Fórum Jurídico

Texto PequenoTexto NormalTexto Grande

 

Comentário ao Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 1/2017, de 23 de Fevereiro de 2016 (Proc. n.º 1373/06.7TBFLG.G1.S1-A; DR, 1.ª Série, n.º 38, de 22 de Fevereiro de 2017): Uniformização de jurisprudência – Dupla descrição registal

Mónica Jardim, Doutora em Direito, Professora da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Membro e Investigadora do Instituto Jurídico da FDUC
Convidada Abreu Advogados


1. Nota Prévia

O Acórdão Uniformizador de Jurisprudência nº 1/2017 - pronunciando-se sobre a questão jurídica de se saber: “perante o caso de duplicação de descrições prediais e linhas de registo incompatíveis, qual o valor a atribuir ao registo derivado do acto mais antigo?” - uniformizou jurisprudência nos seguintes termos:
“Verificando-se uma dupla descrição, total ou parcial, do mesmo prédio, nenhum dos titulares registais poderá invocar a seu favor a presunção que resulta do artigo 7.º do Código do Registo Predial, devendo o conflito ser resolvido com a aplicação exclusiva dos princípios e das regras de direito substantivo, a não ser que se demonstre a fraude de quem invoca uma das presunções”.
Deste modo, o Aresto sufragou a tese do acórdão recorrido e afastou-se da posição adoptada pelo acórdão fundamento - o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23/02/2012 -, nos termos da qual: “constatando-se uma concorrência de presunções derivadas do registo predial, deve prevalecer a que derivar do acto de registo mais antigo, valendo para o efeito a data de apresentação a registo ou, tendo a mesma data, o respectivo número de ordem.”
Concordamos na generalidade com o Aresto e respectiva fundamentação, uma vez que, em caso de duplicação (total ou parcial)1 de descrições e consequente incompatibilidade de situações tabulares, não temos dúvidas que a resolução do conflito não pode ser atingida mediante recurso aos princípios da prioridade e ao princípio do trato sucessivo mas, apenas e só, pela aplicação dos princípios e regras de direito substantivo.
Passamos, de seguida, a justificar a nossa posição.

O Sistema Registal Português, desde a Lei Hipotecária de 1863, é - como todos os sistemas registais mais desenvolvidos - um sistema de fólio real, ou seja, é organizado em torno do imóvel – que deve ser individualizado com a máxima exactidão, de acordo com o princípio da especialidade física2 - e não pelo nome dos proprietários, como ocorre nos sistemas de fólio pessoal.
Porque assim é, naturalmente, as duplicações de descrições foram sempre muitíssimo criticadas, pois frustram os fins de certeza e segurança do registo, uma vez que sobre o mesmo prédio podem afinal vir a incidir diversas e opostas situações jurídicas3.
Havendo repetição da descrição do mesmo prédio acompanhada de situações jurídico-tabulares incompatíveis ou conflituantes, obviamente, a fiabilidade do sistema de registo é posta em causa pois, como é evidente, o verdadeiro problema que existe por detrás da dupla descrição trata-se da publicidade por parte do Registo de uma situação contraditória acerca da propriedade de um imóvel: publicita-se que duas pessoas distintas são proprietárias do mesmo imóvel no mesmo momento.
Ora, tendo em conta que só pode existir um ius in re sobre determinada coisa na medida em que seja compatível com outro direito real que a tenha por objecto, ou na medida em que não seja excluído por força de um prevalecente ou pré-existente ius in re4 e, ainda, a impossibilidade de sobre a mesma coisa incidirem dois diversos direitos de propriedade, ocorrendo a duplicação da descrição de um mesmo prédio acompanhada de situações jurídico-tabulares incompatíveis ou conflituantes, repetimos, não pode assumir relevância o princípio da prioridade registal nem o princípio do trato sucessivo e as presunções registais, apesar de, na nossa perspectiva, não serem destruídas, devem ficar como que suspensas, até à decisão do conflito.
Vejamos com mais pormenor, tendo sempre presente que o verdadeiro problema que existe por detrás da dupla descrição se trata da publicidade dada pelo Registo de que duas pessoas distintas são proprietárias do mesmo imóvel no mesmo momento.


