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Comentário ao Ac. do Tribunal da Relação do Porto, de 7 de Julho de 2016 (Proc. n.º 12/15.0GAMCN.P1, http://www.dgsi.pt) – Danos sofridos por sociedades comerciais em virtude de lesão do seu bom nome ou do seu crédito como danos de natureza não patrimonial

André Lamas Leite, Doutor em Direito, Professor da FDUP, Consultor, Abreu Advogados

1. De entre várias outras questões, o acórdão ora sob anotação alude à possibilidade de, em virtude da comissão de um crime de ofensa a organismo, serviço ou pessoa colectiva (art. 187.º do Código Penal), os respectivos danos serem ou não indemnizáveis - e como -, para além da essencial distinção entre os de natureza patrimonial e não patrimonial.
Mais do que isso, em função da factualidade dada por provada, não tendo sido possível estabelecer o nexo causal entre a quebra nas vendas da sociedade comercial e a afirmação e propalação de factos conhecidos como inverídicos pelo arguido/demandado, questiona o recorrente se podia ou não haver lugar à condenação em parte do valor reclamado em sede do pedido de indemnização civil, no tocante a danos não quantificáveis em dinheiro.

2. Como bem foi decidido, o recorrente incorria em uma confusão de base: as despesas (danos emergentes) e o que deixou de ser auferido em virtude da intromissão no giro comercial de uma verdadeira campanha difamatória quanto à qualidade dos produtos vendidos (lucros cessantes) constituem danos de natureza patrimonial. Coisa diversa é a repercussão desses mesmos factos cometidos pelo arguido e punidos em sede penal na reputação comercial da sociedade. Estamos, aqui, em face de equivalentes de direitos de personalidade de uma pessoa jurídica, a qual, no caso específico das sociedades comerciais, a partir do momento assinalado no art. 5.º do Código das Sociedades Comerciais, goza de personalidade jurídica (e judiciária, em função do princípio de equiparação que vigora no processo civil). Sempre que possível, o ordenamento pretende conferir protecção a idênticos direitos (ao das pessoas singulares) que contendem com o escrínio de irredutibilidade da sua esfera jurídica. Dito de outro modo, estabeleceu o legislador um princípio de tendencial equiparação entre esses direitos, quando titulados por pessoas singulares ou por entes colectivos. Fê-lo não com base na eminente dignidade da pessoa (art. 1.º da CRP), mas funcionalizando-os aos desideratos que norteiam a constituição de pessoas colectivas que, no caso de sociedades comerciais, tem na obtenção do lucro o seu ponto nodal. Dizemos "nodal", mas não único, dado que, ao menos em uma perspectiva translata, a liberdade de constituição de pessoas colectivas tem assento constitucional, se não como emanação (que não o mesmo, note-se) da liberdade de associação (art. 46.º da norma normarum), pelo menos como um reflexo do "desenvolvimento da personalidade" (art. 26.º, n.º 1, da Constituição) dos sócios ao se agruparem com vista à realização de fins comuns não proibidos - e mesmo incentivados - pelo ordenamento jurídico considerado no seu conjunto.

