de Luigi Conti), Manuale di Diritto Penale. Parte Generale, 15.ª ed., Milano: Giuffrè, 2000, p. 781. No Direito alemão, estas dúvidas ainda se não acham de todo eliminadas, pois autores existem que consideram o correspondente à nossa pena de suspensão executiva como «modificação da execução da pena» ou como «forma de execução de carácter autónomo» (vejam-se as referências em Jescheck/Weigend, Lehrbuch des Strafrechts. AT, 5. Auflage, Berlin: Duncker & Humblot, 1996, p. 834, n. 3). E mesmo estes últimos autores (ibidem, p. 834) — para nós de modo inconcebível em face do Strafgesetzbuch (StGB – Código Penal alemão), dado dúvidas inexistirem de que se trata de uma pena de substituição e não «autónoma» (que sempre importaria falar-se em «pena principal») - entendem a pena suspensa como uma «sanção penal autónoma» (stellt die Aussetzung eine strafrechtliche Sanktion eigener Art dar).

(14) Proc. n.º 75/05.6TACPV-A.S1, DR, I série, de 19/4/2013, Santos Carvalho. Já antes, escrevendo em uma época em que a Lei era expressa na correspondência aritmética, criticando-a com toda a justeza e propendendo para uma correspondência «normativa», cf. Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal português. As consequências jurídicas do crime, reimp., Coimbra: Coimbra Editora, 2005, pp. 366-367.

(15) Não deixa de ser curioso, em perspectiva histórica, que, aquando da discussão na Constituinte, o então deputado do Partido Comunista Português (PCP), Vital Moreira, tenha proposto algo de diametralmente oposto: «[a]s penas privativas da liberdade são susceptíveis de transmissão», o que, se já na altura não vingou, hoje nos parece uma vetusta excentricidade histórica. Também à época, o então deputado do Partido Socialista (PS), Oliveira e Silva, afirmava que as penas de multa conferiam um verdadeiro crédito a favor do Estado, cuja exequibilidade deveria seguir, assim, as regras do Direito Civil, admitindo-se, pois, a transmissão por dívidas. É evidente que esta última concepção vai também ao arrepio da sanção pecuniária como uma verdadeira pena criminal e, por isso, não pode merecer a mínima aceitação. Vejam-se estes dados em Victor Silva Lopes, Constituição da República Portuguesa de 1976 (anotada), Lisboa: Editus, 1976, p. 61.

(16) Dando expressamente este exemplo, Damião da Cunha, «Anotação ao art. 30.º da CRP», in: Jorge Miranda/Rui Medeiros, Constituição Portuguesa anotada, t. I, Coimbra: Coimbra Editora, 2005, p. 334.

(17) O mesmo sucede em França, p. ex., tal como se lê no documento «Avis sur les “alternatives à la détention"», da Commission Nationale Consultative des Droits de l’Homme, adoptado em 14/12/2006, disponível em http://www.cncdh.fr/sites/default/files/06.12.14_alternatives_a_la_detention.pdf, acedido em 15/4/2012.
Desde há muito a doutrina norte-americana tem chamado a atenção para este aspecto. Entre vários, sublinhando a pouca «simpatia» da opinião pública quanto às penas de substituição, por serem tidas como pouco severas, cf. Ronald P. Corbett, Jr./Ellsworth A. L. Fersch, «Home as prison: the use of house arrest», in: Federal Probation, 49 (1985), p. 15. Já Cesare Beccaria, Dos delitos e das penas, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1998, p. 161, apesar de considerar que uma legislação progressivamente mais conforme aos postulados iluministas faria com que o «direito de graça» fosse cada vez menos necessário, era claro ao defender que esta é uma competência exclusiva do legislador e que, de modo algum, pode ser transferida para a esfera de actuação do julgador. Na explicação de António Manuel Hespanha, «Da “iustitia" à “disciplina". Textos, poder e política penal no Antigo Regime», in: António Hespanha (coord.), Justiça e litigiosidade. História e prospectiva, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1993, pp. 316-318, a graça era um hábil instrumento nas mãos do monarca que, de um passo, demonstrava a sua severidade na aplicação do Direito Criminal e, por outro, a sua misericórdia, tal como um pai que castiga e ama, assim incutindo nos seus súbditos o hábito da obediência, do respeito e do medo. Pode bem dizer-se que essas medidas de clemência eram um instrumento político com intencionalidade própria e bem definida.