2. Da irrelevância do princípio da prioridade registal e do princípio do trato sucessivo em caso de duplicação da descrição do mesmo prédio acompanhada de situações jurídico-tabulares incompatíveis ou conflituantes

A) Da irrelevância do princípio da prioridade registal, em caso de duplicação da descrição do mesmo prédio acompanhada de situações jurídico-tabulares incompatíveis ou conflituantes

Concordamos completamente com o afirmado no Aresto, nos termos do qual: primeiro, o princípio da prioridade refere-se “às inscrições que forem lançadas na mesma descrição do prédio, pressupondo, por conseguinte, que foi respeitada a pedra angular do registo, a existência de uma descrição para cada prédio (n.º 2 do artigo 79.º do Código do Registo Predial) susceptível de o identificar.”; segundo, “a prioridade a que se atende no artigo 6.º é a prioridade das inscrições no mesmo registo, mas não a prioridade das descrições, não constituindo a prioridade na data da descrição critério adequado para resolver os problemas.”; por fim, “se a solução resultasse da aplicação simples e literal do artigo 6.º e do princípio da prioridade no registo então mal se compreenderia a solução provisória e cautelosa do n.º 1 do artigo 86.º do Código do Registo Predial.
Não obstante, cumpre acrescentar que quando aquele que beneficia de um registo definitivo prioritário, efectivamente, não haja adquirido o direito, em virtude de um vício no negócio em abstracto produtor de efeitos reais, a regra da prioridade registal, em princípio, nada vale. Tal fica a dever-se ao facto de, no sistema jurídico português – tal como nos restantes sistemas jurídicos europeus de civil law -, o registo não ser condição suficiente para que ocorra a mutação da situação jurídico-real existente. Ou seja, à circunstância de a inscrição registal, por si só, não conduzir à aquisição do direito e, consequentemente, não poder atribuir oponibilidade a um direito que não chegou a surgir na esfera jurídica do titular registal.
Ou seja, não basta obter com prioridade a inscrição de um facto jurídico para o fortalecer definitivamente em face do verdadeiro titular do direito. A “protecção” que o primeiro inscrito recebe do registo é transitória, fugaz, se o facto jurídico não tiver a virtualidade de produzir os efeitos erga omnes que o registo passa a publicitar, salvo se o primeiro inscrito for considerado um terceiro para efeitos do art. 5 do Cód.Reg.Pred..
Ora, como se sabe, terceiros para efeitos do art. 5 do Cód.Reg.Pred. são apenas aqueles que tenham adquirido, de um autor comum, direitos incompatíveis entre si5.
Do exposto resulta que, em caso de duplicação da descrição do mesmo prédio acompanhada de situações jurídico-tabulares incompatíveis ou conflituantes, se os interessados não houverem adquirido de um mesmo autor, o art. 5.º do Cód.Reg.Pred. é inaplicável e o art. 6.º do mesmo diploma legal não pode assumir qualquer relevância na resolução do conflito7. Titular do direito será aquele que o houver adquirido do ex-dominus, nunca o que tiver adquirido do non dominus, mesmo que primeiro tenha obtido a inscrição registal.