3. Dito isto, se se não provam - como sucedeu in casu - danos patrimoniais (rectius, apenas se deu como assente que a assistente teve de custear o valor da taxa de justiça a que alude o art. 519.º do Código de Processo Penal), tal não importa, necessariamente, em hipóteses como a descrita, que estejam fora de cogitação a compensação dos danos de cariz não patrimonial.
Mesmo que a factualidade de base seja a mesma – alardear falta de qualidade dos produtos comercializados pela assistente, bem sabendo que tal não correspondia à verdade e com o intuito consumado de prejudicar a sua reputação e crédito públicos –, existe um feixe diverso de responsabilidade extraobrigacional. Do que se trata na fixação da compensação pela ofensa ao bom nome e consideração comerciais da assistente, é o reconhecimento da titularidade, por esta, de um direito de personalidade que, por certo não causando dor, sofrimento, vexame ou humilhação à pessoa jurídica, pela sua própria natureza, afecta um capital indeterminado de boa reputação que, nas pessoas colectivas, mesmo que se não provem danos patrimoniais, merece tutela compensatória do Direito Civil. Tratam-se, pois, de prejuízos de diversa matriz e que se não acham, entre si, em relação de prejudicialidade.
Compreende-se alguma dificuldade na destrinça, por, em regra, estarmos acostumados a configurar os danos não patrimoniais como aqueles que causam dor ou sofrimento físico e/ou psicológico às pessoas singulares. Todavia, a partir do momento em que se aceita que os entes colectivos também são titulares de direitos de personalidade, como a sua (boa) imagem perante o público, o nexo de imputação entre os direitos avaliáveis ou não em pecunia não tem de ser o mesmo, como aqui sucede.
Não se desconhecendo a querela jurisprudencial a que o aresto faz apelo quanto a saber se esses prejuízos de tipo não patrimonial são directos ou meramente reflexos, o essencial é a identificação dos factos assentes e a repercussão que os mesmos tiveram em distintas esferas de que a pessoa colectiva é titular: aquela que consiste no conjunto de danos emergentes e lucros cessantes, e aqueloutra que surge como atentado frontal a um direito de personalidade. Assim enquadrados, dúvidas não podem existir quanto a os mesmos serem objecto de compensação em sede civil.

4. Outra questão é a de saber como se afere o respectivo valor. Aqui, inexistindo medida de sofrimento físico e/ou moral, o Tribunal deve atender à potencialidade transformada em factos concretos dos quais possa resultar a extensão de tais danos. Aí terá em conta o número de vezes que o demandado alardeou factos inverídicos, o leque de destinatários dessas acções, o círculo sócio-económico em que as mesmas foram empreendidas e, também, não se obnubila, deve ser levado em conta o tipo de sociedade comercial (como hic et nunc sucedia) em causa, i. é, a sua estrutura, o seu volume de negócios, a sua posição no mercado em que actua. Este último aspecto não consente a conclusão de que estamos a confundir os danos de jaez patrimonial e não patrimonial, mas tão-somente a identificar pontos de apoio para a tomada de decisão judicativa, assim se caminhando no sentido de diminuir a discricionariedade e de conseguir um melhor adimplemento do mandato constitucional da segurança e certeza jurídicas, os quais se retiram dos artigos 1.º e 2.º, da Lei Fundamental. Dito de outro modo - e usando uma linguagem sistémico-funcionalista -, do que se trata é de encontrar "equivalentes funcionais" aos das pessoas singulares com o fito de estear a medida do sacrifício do crédito e imagem públicos de uma pessoa colectiva, à falta de uma repercussão na sua esfera físio-psicológica.
Se nesta última vertente se encontrarem - para não sermos farisaicos - alguns pontos de contacto entre os danos patrimoniais e não patrimoniais, tal não deve surpreender, não no sentido em que propendamos para uma espécie de "panconceptualização" do dano civil, englobando as duas modalidades, mas para a admissão que, em uma pessoa jurídica, reum natura, existem inegáveis pontos de contacto não na sua natureza - que permanece diversa -, mas no conjunto de elementos de prova (ainda que indiciária) de que o julgador terá de lançar mão para concretizar o quantum compensatório.
Defender coisa distinta, ou seja, uma indemnização total que não discernisse a vertente patrimonial da não patrimonial dos danos, para além de importar alterações em sede do modo de aferição do próprio nexo causal - como fica patente no presente aresto -, teria por consequência a alteração do próprio Código Civil e, sobretudo, abriria a porta a que o quantum global fosse pré-determinado pelo julgador em função de um certo "sentimentalismo judiciário" que, depois, seria incontrolável em sede de fundamentação e eventual recurso. Por outras palavras, menos se cumpriria o mandamento constitucional e legal do conhecimento das razões de facto e de Direito de uma decisão em certo sentido, não sendo de descartar que, v. g., danos patrimoniais carecidos de cabal prova acabassem, na prática, por ser indemnizados por via de uma categoria demasiado ampla de prejuízos, onde se não distinguiriam os avaliáveis ou não em dinheiro. Por certo, o Estado de Direito ressentir-se-ia de uma opção deste tipo.