(18) Dizemo-lo do prisma da opção político-criminal, pois se não ignora que a Constituição apenas garante um grau de recurso. Por isso é que, em face do Direito constituído, o TC proferiu, no seu ac. n.º 353/2010, de 6/10/2010, Proc. n.º 30/2010, Maria Lúcia Amaral, a seguinte decisão: «[n]ão julgar inconstitucional a norma constante da alínea e) do n.º 1 do artigo 400.º do Código de Processo Penal, na interpretação segundo a qual a pena suspensa não é uma pena privativa de liberdade.». Parece-nos evidente que a suspensão executiva não é, pela sua natureza e em função da autonomia das penas de substituição que vimos defendendo, de facto, uma sanção detentiva. Defender o contrário seria patrocinar uma visão «compósita» das reacções em estudo, em que só por via da junção da pena principal com a substitutiva esta última se compreenderia e atingiria todo o seu rendimento dogmático. O que, sem prejuízo das relações entre ambas intercedentes, não é assim, manifestamente.

(19) Ac. n.º 324/2013, Proc. n.º 87/12 (Maria João Antunes), publicado no DR, 2.ª série, n.º 145, de 30/7/2013.

(20) Sobre o tema, veja-se o nosso «"Nova penologia", punitive turn e Direito Criminal: quo vadimus? Pelos caminhos da incerteza pós-moderna», in: Manuel da Costa Andrade et al. (coords.), Direito Penal: fundamentos dogmáticos e político-criminais. Homenagem ao Prof. Peter Hünerfeld, Coimbra: Coimbra Editora, 2013, pp. 395-476.

(21) Fernando Moura, «Medidas alternativas à pena de prisão. Percepções e representações sociais de condenados sobre medidas e intervenções penais», in: Ousar Integrar — Revista de Reinserção Social e Prova, 2 (2009), pp. 19-30.

(22) Assim, não andará longe do que sucede na prática, a assumpção do preâmbulo do Decreto-Lei n.º 375/97, de 24 de Dezembro, de acordo com o qual a pena de PTFC desempenha as seguintes finalidades: «a) Reprovar o crime através de acções positivas de prestação de trabalho; b) Reparar simbolicamente a comunidade, promovendo a utilidade social do trabalho prestado; c) Facilitar a reintegração social do delinquente.».

(23) Veja-se José Cid Moliné, «La política criminal europea en materia de sanciones alternativas a la prisión y la realidad española: una brecha que debe superarse», in: Estudios Penales y Criminológicos, 30 (2010), p. 62.

(24) Daí que em sede de perdão de penas como manifestação do «direito de graça», a mesma se aplique somente nas hipóteses de incumprimento da pena substitutiva, porquanto aquela manifestação da vontade de não punir pelo Estado se dirige apenas e tão-só às sanções principais - sejam elas imediatamente aplicadas na decisão judicial ou encontrem-se elas sujeitas a uma condição, como sucede nas penas que aqui estudamos. Neste sentido, correctamente, cf. o ac. do TRL de 5/12/2002, Proc. n.º 8095/02 (Góis Pinheiro), disponível em http://www.datajuris.pt, acedido em 29/9/2013, também publicado em Colectânea de Jurisprudência (CJ), XXVII, V (2002), p. 140: «I — [o] perdão estabelecido no artigo 1.º da Lei n.º 29/99, de 12/5, incide sobre penas de prisão, efectiva e concretamente, aplicadas. II — No caso de pena de prestação de trabalho a favor da comunidade, só quando revogada, e se tornar exequível a pena de prisão aplicada, é que pode ter lugar o perdão concedido no artigo 1.º da Lei n.º 29/99.».

