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Comentário ao Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 9/2016, de 28 de Abril (Proc. n.º 330/13.1PJPRT-A.P1-A.S1 – II; DR, 1.ª série, n.º 111, de 9 de Junho de 2016): Uniformização de jurisprudência – Concurso de crimes ["O momento temporal a ter em conta para a verificação dos pressupostos do concurso de crimes, com conhecimento superveniente, é o do trânsito em julgado da primeira condenação por qualquer dos crimes em concurso."]

André Lamas Leite, Doutor em Direito, Professor da FDUP, Consultor, Abreu Advogados

I. O presente acórdão unificador vem dar resposta a uma questão que trazia – e continuará a trazer, em alguma medida – a doutrina e a jurisprudência divididas, com consequências práticas de elevado alcance.
O objecto da oposição de julgados que motivou o recurso extraordinário contende com o momento a ter em conta para fazer operar o conhecimento superveniente do concurso, ou seja, para aplicar a crimes já objecto de decisão transitada em julgado, o regime do art. 78.º do Código Penal (CP)1, o qual remete para o inciso anterior. Coisa diversa – e que também é aflorada no aresto – é o dos requisitos que as decisões em causa devem revestir para se achar verificada a superveniência.
Enquadrando a questão, é por demais sabido que o legislador pátrio construiu, desde o Projecto de Parte Geral de Eduardo Correia um sistema de punição da pluralidade delitual que é bastante singular, senão único, no concerto dos ordenamentos do nosso entorno jurídico-cultural. Arrancando de um sistema de pena conjunta, em que os delitos parcelares em relação de concurso não perdem a sua autonomia, o nosso legislador não consagra um puro sistema de exasperação ou de absorção, mas um sistema que os conjuga e que até confere algum relevo à acumulação material limitada.
Resulta do art. 77.º que a pena única de concurso (real, sublinhe-se, dado que, pela sua própria natureza, o aparente está arredado deste problema, sendo ainda exacto que o concurso ideal, ao invés da Alemanha, não tem relevo jurídico autónomo entre nós, atendo o critério normativo do art. 30.º, n.º 1, e não um de jaez naturalístico que levanta intricados problemas e que, na verdade, não se percebe como se mantém em um ordenamento juscriminal tão evoluído como o germânico) é obtida através, antes de mais, da determinação das medidas concretas sancionatórias de cada um dos crimes em concurso, por via dos critérios gerais que se recolhem dos artigos 70.º e 71.º, n.º 1, conjugados através de uma das duas únicas teorias que merecem consentimento na letra da lei: a da “margem da liberdade ou da moldura da culpa" (Spielraumtheorie), de viés ético-retributivo (Eduardo Correia, Cavaleiro de Ferreira, Faria Costa, entre outros), ou da “moldura da prevenção", entre nós sustentada maioritariamente e que tem em Figueiredo Dias e Anabela Miranda Rodrigues os seus precursores2. Uma vez determinadas, a concessão à acumulação material é visível no limite máximo da pena de concurso, o qual é dado pela soma das medidas concretas das sanções parcelares, com o limite de 25 anos de prisão ou de 900 dias de multa. A concessão ao princípio da absorção pura surpreende-se no limite mínimo da moldura do concurso, o qual é dado pela mais grave das ditas medidas concretas previamente achadas. Não se encontra apenas qualquer concessão à exasperação, excepto em matéria diversa, porém conexa, qual seja o regime de punição do crime continuado - artigos 30.º, n.º 2, e 79.º.
Assim enquadrados, essencial se torna começar por perguntar sobre a teleologia do art. 78.º. Pretendeu o legislador, em assinalável esforço de igualdade entre situações materialmente idênticas, que o não conhecimento da prática de um delito que deveria ter integrado o concurso, pudesse ser tido em conta em momento ulterior, com eventual revogação da decisão anterior, a qual é substituída por uma outra que leva em conta a totalidade dos crimes (os conhecidos e o ou os ocultos), descontando-se o tempo entretanto já cumprido. Trata-se de uma forma de levar o mais longe possível este modo especial de determinação da pena que é a punição do concurso real definido no art. 30.º, n.º 1. E dizemos isto porquanto já entre nós foi defendido, nomeadamente por Cavaleiro de Ferreira, que o concurso é uma circunstância modificativa atenuante. Estamos em face de uma concepção de todo inadmissível e que não encontra adesão no CP. Não estamos em face de uma circunstância ou conjunto de circunstâncias que, não contendendo com o tipo-de-ilícito, com a culpa ou a punibilidade, acabam por importar para a apreensão da imagem global do facto, seja no sentido de a agravarem, seja de a atenuarem. Sabe-se ainda que estas podem ser nominadas ou inominadas e que, em Portugal – e muito bem, sob pena de violação do princípio da legalidade criminal do art. 29.º da Constituição da República Portuguesa (CRP) e do art. 1.º do CP – só existem as primeiras, sendo a técnica dos exemplos-padrão (Regelbeispieltechnik3) uma que fica a meio caminho entre as circunstâncias nominadas e inominadas, cujo exemplo paradigmático entre nós é o art. 132.º, mas que também se encontra na Parte Geral do CP, p. ex., a propósito da atenuação especial da pena (art. 72.º). Quanto ao seu efeito, podem classificar-se em atenuantes e agravantes e ainda, no tocante ao seu âmbito de aplicação, comuns ou específicas.