B) Da irrelevância do princípio do trato sucessivo, em caso de duplicação da descrição do mesmo prédio acompanhada de situações jurídico-tabulares incompatíveis ou conflituantes

De acordo com o princípio do trato sucessivo, o transmitente de hoje tem de ser o adquirente de ontem e o titular inscrito de hoje tem de ser o transmitente de amanhã.
Enquanto pressuposto do processo registal que impõe a sequência linear e contínua dos factos inscritos, o trato sucessivo visa ser o reflexo tabular da regra nemo plus iuris ad alium transferre potest quam ipse habet que domina a aquisição derivada.
Mas o princípio do trato sucessivo não se restringe à aquisição derivada, nem sequer se justifica como princípio de direito substantivo. O trato sucessivo vai buscar, antes, as suas raízes e os seus fundamentos ao princípio da prioridade do registo e às presunções que do registo derivam para o respectivo titular, pois, como a lei estabelece que o registo faz presumir que o direito existe e pertence ao titular inscrito, não pode dispensar a intervenção deste para a realização de um registo posterior que colida com o seu8.
Consequentemente, em caso de duplicação da descrição do mesmo prédio acompanhada de situações jurídico-tabulares incompatíveis ou conflituantes, não sendo razoável utilizar o critério cronológico para determinar qual das presunções se deve manter - uma vez que, como já referimos, um dos direitos de propriedade só tabularmente se apresenta como válido e esse pode, perfeitamente, ser o primeiro inscrito -, também não é plausível afirmar que deve prevalecer o interessado que se integre no trato sucessivo mais antigo9.
Consequente e inevitavelmente - não sendo aceitável continuar a reconhecer eficácia a ambas as presunções e, assim, a reconhecer que existem, sobre a mesma coisa, dois direitos de propriedade, além do mais, porque tal implicaria admitir que nada poderia obstar ao desenvolvimento de um trato sucessivo relativamente a um direito inexistente -, a solução a adoptar tem necessariamente de passar por considerar que a eficácia de todas as presunções, enquanto o conflito de direito substantivo não for resolvido, fica suspensa.
Precisamente por isso, também defendemos que os actos de registo subsequentes que tiverem por objecto o imóvel cuja descrição já se constatou estar duplicada (total ou parcialmente) apenas poderão ser registados por dúvidas, até o esclarecimento ou definição da situação jurídica. Isto porque, só assim o Registo deixará de estar incólume à situação existente e revelará, na medida possível, que sobre o mesmo imóvel não podem existir validamente dois direitos de propriedade conflituantes10.

Em suma, “na pendência da duplicação de tais situações jurídicas, o sistema não está em condições de envolver a tutela dos interesses daqueles que fundam os seus actos na realidade registal e, portanto, acha-se comprometido na sua função e na eficácia e funcionamento dos seus princípios”11.


3. Das presunções derivadas do Registo

Alguns sistemas registais, dentre os quais o nosso, consagram as presunções ilidíveis, de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que consta do Registo e, assim, atribuem ao titular registal uma enorme vantagem do ponto de vista probatório.
Mas, segundo tese defendida por parte da doutrina portuguesa, o assento registal apenas gera as referidas presunções quando os direitos inscritos efectivamente existem no plano substantivo.
Salvo o devido respeito, tal afirmação não tem qualquer fundamento. Na verdade, a consagração das referidas presunções está intimamente relacionada com a adopção do princípio da legalidade no seu sentido mais amplo, ou seja, como controlo de legalidade de forma e de fundo dos documentos apresentados, tanto por si sós, como relacionando-os com os eventuais obstáculos que o Registo possa opor ao assento pretendido.
Ou seja, nos sistemas registais em que os assentos só podem ser realizados após o cumprimento do princípio da legalidade em sentido amplo, encontra-se justificada a particular força probatória que lhes é reconhecida. Ao invés, os sistemas registais que consagram o princípio da legalidade enquanto mero controlo formal dos títulos não podem, mesmo por via da presunção, atestar a existência do direito na esfera jurídica do titular aparente.
Sendo esta a explicação para a existência das presunções registais, segundo o nosso entendimento, uma vez publicitado definitivamente o direito e enquanto a inscrição permanecer em vigor, o respectivo titular registal beneficia das presunções ilidíveis previstas no Cód.Reg.Pred, mesmo quando não seja, nem nunca tenha sido, titular de tal direito12.