(25) «A suspensão da execução da pena privativa de liberdade sob pretexto da Revisão de 2007 do Código Penal», in: Manuel da Costa Andrade et al. (orgs.), Estudos em homenagem ao Prof. Doutor Jorge de Figueiredo Dias, vol. II, Coimbra: Universidade de Coimbra e Coimbra Editora, 2009, pp. 601-602 e 616. E que também se dirige no sentido de mesmo a pena substitutiva aplicada admitir que o respectivo conteúdo seja modificado por superveniência objectiva e/ou subjectiva, de modo a adequar a sanção aos interesses do condenado, como sucede, em regra, com o fio condutor que perpassa pelo art. 59.º ou, já na pena suspensa, p. ex., no art. 51.º, n.º 3 (ainda, a remissão do art. 52.º, n.º 4 para este inciso). Do mesmo passo, podem ser finalidades atinentes à própria execução que justifiquem a alterabilidade de um caso julgado fixado «nas estritas circunstâncias da decisão», como sucede, v. g., com todo o art. 55.º

(26) Os incisos referidos sem indicação expressa do diploma de onde promanam devem entender-se por previstos no CP.

(27) «Os tribunais de execução das penas em Portugal», in: Homenagem ao Doutor José Alberto dos Reis, vol. I, sup. XV do BFD (1961), p. 292.

(28) É nosso entendimento que, exactamente por estarmos em face de um incidente executivo da pena de prisão, tal significa que se trata de uma outra forma do seu cumprimento, agora em liberdade «vigiada». Assim, o tempo que o condenado estiver em liberdade condicional sem incidentes deve ser descontado, por inteiro, na pena a cumprir, podendo, nos termos legais, se os requisitos estiverem preenchidos, voltar a conceder-se nova libertação condicional em relação a esse tempo de reclusão em falta. Aqui, ao invés, julgamos que a Lei foi longe demais e permitiu que a prevenção geral baixasse a cotas em geral insuportáveis pela comunidade, em regra não se afirmando, por isso, o «ponto mínimo de defesa do ordenamento jurídico». Donde, de iure condendo, propendemos para uma alteração legislativa no sentido de que, se ao condenado foi revogada a liberdade condicional de que vinha beneficiando, não mais este incidente deve poder ser concedido no futuro, sem prejuízo da dita «liberdade condicional obrigatória» a cinco sextos do respectivo cumprimento, a que alude o art. 61.º, n.º 4. Nestes casos, há boas razões criminológicas e político-criminais para, mesmo tendo ocorrido uma anterior revogação, ao agente não deixar de se lhe aplicar tal libertação, em especial se o sistema dispuser de halfway houses, como também defendemos no presente estudo. Também pelo que vai dito se densifica a destrinça entre «pena de substituição» e «incidente executivo», na medida que em medidas substitutivas como a pena suspensa, p. ex., o incumprimento do seu regime faz com que a pena principal se aplique in totum, ao invés do que aqui se advoga para o tempo de reclusão que falta cumprir em hipótese de revogação da liberdade condicional. Exactamente pela sua diversa natureza jurídico-dogmática, diferente intencionalidade político-criminal e momento em que, no processo criminal, os dois institutos se apresentam.
O problema central que discutimos - repita-se, o de saber se deve ou não ser descontado na pena a cumprir o tempo em que o condenado esteve, em liberdade condicional, sem qualquer incidente, numa palavra, como interpretar o art. 64.º, n.º 2, in fine - exige uma intervenção legislativa, que já peca por tardia, tendo em conta, desde logo, a circunstância de o TC já ter julgado conforme ao art. 27.º da CRP a hermenêutica contrária àquela que aqui se defende. Assim, no seu ac. n.º 181/2010, de 12/5/2010, Proc. n.º 537/2009, Carlos Pamplona de Oiveira, a maioria dos Conselheiros, lembrando que não compete àquele Tribunal estabelecer qual a melhor interpretação a dar a um certo segmento normativo, mas a decidir sobre se a que foi efectiva ratio decidendi no processo sob apreciação, é ainda ou não conforme ao möglisches Wortsinn (acrescentaríamos nós) que o texto fundamental contempla. Tendo em conta o sistema de fiscalização da constitucionalidade português, muito embora, como se assinalou, não a tenhamos como a melhor interpretação, é nosso entender que o TC não poderia ter decidido de forma diversa. O que estranhamos - isso sim - é que, até à data, se não conheça um recurso extraordinário para uniformização de jurisprudência sobre a matéria, esse, por certo, o locus e o meio processual adequado para dilucidar esta dúvida cuja manutenção traz graves desvantagens em sede de certeza e segurança jurídicas e cria hipóteses de real e injustificada desigualdade entre condenados. De facto, em função da posição que o Tribunal de Execução das Penas patrocine, tal é a diferença entre estar mais ou menos tempo privado de liberdade. Daí, sem necessidade de ulteriores justificações, a urgência da intervenção do STJ em sede de uniformização do Direito que, como se sabe, na prática, é cada vez mais dificultada, entre outros, pela criação (para nós inconstitucional) de requisitos que não constam expressis verbis da Lei, como sucede com a «mesmidade de factos», que aquele Alto Tribunal, de modo quase unânime, vem retirando do art. 437.º do CPP. Pelo exposto, não partilhamos, na específica sede jusconstitucional, mau grado concordemos com a autora no tangente à hermenêutica a dar ao art. 64.º, n.º 2, in fine, da linha argumentativa de Maria João Antunes, exarada no seu voto de vencida no já citado ac. n.º 181/2010.