Ora, do agora dito, resulta à saciedade que a punição do concurso nada tem que ver as circunstâncias modificativas, mas é sim um modo diverso de se determinar a pena final a aplicar ao condenado. É exacto que este vai ser beneficiado se comparássemos a sanção que lhe seria aplicada em regime de punição parcelar ou de mera acumulação material, mas tal justifica-se pelo facto de na base da punição do concurso entre nós gizada, se achar um específico conteúdo de ilicitude, aliás com previsão expressa no art. 77.º, qual seja a de que o Tribunal não se deve limitar a uma simples soma dos vários conteúdos de ilícito de cada um dos crimes em relação de concurso mas, a partir deles e da dita imagem global de todos os factos criminosos, ponderada a gravidade dos delitos e a personalidade do agente, como que elevar-se acima desses juízos parcelares e elaborar um outro que permita compreender o grau de desconformidade do agente - sempre manifestada no facto, para respeitar os fundamentos do Direito Penal do facto - ao quadro axiológico-valorativo que subjaz à CRP.

II. O desiderato do art. 78.º, em curtas palavras, é o de habilitar o Tribunal da condenação que desconhecia a existência de um ou mais crimes que, se conhecidos, também estariam em relação de concurso, a corrigir esta falha, muito normal na prática, em virtude da repetição criminosa dos delinquentes e das dificuldades de comunicação entre os Tribunais, de não pequena monta.
Ora, o conhecimento diz-se superveniente por esse motivo, dado que, nos termos do art. 78.º, n.º 1, só depois do trânsito em julgado da punição por um ou mais crimes se sabe que o agente havia cometido, antes daquela condenação, um ou outros mais, igualmente já transitados em julgado. Esta última exigência foi introduzida pela Reforma de 2007 do CP, o que, se por um lado provoca delongas processuais, por outro é político-criminalmente sustentável e dogmaticamente acertada, na medida em que só com o trânsito a decisão se torna firme no ordenamento jurídico e se obvia a que se operasse um cúmulo superveniente que, em função de uma decisão diversa da da 1.ª instância por um Tribunal ad quem, importasse uma nova operação determinativa do concurso superveniente, contra todos os princípios de celeridade processual. Donde, é hoje claro que o art. 78.º só opera entre decisões transitadas em julgado.
A questão central tratada no acórdão sob anotação consiste, como adiantado supra, em saber se o momento processual a ter em conta na aplicação do regime do art. 78.º é o da primeira condenação proferida ou a do primeiro trânsito em julgado. Não se trata de uma questão despicienda. Se optarmos pela última interpretação - a que teve vencimento no aresto uniformizador -, por certo mais delitos podem, ao menos em abstracto, beneficiar do regime mais favorável ao arguido da punição nos quadros do concurso, dado que se abrangem os delitos cometidos até ao primeiro trânsito em julgado que opere; se optarmos pela primeira, fazendo uma hermenêutica que se crisma de “restritiva", então menos delitos serão potencialmente abrangidos, dado que só relevam aqueles cuja data de comissão for até à primeira condenação proferida.
Comecemos pelo elemento literal de interpretação das normas, particularmente relevante em Direito Penal, atentas as exigências do princípio da legalidade mas, mesmo assim, somente ponto de partida para uma hermenêutica que se deseja teleologicamente fundada e que encontra no dito möglisches Wortsinn (sentido possível das palavras da Lei) uma barreira infranqueável, aliás em linha com o art. 9.º do Código Civil, aplicável a todos os ramos de Direito.
Da análise do art. 78.º, n.º 1, o segmento “depois de uma condenação transitada em julgado" só pode ser interpretado no sentido de que se tratará da primeira em que tal ocorre, havendo várias. De seguida, “anteriormente àquela condenação", também só pode ser a mesma antes referida, ou seja, de novo, a primeira condenação que transite em julgado. Donde, logo na literalidade do preceito o que se pode retirar é que um dos requisitos para aplicar o art. 78.º é que essa condenação tenha de ter transitado em julgado, o que se acha reforçado pela inovação de 2007 hoje prevenida no n.º 2, do dito art. 78.º
Simplesmente, esta análise não nos resolve o problema, pois somente dita quais as condições de acesso ao regime do art. 78.º, sendo exacto que o mesmo só opera entre decisões transitadas. Mas quais os crimes em relação de concurso e quais os que o não estão e que, por isso, serão objecto de execução sucessiva de penas?