4. Da impossibilidade das situações de duplicação da descrição do mesmo prédio serem solucionadas através do processo de rectificação previsto nos arts. 120º e ss. do Código do Registo Predial

Como já se referiu, a lei apenas prevê a duplicação total e, por isso, só para esta impõe uma actuação aos conservadores: a reprodução na ficha de uma delas dos registos em vigor nas fichas das restantes, as quais se inutilizam, anotando-se em todas a circunstância de se encontrarem duplicadas (cfr. art. 86.º do Cód.Reg.Pred).
Tal disposição legal apenas visa fazer cessar a duplicação total, pois o seu cumprimento nada resolve quanto à incompatibilidade dos efeitos dos registos preexistentes nas diversas fichas - os quais passam a coabitar o “espaço inscritivo” da descrição “sobrevivente”13.
Ora, competindo ao conservador determinar a existência de descrições duplicadas, quer total quer parcialmente, pode surgir a questão de se saber se o conflito de fundo não pode ser resolvido por ele (conservador) num processo de rectificação.
Entendemos que não, de facto, subscrevemos na íntegra o afirmado no Parecer emitido no processo R.P. 57/2015 STJSR-CC do Conselho Consultivo do IRN, onde se pode ler: “de acordo com o art. 121.º do CRP, o processo de rectificação, enquanto via intrassistemática de reposição da regularidade registal, só poderá ser mobilizado para: 1) correcção de erros técnicos (art. 121.º, n. 5 do CRP); 2) suprimento da falta de trato sucessivo quando ainda não esteja registada a acção de declaração de nulidade (arts. 16.º e) e art. 121.º, n.º4 do CRP); 3) expurgação dos registos indevidamente lavrados que sejam nulos nos termos das alíneas b) e d) do n.º 1 do art. 16.º do CRP; ou 4) rectificação dos registos inexactos.”14
Portanto, e tal como também é perfeitamente explicitado no Parecer emitido no processo RP 1/2016 STJSR-CC do Conselho Consultivo do IRN, o processo de rectificação não pode ser utilizado para a “«regularização» (eliminação) do «problema» da duplicação de descrições”15 e, portanto, tal só poderá ocorrer pela via judicial.