(29) Não obstante, existe doutrina na Alemanha que considera o equivalente à nossa pena suspensa como «Modifikation der Freiheitsstrafvollstreckung», fundado, no essencial, em objectivos especiais-preventivos (Udo Ebert, Srafrecht AT, 3. Auflage, Heidelberg: C.F. Müller, 2001, p. 239).

(30) Idêntica preocupação à identificada em texto é apresentada no mesmo local para justificar o abandono da suspensão de execução da pena de multa principal, bem como do regime da multa cumulativa. Nem por isso o nosso legislador, como regra escrita, afastou das penas de substituição os agentes já com inscrições no registo criminal, ao invés do que sucede, p. ex., em Espanha. Aí exige-se que o agente seja primário (criticando este requisito da lei espanhola, Elena Larrauri, «Suspensión y sustitución de la pena en el nuevo Código Penal», in: Jueces Para la Democracia, 25 (1996), p. 54). A exigência tem marcadas raízes históricas. Entre tantos outros, cf. Enrico Ferri (relator), Relatório sobre o Projecto Preliminar do Código Penal italiano, livro I, Lisboa: Livraria Moraes, 1925, p. 181, o qual propendia para a instauração em Itália de um regime mais próximo da probation que da sursis franco-belga e em que a suspensão estava dependente do pagamento obrigatório de indemnização ao ofendido (ibidem, pp. 83-85)), não se considerando para o efeito as meras «faltas» e os crimes negligentes, nem aqueles que já não constassem do registo criminal, por cancelamento. Em Itália, também se não aplica a pena suspensa, v. g., se do registo criminal do arguido constar qualquer inscrição por crime punido com pena de prisão. Do mesmo modo se não pode aplicá-la mais de uma vez (Francesco Antolisei (colaboração de Luigi Conti), Manuale di Diritto Penale. Parte Generale, 15.ª ed., Milano: Giuffrè, 2000., pp. 782-784). Esta é uma interessante questão que, de entre outros, Tatjana Hörnle («Distribution of punishment: the role of a victim’s perspective», in: Buffalo Criminal Law Review, 3 (1999), p. 202) problematiza. Segundo ela, a agravação da pena em virtude da reincidência fundamenta-se na ideia de que se o agente já foi condenado com trânsito em julgado e já cumpriu pena efectiva, então serão maiores as inibições que terá de ultrapassar para voltar a delinquir. Dito de outro modo: na medida em que o delinquente já teve ao menos um contacto formal com o sistema penal, é-lhe mais exigível que actue de outro modo na altura em que decide actuar contra o Direito. Para Hörnle, esta é uma asserção que carece de prova, não convencendo a ideia de uma «maior energia criminosa» que ainda vai fazendo curso na doutrina germânica. Ao invés, segundo a autora «é mais provável que anteriores experiências com o sistema de justiça criminal diminuam as inibições do agente» (Tatjana Hörnle, «Distribution of punishment: the role of a victim’s perspective», in: BuffCLR, 3 (1999), p. 202, citando, em seu apoio, escritos de Stratenwerth, Haffke e Erhard, entre outros).

(31) Emilio Dolcini, «Rieducazione del condannato e rischi di involuzioni neoretributive: ovvero, della lungimiranza del costituente», in: Rassegna Penitenziaria e Criminologica, II-III (2005), p. 80.

(32) Heike Jung, Was ist Strafe? Ein Essay, Baden-Baden: Nomos, 2002, p. 61: «die Kapitulation im Bemühen um eine materiellrechtliche Entkriminalisierung».

