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Comentário aos Acórdãos do STJ (28.3.2017), Relação do Porto (19.9.2016; 27.4.2017) e Relação de Lisboa (20.10.2016) – Utilização de fracção em prédios em regime de propriedade horizontal para Alojamento Local

Rui Peixoto Duarte, Sócio, Abreu Advogados

Acórdãos recentes - dois do Tribunal da Relação do Porto, um do Tribunal da Relação de Lisboa e um outro do Supremo Tribunal de Justiça - pronunciaram-se sobre a questão da afectação de fracções de prédios de habitação em propriedade horizontal à actividade de alojamento local.

1. Enquadramento do regime jurídico do alojamento local

O Decreto-Lei n.º 39/2008, de 7 de Março, consagrou um novo regime jurídico da instalação, exploração e funcionamento dos empreendimentos turísticos, procedendo à revogação dos diversos diplomas que regulavam esta matéria, reunindo num único diploma as disposições comuns a todos os empreendimentos, de modo a tornar mais fácil o acesso às normas reguladoras da actividade. Este diploma consagra que não se consideram empreendimentos turísticos as instalações ou os estabelecimentos que, embora destinados a proporcionar alojamento temporário com fins lucrativos, revistam natureza de alojamento local. Consideram -se estabelecimentos de alojamento local as moradias, apartamentos e estabelecimentos de hospedagem que, dispondo de autorização de utilização, prestem serviços de alojamento temporário, mediante remuneração, mas não reúnam os requisitos para serem considerados empreendimentos turísticos.

O referido Decreto-Lei n.º 39/2008 foi alterado pelo Decreto-Lei n.º 128/2014, de 29 de Agosto, que conferiu ao alojamento local um tratamento jurídico autónomo das outras modalidades de exploração turística.
Havia dois objectivos centrais que o legislador visava.
O primeiro era assegurar condições condignas da oferta, uma vez que o alojamento local deve assegurar a qualidade da conservação, segurança e funcionamento das instalações e equipamentos, através do licenciamento e vistoria municipal e um registo no Turismo de Portugal. Garantindo ao mesmo tempo a desburocratização dos procedimentos através da exigência de uma mera comunicação prévia realizada exclusivamente através de um Balcão Único Electrónico.
A outra preocupação era de índole fiscal: assegurar que os rendimentos gerados com o alojamento local não escapassem à tributação. Para isso aquele que explora o alojamento local terá que declarar o início ou alteração de actividade do titular da exploração do estabelecimento para o exercício da actividade de prestação de serviços de alojamento correspondente à secção I, subclasses 55201 ou 55204 da Classificação Portuguesa de Actividades Económicas, junto da Autoridade Tributária e Aduaneira (AT).

Os estabelecimentos de alojamento local integram-se numa das seguintes modalidades:

  1. Moradia: o estabelecimento de alojamento local cuja unidade de alojamento é constituída por um edifício autónomo, de carácter unifamiliar;

  2. Apartamento: o estabelecimento de alojamento local cuja unidade de alojamento é constituída por uma fracção autónoma de edifício;

  3. Estabelecimentos de hospedagem: o estabelecimento de alojamento local cujas unidades de alojamento são constituídas por quartos. Estes poderão utilizar a denominação de «hostel» quando a unidade de alojamento predominante for um dormitório, ou seja, um quarto constituído por um número mínimo de quatro camas ou por camas em beliche, e se obedecerem aos restantes requisitos previsto na lei para o efeito.


O Decreto-Lei n.º 128/2014, de 29 de Agosto, é omisso quanto à questão do apartamento estar integrado num prédio de habitação sujeito ao regime da propriedade horizontal.
A lei estabelece uma presunção da existência de alojamento local “quando um imóvel ou fracção deste:

  1. Seja publicitado, disponibilizado ou objecto de intermediação, por qualquer forma, entidade ou meio, nomeadamente em agências de viagens e turismo ou sites da Internet, como alojamento para turistas ou como alojamento temporário; ou

  2. Estando mobilado e equipado, neste sejam oferecidos ao público em geral, além de dormida, serviços complementares ao alojamento, nomeadamente limpeza ou recepção, por períodos inferiores a 30 dias”.

Diz a lei que esta presunção pode ser ilidida nos termos gerais de direito, designadamente mediante apresentação de contrato de arrendamento urbano devidamente registado nos serviços de finanças.

