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Lei n.º 17/2016, de 20 de Junho – Alarga o âmbito dos beneficiários das técnicas de procriação medicamente assistida (alteração da Lei n.º 32/2006, de 26 de Julho)

Vera Santos Marques, Advogada, Abreu Advogados

1. No passado dia 20 de Junho foi publicada a Lei n.º 17/2016, que vem proceder a uma segunda alteração da Lei n.º 32/2006, de 26 de Julho, que regula a utilização de técnicas de procriação medicamente assistida (“PMA”), alteração que entrará em vigor no dia 1 de Agosto de 2016.

2. Esta lei foi aprovada, em votação final global, pelos deputados do Partido Socialista, do Bloco de Esquerda, do Partido Comunista Português, do Partido Ecologista Os Verdes e do Partido pelos Animais e pela Natureza, assim como por dezasseis deputados do Partido Social Democrata. Abstiveram-se três deputados do Partido Social Democrata. Votaram contra os demais deputados do Partido Social Democrata e o Centro Democrático Social.

3. Visou este diploma, no essencial, garantir o acesso de todas as mulheres à PMA.
O artigo 3.º desta Lei n.º 17/2016 prevê um prazo de 120 dias contados da sua publicação para o Governo proceder à respectiva regulamentação, tendo já sido nomeada a respectiva Comissão de Regulamentação, por Despacho n.º 8533-A/2016, de 30 de Junho, composta por elevadas personalidades com um reconhecido grau de diferenciação técnica e experiência na área da Saúde, Biologia Humana, Medicina da Reprodução e Genética Médica, a saber o Professor Doutor Alberto Manuel Barros da Silva, a Dra. Ana Catarina Veiga Correia, o Professor Doutor Calhaz Jorge, o Dr. Pedro Macedo de Sá e Melo e a Dra. Helena Maria Vieira de Sá Figueiredo.
Espera-se desta Comissão um contributo altamente qualificado na regulamentação de uma matéria tão sensível quanto a da PMA, que envolveu as mais distintas discussões na nossa sociedade e bem assim políticas – com variadas recomendações relegadas para o momento da sua aplicação prática.
Está previsto neste Despacho n.º 8533-A/2016 que o anteprojecto do decreto-lei que procederá à regulamentação da Lei n.º 17/2016 será entregue até 15 de Setembro de 2016.

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4. As alterações introduzidas pela Lei n.º 17/2016 evidenciam uma incoerência no seu texto, que se prevê que levantará dúvidas aquando da sua aplicação, dificultando a percepção do seu exacto alcance por parte dos seus destinatários.
A este respeito evidenciamos a incoerência resultante do aditamento do n.º 3 ao artigo 4.º da Lei n.º 32/2006 que estabelece que “as técnicas de PMA podem ainda ser utilizadas por todas as mulheres independentemente do diagnóstico de infertilidade”. Este aditamento, tendo sido um dos principais motivos que levou à presente alteração legislativa, é, no entanto, difícil de compaginar com o princípio resultante do disposto nos n.os 1 e 2 deste mesmo artigo, que o legislador visou manter e que prevê que estas técnicas só podem ser utilizadas em situações de infertilidade devidamente diagnosticadas, ou destinadas ao tratamento de doença grave ou para evitar um risco de transmissão para os descendentes de doenças de origem genética, infecciosa ou outras. Porém, se todas as mulheres passaram a poder, independentemente de um diagnóstico de infertilidade ou doença, recorrer a estas técnicas, é difícil perceber então como se mantêm restrições decorrentes:
  1. da previsão das técnicas de PMA como um método puramente subsidiário, e
  2. da previsão de um diagnóstico de infertilidade ou de outra razão médica associada a doença como legitimadora do recurso a essas técnicas, quando afinal tais problemas de saúde não são conditio sine qua non para tanto.

Muito embora se compreendam e, inclusive, se acolham as preocupações que levaram à manutenção de um princípio de subsidiariedade no recurso a estas técnicas, pretendendo evitar-se a sua banalização e a instrumentalização do ser humano e dos seus órgãos reprodutivos (tanto mais que as técnicas de PMA se desenvolveram historicamente para precisamente se dar uma resposta científica às dificuldades de reprodução), certo é que com o aditamento do n.º 3 se criou um contra-senso com esse princípio restritivo, o qual cumprirá dissipar.

5. Independentemente desta incoerência, é indubitável que foi intenção legislativa proceder a uma verdadeira alteração de paradigma, permitindo que as técnicas de PMA passassem a ser um recurso acessível a todas as mulheres, em condições de absoluta igualdade, não exigindo que, para tanto, sejam inférteis, casadas ou unidas de facto com um homem, ou sequer com outra pessoa do mesmo sexo.
Passou a incluir-se expressamente, por via da alteração do n.º 1 do artigo 6.º, que são beneficiários destas técnicas de PMA os casais de sexo diferente ou os casais de mulheres, bem como todas as mulheres independentemente do estado civil e da orientação sexual.
Depois, outras alterações surgem pelo facto de se ter alargado o âmbito pessoal dos beneficiários destas técnicas, como é exemplo disso a alteração vertida no n.º 1 do artigo 19.º.
Uma outra alteração de assinalar prende-se com a nova redacção dada ao artigo 20.º, onde desde logo se substituiu a referência em epígrafe à “Determinação da paternidade”, para se utilizar a expressão “Determinação da parentalidade”, na sequência do alargamento do âmbito dos beneficiários das técnicas de PMA, em particular incluindo-se casais de mulheres, além de se ter adequado este regime à realização do projecto parental relativamente a uma só pessoa, prevendo-se o assento de nascimento apenas com a menção de um dos progenitores e eliminando-se a necessidade de abertura de um processo de averiguação oficiosa do outro.
Depois, também ao nível do destino dos embriões, assiste-se a uma alteração significativa operada por este diploma, designadamente por meio do aumento do prazo de criopreservação, da previsão da doação de embriões para investigação científica e da sua eliminação.
Nesta alteração legislativa não se previu um regime transitório que abrangesse os casos de mulheres que recorreram a técnicas de PMA no estrangeiro antes da vigência desta alteração legislativa, por até então não lhes ser permitido esse recurso no nosso país. Na verdade, até pela finalidade desta alteração legislativa, centrada na busca da igualdade entre todas as mulheres, em nossa perspectiva teria sido razoável que o legislador tivesse previsto a situação de todas aquelas mulheres que, tendo recorrido a essas técnicas no estrangeiro, ainda aguardam pela conclusão do processo oficioso da averiguação da paternidade, ou então que se vêem obrigadas a recorrer ao regime da adopção do filho da sua cônjuge ou unida de facto.

6. No essencial, esta alteração legislativa implica várias questões éticas que cumpre avaliar, a par e passo, ao longo da sua aplicação prática. A este respeito, é extremamente importante a tomada de atenção às recomendações do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, patentes no seu parecer de Março de 2016 (as quais aliás são citadas pelo Presidente da República na mensagem disponível no site da Presidência da República e dirigida à Assembleia da República, na sequência da promulgação desta alteração legislativa), onde se frisa a necessidade de “fazer prevalecer o respeito pelos direitos da criança que vier a nascer, onde radica de forma insuperável o de ser amada”.