(33) Andrew von Hirsch, «The ethics of community-based sanctions», in: Crime & Delinquency, 36 (1990), pp. 163-173, o que é considerado pelo United Nations Office on Drugs and Crime, Handbook of basic principles and promising practices on alternatives to imprisonment, New York: United Nations, 2007, p. 27 como um bom «ponto de partida», embora se diga também que é natural não ser tão facilmente identificável o elemento punitivo nas sanções substitutivas, também designadas por bespoke sentences.

(34) Sobre estes conceitos, Mireille Delmas-Marty, «A favor de unos principios orientadores de legislación penal», in: Anuario de Derecho Penal y de Ciencias Criminales, XLIII, III (1990), pp. 965-966.

(35) P. ex., o ponto 22 da Rec (99) 22, do Comité de Ministros do Conselho da Europa, destaca a eficácia das medidas substitutivas como essencial a que os magistrados do Ministério Público (MP) nelas confiem.

(36) Entre muitos, cf. o ac. do TRP (sobre a pena suspensa) de 28/1/2015, Proc. n.º 7/12.5PTVNG.P1 (Jorge Carreto) ou, do mesmo Tribunal, não autorizando a substituição por outra reacção da pena de multa do art. 43.º, n.º 1, liquidadas, ademais, em prestações, o ac. de 7/1/2015, Proc. n.º 166/12.7GAVLC-A.P1 (Ernesto Nascimento) – todas as referências jurisprudenciais, salvo expressa indicação do contrário, foram obtidas no sítio http://www.dgsi.pt e estavam disponíveis em Julho de 2016.

(37) O mesmo sucede na legislação penal brasileira, remetendo o legislador para aquilo que o juiz entenda como necessário e suficiente. Na prática, o sistema tem conduzido a penas pouco proporcionadas à gravidade do crime, em regra consistindo em uma «cesta básica» de alimentos, uma vez que se admite o pagamento em géneros e não só em dinheiro. Mais, tem sido usado pelo Judiciário, amiúde, contra legem, como forma de redistribuição da renda entre quem mais tem e os que mais necessidades económicas demonstram, assim se desvirtuando as finalidades punitivas. O «Projecto Modificativo do Sistema de Penas» propôs a abolição desta sanção substitutiva, preferindo apostar no correspondente à nossa pena de PTFC e à nossa prisão por dias livres (Miguel Reale Júnior, Instituições de Direito Penal. PG, 3.ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 2009, pp. 382-384). Não se detecta este sentido crítico, porém, em Luiz Regis Prado, Curso de Direito Penal brasileiro, vol. I, 8.ª ed., São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008, pp. 536-538.

(38) Proc. n.º 75/05.6TACPV-A.S1, publicado no DR, 1.ª série, n.º 77, de 19/4/2013. No mesmo sentido, de outro outros, cf. já o ac. do TRP de 10/12/2008, Proc. n.º 0845246 (Pinto Monteiro), em linha argumentativa próxima. Pela sua clareza, importa atentar na seguinte passagem: «se se fizesse a correspondência automática, deparar-nos-íamos com a seguinte situação: por um lado, a pena de multa correspondente a um ano de prisão teria de ser de 365 dias, mas, por outro lado, o tribunal não podia fixar a pena de multa de substituição naquele número de dias por a isso obstar o n.º 1 do artigo 47.º, que prevê que o limite máximo da pena de multa é de 360 dias.». Em sentido oposto, antes do aresto de fixação, cf., entre muitos, o ac. do TRG de 29/6/2009, Proc. n.º 488/06.6GAPTL.G1, Carlos Barreira.

(39) Em sentido contrário, já em face da redacção actual, Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 2.ª ed., Lisboa: Universidade Católica Editora, 2010, p. 209. Na jurisprudência, antes do acórdão uniformizador, no sentido de uma «conversão automática», entre tantos, vide o ac. do TRP de 13/1/1999, Proc. n.º 9840766, Barros Moreira e o ac. do TRG de 1/6/2009, Proc. n.º 1788/06.0GBBCL, Cruz Bucho. Ao invés, no sentido que temos por correcto, cf. o ac. do TRG de 11/6/2012, Proc. n.º 794/08.5GAFLG.G1, Fernando Chaves. Propendendo para a orientação que veio a obter vencimento no STJ e que temos por correcta, Sónia Fidalgo, «Pena de multa de substituição. Anotação ao ac. do STJ de 21/7/2009», in: RPCC, 20, 1 (2010), pp. 149-161.