2. Os Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto, do Tribunal da Relação de Lisboa e do Supremo Tribunal de Justiça

As questões suscitadas nos Tribunais a que se referem os acórdãos do Tribunal da Relação do Porto, do Tribunal da Relação de Lisboa de 20-10-2016, e do Supremo Tribunal de Justiça de 20-10-2016 restringem-se à modalidade do alojamento local sob a forma de apartamento em prédios em propriedade horizontal.

2.1. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa

No caso relatado pelo Acórdão de Lisboa em Outubro de 2016, foi o proprietário da fracção que destinou a alojamento local que pediu a suspensão de uma deliberação da assembleia de condóminos que proibiu ao proprietário o destino para alojamento local de uma fracção do prédio de sua propriedade.
Podemos resumir a duas as premissas da decisão do Tribunal da Relação de Lisboa. A primeira é a de que a actividade de alojamento local é uma actividade comercial. Esta actividade corresponde ao “CAE 55201 – Alojamento mobilado para turistas”. Diz o Acórdão que o facto de a actividade ser exercida com autorização do Serviço de Finanças de Lisboa, da Câmara Municipal de Lisboa e do “Turismo de Portugal, I.P.” não deixa que o serviço seja prestado mediante determinado preço, com vista ao lucro, de “ser em tudo semelhante ao de um hotel, de uma pensão, ou de um hostel.”
A segunda premissa é a de que, se na escritura de constituição de propriedade horizontal a fracção se destinar exclusivamente a habitação, não lhe pode ser dado outro destino (alojamento mobilado para turistas).
Em consequência, se um condómino dá à sua fracção um uso diverso do fim a que, segundo o título constitutivo da propriedade horizontal, ela é destinada, o único remédio para essa afectação é a reconstituição natural (afectação da fracção em causa ao fim a que ela estava destinada).

2.2. Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto

2.2.1.No caso relatado pelo Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 19-09-2016, foi o condomínio do edifício que instaurou procedimento cautelar não especificado, pedindo que fosse ordenada a imediata suspensão da actividade de prestação de serviços de alojamento local numa fracção de um prédio em propriedade horizontal. Tendo o Tribunal de Primeira Instância julgado o procedimento parcialmente procedente e ordenado a suspensão imediata pelo requerido da actividade de prestação de serviços de alojamento local na fracção, veio o Tribunal da Relação do Porto reverter esta decisão, entendendo que:
“Se no título constitutivo da propriedade horizontal apenas se estabelece que determinada fracção se destina à habitação, não existe, em princípio, impedimento a que o seu proprietário a afecte a alojamento local de turistas.
O conceito de alojamento está contido no conceito de habitação.
O facto de determinada utilização ser feita mediante contrato de prestação de serviços não é bastante para caracterizar a finalidade dessa utilização, tudo dependendo da forma como essa prestação de serviços é efectuada.
O Regulamento de Condomínio não pode, a pretexto de regular a utilização do imóvel, impor restrições materiais ao conteúdo do direito de propriedade de cada condómino sobre a sua fracção que não resultem do título de constituição da propriedade horizontal ou a que o condómino tenha dado o seu consentimento”.

Neste Acórdão reconhece-se que o conceito de alojamento está contido no conceito de habitação porque inclui todos os actos e utilidades característicos do conceito de alojar. Proporcionar habitação é mais do que alojar, mas é também alojar. “Nesse contexto, sendo certo que quem pode o mais deverá poder o menos, a utilização para alojamento temporário de turistas não diverge da utilização para habitação (de não turistas ou mesmo de turistas), porque a pessoa alojada não pratica no local de alojamento algo que nela não pratique quem nele habita: dorme, descansa, pernoita, tem as suas coisas”.
Nos estabelecimentos de alojamento local - acrescenta-se - o prestador de serviço limita-se a proporcionar ao turista o local de alojamento, os seus cómodos, mobiliário e equipamento doméstico, franqueando-lhe o acesso e a utilização dos mesmos, cobrando a respectiva remuneração, não disponibilizando outros serviços próprios dos estabelecimentos de restauração ou hoteleiros tais como alimentação, animação, etc.. Também se refere que, na actualidade, o contacto entre o dono do estabelecimento e o turista é feito por via electrónica, através da internet e do correio electrónico, dispensando a existência de qualquer balcão físico ou pessoas no local de alojamento. O alojamento temporário de turistas não difere em regra de uma utilização similar à que seria feita pelo proprietário ou por um arrendatário para habitação do respectivo agregado familiar.
Depois pronuncia-se o Acórdão sobre o carácter do regulamento de condomínio: não é mais do que um instrumento destinado a disciplinar o uso, a fruição e a conservação das partes comuns do edifício e, nessa medida, excepto se houver concordância do condómino afectado, o regulamento não pode ultrapassar esse âmbito e interferir directamente com o conteúdo material do direito de cada um dos condóminos sobre a sua fracção, reduzindo-o ou excluindo algumas das suas valências. Não seria aceitável que um regulamento de condomínios estabelecesse restrições de que determinadas fracções não possam ser utilizadas por turistas, ou estudantes ou pessoas de determinada etnia, raça ou nacionalidade. O mais que os restantes condóminos podem exigir é que o fim a que a fracção é destinada seja respeitado, nos termos do artigo 1422.º do Código Civil, que impede os condóminos de darem à sua fracção um uso diverso do fim a que é destinada.