Tendo em conta o que acima dissemos sobre o sentido último do conhecimento superveniente, qual seja, o de permitir, a posteriori, que o Tribunal esteja em condições, agora que conhece crime ou crimes ocultos, de proferir uma decisão como se estivesse no momento processual em que o poderia fazer, é nosso entendimento que a maioria formada no STJ é a que melhor leva em conta tal desiderato, ao contrário do sustentado por autores como Figueiredo Dias, Maria João Antunes ou Vera Lúcia Raposo.
Repare-se: no art. 77.º, o relevante é que não tenha havido trânsito em julgado em relação a nenhum dos crimes, sendo pois esse o momento processual a considerar. O que bem se percebe, pois só aí existe a certeza e segurança jurídica para afirmar a solene censura do ordenamento jurídico, que se não encontra na condenação. Não concordamos com a ideia de que a posição que assumimos é uma injusta e desrazoável interpretação que beneficia quem comete mais crimes entre a condenação e o primeiro trânsito em julgado, podendo mesmo funcionar como uma hermenêutica criminógena. Contra esta linha, como no aresto sob anotação, nada prevalece sobre o princípio da presunção de inocência que se retira do art. 32.º, n.º 2, da CRP, o qual vale até ao trânsito em julgado e não até à mera condenação. Mais ainda, como também é dito pelo ilustre relator Souto de Moura, uma boa parte da doutrina portuguesa tenta “encaixar" uma solução alemã a um texto português diverso do correspondente germânico. O momento fulcral do art. 77.º, para fazer funcionar as regras da punição do concurso é o do trânsito e não o da condenação. Assim, se o art. 78.º se limita a remeter para o inciso anterior, só se encontra uma uniformidade aplicativa e de regimes - reclamada pela própria lei - usando o mesmíssimo requisito do art. 77.º.
Propugnar aqui por uma interpretação restritiva é fazer desde logo uma leitura do segmento “anteriormente àquela condenação", desligando-a de que essa mesma condenação aparece descrita, no mesmo art. 78.º, n.º 1, como “transitada em julgado" (aceitando-se, contudo, que a letra da lei poderia ser mais clara, mas que se aludiu apenas àquela condenação para não repetir excessivamente o texto) e, sobretudo, ao invés do propugnado pelos seus defensores, uma hermenêutica não consentânea como thelos do instituto: colocar o julgador na mesma situação em que estaria se os delitos não fossem ocultos. Como bem se argumenta na decisão, interpretatio contrária atribui efeitos de caso julgado a uma decisão que ainda os não tem, vulnerando pois normas processuais penais basilares e o já aludido princípio da presunção da inocência. As preocupações de uma eventual vantagem injustificada para o condenado devem ser vistas de outra forma: não pode ser este, em um Estado de Direito democrático, a suportar eventuais delongas processuais, ainda que por via de recursos por si interpostos, dado ser este um direito que a Lei Fundamental e a ordinária lhe conferem e que não pode funcionar contra si. Se assim fosse, era o acusatório que se ressentiria, com a implícita consideração do arguido mais como objecto que como sujeito processual de direitos e, em boa verdade, estar-se-ia a escolher uma interpretação menos conforme com o Rechtsstaat.
Em conclusão, vista que foi em extrema súmula a decisão comentada, merece a mesma o nosso aplauso.

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1 Doravante, qualquer referência a artigos de diplomas legais sem indicação expressa da sua proveniência deve entender-se por feita para o Código Penal (CP).
2 Sobre a questão, em pormenor, veja-se a nossa dissertação de doutoramento As penas de substituição em perspectiva político-criminal e dogmática. Contributo para uma análise sistemática, Porto: Faculdade de Direito da Universidade do Porto, 2015. Para uma interessante súmula, no Direito Penal alemão, onde é largamente maioritária a teoria da “moldura da culpa”, em face do § 46, I do StGB (Strafgesetzbuch – Código Penal alemão), com referências a decisões dos Tribunais germânicos e do próprio Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, veja-se a apresentação disponível em https://www.mpicc.de/files/pdf1/alb_sankr_ss_12_teil_112.pdf, acedida a 29/7/2016.
3 Para alguns exemplos, no Direito alemão, veja-se https://tu-dresden.de/gsw/jura/jfstraf4/ressourcen/dateien/dateien/ws09/strafr/Regelbeispieltechnik.pdf?lang=en, consultado em 29/7/2016.