_______________________
1 A duplicação total de descrições ocorre quando a descrição de um mesmo prédio é repetida na íntegra. Já a duplicação parcial de descrições existe quando determinada porção de terreno, no sistema registal, é simultaneamente descrita autonomamente enquanto prédio sob determinado número e como parte da descrição de outro prédio.
O Código do Registo Predial (Cód.Reg.Pred.) apenas prevê expressamente a duplicação total (cfr. art. 86.º), estatuindo:
“1 - Quando se reconheça a duplicação de descrições, reproduzir-se-ão na ficha de uma delas os registos em vigor nas restantes fichas, cujas descrições se consideram inutilizadas.
2 - Nas descrições inutilizadas e na subsistente far-se-ão as respectivas anotações com remissões recíprocas.”
Mas, verificada a duplicação parcial, o Conselho Consultivo do IRN (anterior Conselho Consultivo da DGRN) tem entendido que o conservador deve de imediato proceder oficiosamente às correspondentes anotações às respectivas descrições prediais, porquanto «o mínimo que se deverá exigir da publicidade registal é que aquelas anomalias fiquem a constar ao nível descritivo». No entanto, para além disto, considera que nada mais pode ou deve fazer o conservador para corrigir o erro ou sanar a causa da duplicação. Isto porque, a disciplina que o art. 86º do Cód.Reg.Pred. gizou para a duplicação total de descrições prediais não pode ser aplicada à duplicação parcial de descrições, uma vez que, desde logo, à que actuar em conformidade com o princípio da especialidade dos direitos reais, que impede a constituição de direitos reais sobre coisas que não estejam juridicamente individualizadas. (Vide Pareceres proferidos no processo R.P. 50/2003 DSJ-CT do Conselho Técnico da então DGRN, Boletim dos Registos e do Notariado, 7/2003, p. 6 e ss., e no processo R.P. 206/2010 SJC-CT do Conselho Consultivo do IRN. Disponível: http://www.irn.mj.pt/sections/irn/doutrina/pareceres/predial/2010/p-r-p-206-2010-sjc-ct/).
Em resumo, constatada uma duplicação, No que concerne à técnica registal, inutilizar-se-á uma das fichas sendo a duplicação total ou far-se-á as anotações recíprocas, sendo parcial. Deste modo fica patente nas tábuas a indefinição e incerteza, alertando-se terceiros.
2 O fólio de cada prédio é uma espécie de «conta corrente» do mesmo, onde se pode recolher, para além dos dados físicos do imóvel, as suas diversas transmissões, bem como os direitos reais, diversos da propriedade, que sucessivamente se constituam.
3 Refira-se no entanto, que as principais causas das duplicações totais ou parciais estão, há muito, perfeitamente identificadas.
A saber:
- a forma insuficiente como são feitas as descrições, em virtude do modo como se inscrevem e alteram prédios nos serviços de finanças (quer na matriz rústica quer urbana), que em conjunto com a Refira-se no entanto, que as principais causas das duplicações totais ou parciais estão, há muito, perfeitamente identificadas.
A saber:
- a forma insuficiente como são feitas as descrições, em virtude do modo como se inscrevem e alteram prédios nos serviços de finanças (quer na matriz rústica quer urbana), que em conjunto com a declaração do interessado serve de base ao conteúdo da descrição, sem que se proceda a um controlo sobre a existência efectiva do imóvel e suas características;
- a facilidade com que se admite a abertura de novas descrições sempre que se pretenda inscrever uma penhora, uma acção judicial, a aquisição por via sucessória ou a aquisição com base na invocação de usucapião.
Acresce que, a inexistência ou insuficiência do cadastro dos bens, o fim da competência territorial dos serviços de registo, a recente reorganização administrativa das freguesias com a substituição de matrizes, etc., agravaram a possibilidade de duplicação.
4 A propósito do concurso de direitos reais, ou da impossibilidade do concurso, vide, entre outros: ORLANDO DE CARVALHO, Direito das Coisas, Coimbra, Centelha, 1977, p. 226 e ss.; HENRIQUE MESQUITA, Obrigações Reais e Ónus Reais, Coimbra, Almedina, 1990, p. 90 e ss., esp. nota 98.