(40) Apesar de nos parecer algo dubitativa, julgamos ser esta a posição de Odete Maria de Oliveira, «Penas de substituição», in: AA. VV., Jornadas de Direito Criminal: revisão do Código Penal, vol. II, Lisboa: CEJ, 1998, p. 72. O que é distinto de afirmar a substituição, como regra, da pena até ao limite estabelecido nesse inciso, o que é unanimemente consagrado pela jurisprudência. Entre uma imensidão de arestos, cf. o ac. do TRL de 24/4/2002, Proc. n.º 0015253 (Adelino Salvado).

(41) Em sentido oposto, Maria Fernanda Palma, «As alterações reformadoras da Parte Geral do Código Penal na revisão de 1995: desmantelamento, reforço e paralisia da sociedade punitiva», in: Maria Fernanda Palma/Teresa Pizarro Beleza (orgs.), Jornadas sobre a revisão do Código Penal, Lisboa: AAFDL, 1998, p. 31, com base na ideia de que existiria uma preferência legal quanto à pena de PTFC, quer em sede da multa, por via do art. 48.º, quer da prisão, que não vislumbramos. Também Maria João Antunes, Consequências jurídicas do crime, Coimbra: Coimbra Editora, 2013, p. 72 se pronuncia em idêntico sentido, mas de modo menos claro, se bem entendemos, na medida em que entende existir «uma certa “hierarquia legal das penas de substituição"», fundada na preferência pelas de natureza não detentiva (art. 43.º, n.º 1) - o que é, por certo, indiscutível - e, dentro destas, por esta ordem, pela do art. 44.º, n.º 1, al. a), 45.º e 46.º (ibidem, pp. 72-73), no que também se afigura de meridiana clareza. As principais dúvidas - e que tornam a questão problemática - contendem com a existência ou não de uma hierarquia de entre as penas de substituição a cumprir na comunidade.

(42) Ao invés, todavia, cf. o ac. do TRL de 31/1/2012, Proc. n.º 104/11.4PTCSC.L1-5, Paulo Barreto: «[s]endo a prestação de trabalho a favor da comunidade uma pena menos grave que a de multa, não faz sentido aplicar a mesma ao arguido depois de duas insuficientes penas de multa.».

(43) Do mesmo passo, só decisões como, p. ex., o ac. do TRP de 18/3/2009, Proc. n.º 0817575, Joaquim Gomes, podem restaurar essa confiança, tal era, s.m.j., a incorrecção técnico-jurídica da 1.ª instância: «[t]em de ser certa e determinada a quantia a cujo pagamento se subordina a suspensão da execução da pena. De modo nenhum pode condicionar-se a suspensão ao pagamento de montante indemnizatório a fixar pelos tribunais civis.».

(44) Apenas algumas delas, note-se, o que também por esta via depõe no sentido de que se trata de duas realidades dogmaticamente divergidas.

(45) O que importa, para além do mais, que a prisão sucedânea não altere a natureza jurídica da multa principal não liquidada. Neste sentido, é correcta a decisão do ac. do TRC de 25/3/2015, Proc. n.º 95/11.1GATBU, Luís Teixeira, disponível em http://jusjornal.wolterskluwer.pt/ e acedida em 5/5/2015, no sentido de, para efeitos de declaração de contumácia, se não considerar tal conversão como pena de prisão, à luz do disposto no art. 97.º, n.º 2, do Código de Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade. Por outro lado, é sabido que o regime legal alemão é bem mais gravoso que o português, desde logo na medida em que a conversão se opera à razão de um dia de multa principal por um dia de prisão, o que é tido - e bem - por excessivo, por grande parte da doutrina. Veja-se, p. ex., Tilmann Schott, «Abkehr von der 1:1 — Umrechnung von Geld- und Freiheitsstrafe?», in: JR, 8 (2003), pp. 315-320, advogando o cariz paradoxal da previsão de uma tão severa Ersatzfreiheitsstrafe, por um lado, e a luta contra as penas curtas de prisão em que o StGB se diz empenhado. Para um conspecto, naquele país, escrevendo em uma época em que a prisão sucedânea era relativamente elevada, cf. Thomas Weigend, «In Germany, fines often imposed in lieu of prosecution», in: Michael Tonry/Kate Hamilton (eds.) Intermediate sanctions in overcrowded times, Boston: Northeastern University Press, 1995, pp. 50-55. Algo de similar acontece na Suíça (art. 36, 1, do CP daquele país). Sobre a matéria, vide o nosso «Algumas considerações em torno do art. 49.º, n.º 3, do CP. Anotação ao acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 7/1/2015, Proc. n.º 55/13.8PDPRT-B.P1», in: Revista do Ministério Público, 142 (2015), pp. 184-186.