2.2.2.No caso relatado pelo Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 27-04-2017, o condomínio do edifício, por deliberação da Assembleia Geral ordinária, alterou o Regulamento do Condomínio, constituindo os condóminos na obrigação de informarem por escrito a administração, com a antecedência de oito dias, sobre a identificação dos arrendatários, não podendo dar utilidade turística/hoteleira a tal fracção. Essa deliberação da Assembleia Geral do condomínio foi tomada por maioria com os votos contra do condómino que reagiu judicialmente.
Para além de outras fundamentações entendeu o Tribunal da Relação do Porto, neste aresto, que a actividade do alojamento local é uma actividade distinta da do arrendamento residencial. No alojamento local estamos perante uma actividade de prestação de serviços, que para além da locação do espaço, inclui serviços complementares como a limpeza e a recepção. Essa actividade está enquadrada fiscalmente na categoria B do IRS em detrimento da categoria F do arrendamento.
Depois, analisa a particularidade de o alojamento local se poder compatibilizar com o destino da habitação dado no título constitutivo da propriedade horizontal, nos termos do artigo 1418º do Código Civil. De harmonia com o al. c) do n.º 2 do artigo 1422º do Código Civil é especialmente vedado aos condomínios dar à fracção uso diverso do fim a que é destinada, só podendo o título constitutivo ser modificado com o acordo de todos os condóminos.
Diz o Acórdão que tudo passa por saber qual o significado que se deve dar à palavra habitação referida no título constitutivo da propriedade horizontal. Interroga-se o Acórdão: será que se deve aceitar um conceito amplo de habitação para a destinação das fracções que englobe alojamentos de curtíssima duração destinados a turistas? Respondendo à questão, entende que o sentido da palavra habitação é o de residência, domicílio, lar, o que pressupõe a permanência com alguma estabilidade - exige-se a existência de alguma organização de vida.
Conclui, tal como o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa aqui referido, que no caso se configura uso diverso do fim a que, segundo o título constitutivo da propriedade horizontal, a fracção é destinada, em violação da al. c) do n.º 2 do artigo 1422º do Código Civil, com a cominação da reconstituição natural (afectação da fracção em causa ao fim a que ela estava destinada).

2.3. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça

O Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça começa por decidir que o arrendamento de fracção de prédio sob o regime de propriedade horizontal a turistas por curtos períodos, designado por alojamento local, não é um acto de comércio, porque nem sequer consta do artigo 2.º do Código Comercial.
Depois refere que, na cedência onerosa de fracção mobilada a turistas, a fracção destina-se à respectiva habitação e não ao exercício de actividade comercial.
Respeita o conteúdo do título constitutivo da propriedade horizontal onde consta que determinada fracção se destina a habitação, se essa fracção for objecto de alojamento local.
Na fundamentação jurídica o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça entende que a fracção é um mero objecto do contrato supostamente comercial, não sendo a alegada actividade comercial exercida na fracção, dando o exemplo de uma imobiliária que, quando celebra contratos de arrendamento das fracções que administra, pratica actos de comércio, mas o fim das mesmas não tem que ser o comércio, podendo ser a habitação, comércio ou indústria, em consonância com o que consta do respectivo título constitutivo da propriedade horizontal.
Entende-se assim que não existe violação do título constitutivo da propriedade horizontal quando há a utilização da fracção de habitação para alojamento local.