5 Se um dos interessados tiver adquirido de quem não era o “verdadeiro”' titular, o art. 5.º do Cód.Reg.Pred. é inaplicável, dado que dois ou mais sujeitos só podem ser adquirentes, por aquisição derivada, aparentemente válida e eficaz, de direitos sujeitos a registo sobre a mesma coisa, se o causante for o mesmo. Só nesta hipótese é que ambos podem ter adquirido do “verdadeiro” titular. E, ainda assim, rigorosamente, só o primeiro adquiriu do verdadeiro titular; uma vez que, tendo o autor comum transmitido ou onerado o seu direito ao primeiro adquirente por mero efeito do contrato, por força do princípio da consensualidade, logicamente que o segundo acto de disposição já padece de uma ilegitimidade: o “verdadeiro” titular já o não era em virtude da anterior disposição válida. Mas é esta, e só esta, a hipótese de ilegitimidade que o art. 5.º supre. Isto porque, valendo no sistema jurídico português o princípio da causalidade e não tendo, obviamente, o registo eficácia sanante dos vícios do negócio em que participa o próprio titular registal, dois sujeitos, não sendo partes ou herdeiros das partes de um facto aquisitivo comum, só podem arrogar-se simultaneamente a titularidade de direitos sujeitos a registo, sobre a mesma coisa, se o facto aquisitivo de cada um for válido e eficaz, abstraindo do facto aquisitivo do outro.
Assim, por exemplo: quer A quer B arrogam-se titulares do direito de propriedade sobre o prédio x; A apresenta certidão que comprova ter comprado o prédio a C; B exibe uma certidão que comprova uma permuta com D (não tendo este adquirido de C).
O conflito entre A e B não pode ser resolvido pela norma em apreço, pois, necessariamente, um deles terá “adquirido” de quem não era (nem nunca foi) titular do direito. Consequentemente, o facto aquisitivo em que interveio é intrinsecamente nulo e o registo que haja feito a seu favor de nada lhe pode valer. Aquele que adquiriu do verdadeiro proprietário pode sempre arguir a referida nulidade e obter o cancelamento do registo. O art. 5.º do Cód.Reg.Pred. só protege aquele que adquiriu de um ex-dominus e obteve o registo, não aquele que adquiriu de um non domino. (No mesmo sentido, entre outros, vide: ADRIANO VAZ SERRA, Anotação ao Acórdão do STJ de 12 de Julho de 1963, RLJ ano 97, 1964-1965, n.º 3265, pp. 55 e ss., p. 57; VAZ SERRA, Anotação ao acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 12 de Julho de 1963, Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 97.º, p. 165; idem, Anotação ao acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 11 de Fevereiro de 1969, Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 103.º, p. 165; PIRES DE LIMA, Anotação ao acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 30 de Abril de 1965, Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 98.º, p. 348; ANTUNES VARELA, Anotação ao acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 4 de Março de 1982, Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 118.º, p. 313 e ss.).
Mais, na verdade, o “conflito” não se soluciona pelo art. 5.º do Cód.Reg.Pred. no caso de os interessados serem titulares de direitos incompatíveis, registados definitivamente, adquiridos do mesmo causante e sobre a mesma coisa, descrita no Registo uma só vez, se o autor comum tiver, indevidamente, conseguido inscrever duas vezes o seu facto aquisitivo, criando, depois, duas ordens registais absolutamente incompatíveis. Também nesta hipótese o conflito há-de ser resolvido pelo direito substantivo, uma vez que, como se pode ler no Parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República n.º 73/96, “se do registo constam inscrições incompatíveis e se o próprio registo revela a desconformidade, ninguém pode valer-se de uma inscrição incorrecta quando não está em melhores condições do que aquele que tiver depositado confiança na inscrição verdadeira.” (Cfr. Parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República n.º 73/96, Diário da Repúbica, II Série, 20 de Novembro de 2000, nota 44, p. 18818).
6 Segundo o nosso entendimento, mesmo no caso de os interessados serem titulares de direitos registados definitivamente, incompatíveis, adquiridos do mesmo causante e sobre a mesma coisa, se esta tiver sido indevidamente objecto de duas descrições registais e tal tenha possibilitado a existência de registos incompatíveis, o “conflito” não pode ser solucionado pelo art. 5.º do Cód.Reg.Pred.. Neste caso, em virtude da duplicação das descrições, as regras do registo, a final, não serão aplicáveis, resolvendo-se o conflito através do direito substantivo.
Sobre uma hipótese deste tipo vide o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21 de Abril de 2009, [on-line] consultado em 5 de Maio de 2011. Disponível: http://www.dgsi.pt/jstj.nsf, em cujas conclusões se pode ler:
“f) No caso de duplicação de inscrições imputável à Conservatória do Registo Predial, e reportando-se cada uma das escrituras de compra e venda a diferentes identificações registrais, tratou-se de negociar prédios tabularmente distintos, embora fisicamente o mesmo, já que o objecto do registo inclui a realidade material do prédio sobre que recai a inscrição, traduzida na descrição predial (art. 68.º CRP).
g) Sob pena de se frustrarem os princípios estruturantes do registo predial, como a publicidade e segurança estática e dinâmica, e se ambos os compradores cumpriram os deveres registrais fazendo inscrever provisoriamente as aquisições a recaírem em diferentes inscrições, nenhum deles deve beneficiar da eficácia dos registos, deixando de valer a regra do n.º 4 do artigo 5.º do Código do Registo Predial para prevalecerem as normas do direito substantivo relativas à venda de coisa alheia.” (Sublinhámos.)
7 Na verdade, apenas no caso de conflito entre titulares de direitos registados definitivamente, incompatíveis, adquiridos do mesmo causante e sobre a mesma coisa (descrita no registo apenas uma vez), o conflito será solucionado pelo art. 6.º do Cód.Reg.Pred.).
Sublinhe-se que a hipótese acabada de apresentar não é meramente teórica, não obstante a consagração do princípio da legitimação e do princípio do trato sucessivo. De facto, pense-se no registo definitivo da penhora que não impede um posterior registo definitivo a favor de pessoa diversa do adquirente no âmbito da acção executiva, e isto porque este último registo definitivo também não obsta ao registo definitivo da aquisição no âmbito da acção executiva (cfr. art. 34.º, n.º 4, do Cód.Reg.Pred.), em consonância com a regra do direito substantivo segundo a qual são inoponíveis em relação à execução os actos de disposição, oneração ou arrendamento dos bens penhorados (art. 819.º do Código Civil).
8 Enquanto pressuposto do processo registal que impõe a sequência linear e contínua dos factos inscritos, o trato sucessivo é, de algum modo, o reflexo tabular do princípio nemo plus iuris ad alium transferre potest quam ipse habet que domina a aquisição derivada. (A propósito do princípio do trato sucessivo, vide: EDUARDO DOS SANTOS, Do princípio do trato sucessivo, Regesta, Ano XII, Abr.-Jul., 1991, n.º 2, p. 29 e ss.; MÓNICA JARDIM, Efeitos decorrentes do registo da penhora convertido em definitivo nos termos do artigo 119.º do Código do Registo Predial, Cadernos de Direito Privado, n.º 9, Jan./Mar. 2005, p. 28-29; SILVA PEREIRA, Trato Sucessivo. Disponível: www.fd.uc.pt/cenor/public.html).
9 Por isso no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência se pode ler: “não está afastada a possibilidade de ser um dos titulares que consta do trato sucessivo mais antigo quem criou a duplicação da descrição” e o facto de que uma inscrição ser mais antiga que outra “não implica necessariamente que a primeira seja o reflexo no registo da verdade extra registal e que a segunda represente sempre a fraude ou o erro constitutivos da dupla descrição”.
10 No mesmo sentido vide o voto de vencido elaborado no Parecer proferido no processo R.P. 67/2010 SJC-CT do Conselho Consultivo do IRN. Disponível in: http://www.irn.mj.pt/sections/irn/doutrina/pareceres/predial/2010/p-r-p-67-2010-sjc-ct/.
11 Cfr. o voto de vencido elaborado no Parecer proferido no processo R.P. 67/2010 SJC-CT do Conselho Consultivo do IRN. Disponível in: http://www.irn.mj.pt/sections/irn/doutrina/pareceres/predial/2010/p-r-p-67-2010-sjc-ct/.
12 Recordamos que, de acordo com o previsto no art. 10.º do Cód.Reg.Pred., os efeitos do registo extinguem-se por caducidade ou cancelamento e, segundo o estatuído no art. 13.º do mesmo diploma legal, os registos apenas “são cancelados com base na extinção dos direitos, ónus ou encargos neles definidos, em execução de decisão administrativa, nos casos previstos na lei, ou de decisão judicial transitada em julgado.” (O itálico é nosso.)
13 As expressões entre aspas são do relator do Parecer proferido no processo RP 1/2016 STJSR-CC do Conselho Consultivo do IRN, disponível in: http://www.irn.mj.pt/sections/irn/doutrina/pareceres/predial/2016/cc-publicacoes-de/.
14 Disponível in: http://www.irn.mj.pt/sections/irn/doutrina/pareceres/predial/2015/cc-publicacoes-de/.
15 Cfr. Parecer proferido no processo RP 1/2016 STJSR-CC do Conselho Consultivo do IRN. Disponível in: http://www.irn.mj.pt/sections/irn/doutrina/pareceres/predial/2016/cc-publicacoes-de/.