(46) Anabela Miranda Rodrigues, «Pena de prisão substituída por pena de prestação de trabalho a favor da comunidade», in: RPCC, 9, 4 (1999), p. 669.

(47) Na conclusão, cf. Anabela Miranda Rodrigues, «A fase de execução das penas e medidas de segurança no Direito português», separata do Boletim do Ministério da Justiça, 380 (1988), p. 44, n. 94.

(48) Maria João Antunes, Consequências jurídicas…, p. 95.

(49) Também pelo exposto se discorda de Sónia Fidalgo, «Pena de multa de substituição…», p. 159, que segue o entendimento de Maria João Antunes.

(50) Ac. n.º 12/2013, de 18/9/2013, Proc. n.º 319/06.7SMPRT.P1-A.S1, publicado no DR, I série, de 16/10/2013). No sentido correcto, já antes, inter alia, o ac. do STJ de 26/1/2011, Proc. n.º 7/11.2YFLFB, Pires da Graça, e, do mesmo Tribunal, o ac. de 2/3/2011, Proc. n.º 732/03.1PBSCR-A.S1, Maia Costa.

(51) Neste sentido, entre tantos, veja-se o ac. do TRE de 3/3/2015, Proc. n.º 263/13.1GBSLV-A.E1, Alberto Borges, ou o ac. do TRP de 15/2/2006, Proc. n.º 0516370, ngelo Morais). Porém, em sentido contrário, Odete Maria de Oliveira, «Penas de substituição», p. 81 e, na jurisprudência, o ac. do TRP de 19/6/2013, Proc. n.º 28/09.5GDVFR-A.P1, Élia São Pedro: «não se vê qualquer razão material para que as penas de multa, quer sejam aplicadas a título principal quer como penas de substituição, não tenham idêntico regime quanto ao seu cumprimento e possibilidade de substituição por dias de trabalho.» (itálicos acrescidos).

(52) Ac. do TRP de 7/1/2015, Proc. n.º 166/12.7GAVLC-A.P1, Ernesto Nascimento.

(53) Do mesmo passo, só decisões como, p. ex., o ac. do TRP de 18/3/2009, Proc. n.º 0817575, Joaquim Gomes, podem restaurar essa confiança, tal era a incorrecção técnico-jurídica da 1.ª instância: «[t]em de ser certa e determinada a quantia a cujo pagamento se subordina a suspensão da execução da pena. De modo nenhum pode condicionar-se a suspensão ao pagamento de montante indemnizatório a fixar pelos tribunais civis.».

(54) Em sentido contrário, porém, o ac. do TRL de 17/4/2013, Proc. n.º 418/09.3PASXL.L1-3, Margarida Ramos de Almeida.

(55) O mesmo se diga de uma pena suspensa que, incumprida, não pode ser substituída por outra — cf. o ac. do TRP de 28/1/2015, Proc. n.º 7/12.5PTVNG.P1, José Carreto. Neste sentido, entre uma panóplia de decisões, vide os acórdãos do TRP de 22/6/2011, Proc. n.º 1144/10.6GBAMT-A.P1, Maria Deolinda Dionísio, de 29/4/2009, Proc. n.º 117/07.0GAPFR.P1, José Carreto.

(56) De 6/6/2012, Proc. n.º 319/06.7SMPRT.P1, Eduarda Lobo.

(57) De 14/12/2005, Proc. n.º 0210108, Manuel Braz.

(58) De 14/9/2009, Proc. n.º 122/08.0GAPTB.G1, Ricardo Silva.