3. Apreciação crítica

O Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28-03-2017 decorre do recurso do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 20-10-2016 supra referido e foi proferido antes do Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 27-04-2017.
Significa que a controvérsia jurisprudencial não ficou sanada com o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28-03-2017, vindo este Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 27-04-2017 reabrir a controvérsia jurisprudencial da questão da admissibilidade do alojamento local nas fracções de prédios em propriedade horizontal cujo título constitutivo as destine exclusivamente à habitação.
A primeira observação é de que é óbvia a divergência de entendimento entre o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 20-10-2016 e o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 27-04-2017 com o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 19-09-2016 e o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28-03-2017 sobre a possibilidade de exploração de alojamento local em prédios submetidos à propriedade horizontal licenciados exclusivamente para habitação.
O Tribunal da Relação de Lisboa de 20-10-2016 e o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 27-04-2017 partem da premissa que a actividade de alojamento local é uma actividade comercial que visa o lucro, que está incluída numa determinada classificação de actividade económica, daí concluindo que esta actividade é incompatível de ser exercida em prédios em regime de propriedade horizontal em que no título constitutivo se preveja exclusivamente o fim de utilização para habitação.
Apesar de o Decreto-Lei n.º 128/2014, de 29 de Agosto, não ter tratado a questão específica da permissividade da exploração do alojamento local em apartamentos submetidos ao regime da propriedade horizontal cujo título constitutivo os destine exclusivamente à habitação, trata-se, no nosso entender, de uma interpretação restritiva e que não tem em conta o espírito que presidiu à criação da legislação sobre o alojamento local.
Com efeito, conforme já referimos, a legislação de alojamento local visou regular a oferta através do respectivo licenciamento e submeter os rendimentos gerados à tributação, classificando esta actividade como actividade económica de prestação de serviços. Esta classificação releva para fins estatísticos e tributários e não para outros fins. O legislador, ao exigir o licenciamento da actividade e a inscrição na administração fiscal, não visou impedir que os prédios de habitação não se possam destinar a alojamento local, pois neste conceito, tal como refere o Tribunal da Relação do Porto de 19-09-2016, o alojamento temporário de turistas não difere em regra de uma utilização similar à que seria feita pelo proprietário ou por um arrendatário para habitação do respectivo agregado familiar. Da mesma forma e no mesmo sentido vai o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28-03-2017, distinguindo a actividade do proprietário da fracção do uso da fracção.

2.4. Alternativa ao impedimento do alojamento local em prédios em propriedade horizontal exclusivamente destinados à habitação

Nada impede que o proprietário da fracção impossibilitado da exploração do alojamento local não venha em alternativa a arrendar a fracção para o mesmo fim.
Para a duração do arrendamento a lei apenas impõe um prazo máximo de trinta anos (n.º 2 do artigo 1095º do Código Civil), mas não impõem um prazo mínimo, podendo, no limite, esse prazo ser de apenas um dia. A lei admite a locação de imóveis mobilados e seus acessórios (artigo 1065º do Código Civil).
O proprietário da fracção impedido de explorar o alojamento local poderá comunicar, por qualquer meio legalmente admissível, ao Presidente da Câmara Municipal, no prazo máximo de 60 dias após a sua ocorrência, a cessação da exploração do estabelecimento de alojamento local (n.º 4 do artigo 6.º do Decreto-Lei n.º 128/2014, de 29 de Agosto), para posteriormente arrendar a fracção.
O que mudará nestes casos é a tributação do rendimento, que será nos termos do previsto para os rendimentos de arrendamento e não conforme a tributação prevista para o alojamento local.


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1 Acórdão de 19-09-2016, Processo 4910/16.5T8PRT-A.P1, Relator Aristides Rodrigues de Almeida, publicado em www.dgsi.pt; Acórdão de 27-04-2017, Processo 13721/16.7T8PRT.P1, ainda não publicado.
2 Acórdão de 20-10-2016, Processo 12579-16,0T8LSB.L1-8, Relator Ilídio Sacarrão Martins, publicado em www.dgsi.pt.
3 Acórdão de 28-03-2017, Processo 12579/16.0T8LSB.L1.S1, Relator Salreta Pereira, publicado em www.dgsi.pt.